MILTON MACIEL
75 – UM ESTAGIÁRIO MUITO ESPERTO
Fim do cap. 73: "Mota bateu continência também. A cerimônia foi completada com mais três garrafas de cerveja esvaziadas em pleno expediente. O delegado pensou: As regras que se fodam, hoje a gente abre uma exceção."
Bem,
bem, sorriu feliz o delegado. Provamos que o alemão é o executor do crime.
Agora falta descobrir quem é esse filho da puta desse cúmplice. Não vai ser
moleza... Mas também, se não der pra pegar o cara, foda-se: o principal, que é
o assassino, já está na gaiola e não escapa mais.
De fato,
Adolfo Schlikmann seguia isolado em sua ala especial do hospital Nossa Senhora
da Conceição, sob os cuidados de enfermeiras e seguranças especiais só para
ele. E a supervisão mensal de um psiquiatra que vinha de Jaraguá do sul. Sua
situação legal estava já definida. Inimputável, mas considerado perigoso por
sua demência e anteriores assassinatos, mais o provável assassinato de Valdemar
Silva, aguardava-se apenas uma vaga no Manicômio Judiciário para encaminhá-lo
para Florianópolis.
Quando
se despediram, no final daquele dia, o guarda Narciso disse algo a que o
delgado não deu nenhuma importância:
– Olhem,
vocês podem não acreditar, mas eu tenho uma certa ideia a respeito de quem pode
ser esse cúmplice. Só não vou falar agora, por que ela está meio vaga ainda. Mas podem acreditar que eu vou investigar.
Ah, se vou!
Pois agora
o delegado Norberto Oliveira estava debruçado sobre o corpo sem vida de seu
ajudante mais vivo. Era evidente que ele havia encontrado o fio da meada. E
o cúmplice deve ter percebido o perigo que corria. Narciso, por sua vez, é que
não deve ter avaliado que também ele corria perigo.
Agora a
coisa tinha assumido um tom de extrema gravidade: um assassino estava preso,
mas outro assassino estava solto e incógnito. E esse homem tinha acabado de
matar uma autoridade policial. Agora, ou ele encontrava esse desgraçado, ou a
coisa ia ficar feia pro lado dele também.
Tinha
pegado Valdemar Silva e Adolfo Schlikmann com a ajuda de Celso Teles, Jardes,
Alcebíades Trancoso, Lucas, Gládis, quando montaram aquela monumental farsa da
pseudo-morte de Celso.
Depois o
alemão eliminara Silva e ele tinha o caso completamente resolvido agora. Não,
completamente não! Agora o cúmplice de um assassinato havia se tornado, por sua
vez, um assassino. E assassino de um policial que estava no calcanhar dele.
Caramba,
desta vez o delegado estava mesmo sozinho! Era ele e Deus. E Deus parece que,
ao menos por enquanto, não estava dando colher de chá pra delegado nenhum.
Não foi
possível obter nenhum testemunho. Ninguém, absolutamente ninguém, viu ou ouviu qualquer coisa. O velho carro Gol do guarda Narciso estava estacionado numa
pequena estradinha, que saía de uma estrada vicinal de uso agrícola. A
estradinha levava até à beira de um lago de médio porte, pertencente a uma
fazenda local.
Dentro
do carro a investigação não encontrou qualquer sinal de luta. Ou o guarda fora
colocado ali já sem vida, ou fora alvejado à queima roupa por alguém ali mesmo.
O estudo de balística e da posição do corpo, encontrado recostado normalmente
sobre o encosto e ainda sujeitado pelo cinto de segurança, sugeria morte instantânea
e um disparo efetuado por alguém provavelmente sentado no banco do carona. A
arma usada era de calibre 32.
O passo
seguinte foi examinar as pegadas no chão da estrada de terra. Ficou evidente
que elas chegavam e voltavam de um ponto onde outro automóvel estivera
estacionado, na confluência da estradinha com a estrada vicinal de terra, mas
já no leito desta estrada mais larga. O problema é que, por aquele ponto de uma
estada muito usada localmente, haviam transitado diversos outros veículos após
o crime. O estudo de marcas deixadas por pneus deu resultados inconsistentes.
A morte
fora estabelecida pelo legista vindo de Blumenau como tendo acontecido 16 horas antes da
autopsia, portanto durante a noite anterior, entre 10 horas e meia-noite.
O
delegado Oliveira estabeleceu duas hipóteses de trabalho. Na primeira, o
criminoso havia sequestrado o guarda e feito com que ele dirigisse até o ponto
do crime, sendo acompanhado por outro automóvel, no qual fugiu depois. Nesse
caso havia pelo menos duas pessoas implicadas no assassinato.
Na
segunda hipótese, o criminoso agia sozinho. Mas, nesse caso, como justificar o
local onde o crime ocorrera e o carro fora encontrado, a cerca de dez
quilômetros da cidade, numa estradinha de mínimo trânsito? O guarda devia ter
sido atraído para o local por alguém, talvez alguém que lhe estivesse
prometendo alguma informação importante. Era também necessário considerar a
hipótese de que essa pessoa fosse alguém que o guarda conhecia e em quem
confiava.
Essa
pessoa, o assassino solitário, teria, em ambas as possibilidades, chegado ao
local em seu próprio carro, no qual se evadiu depois de praticar o crime.
Em
deferência à inteligência do guarda assassinado, o delegado Norberto Oliveira
preferiu acreditar em sua segunda hipótese: o criminoso não havia sequestrado o
policial e o obrigado a dirigir até o local do crime. Pelo contrário, marcara
um encontro com a vítima naquele lugar. Mas... com que motivo?
A
primeira possibilidade, a de passar alguma informação secreta para o guarda,
pareceu muito inconsistente para o delegado. Não haveria razão alguma para que
o encontro fosse marcado em lugar tão distante e deserto. A menos, é claro, que
a pessoa estivesse cobrando um bom dinheiro pela informação e esperasse receber
o pagamento no ato. Mas o guarda Narciso vivia sempre duro e teso, não tinha
reservas, não poderia pagar nem duzentos reais por uma informação; De mais a
mais, ele teria aberto o jogo com o delegado e pedido dinheiro para tal fim.
Restava
então a outra possibilidade a analisar: o guarda conhecia a pessoa e o encontro
fora marcado ali por uma única e óbvia razão: esse encontro tinha que
permanecer secreto. Mas aí a primeira coisa a se pensar não tinha nada a ver
com crimes misteriosos, mas sim com ligações misteriosas, mais exatamente alguma
mulher misteriosa com quem o guarda estivesse tendo um caso. Como ele era
solteiro, então a mulher devia ser casada.
Mas
ninguém dentre os conhecidos do guarda Narciso tinha jamais visto ou ouvido
nada que sugerisse a existência desse caso secreto. Narciso era mais dado a
frequentar dois dos bordeis mais conhecidos de Amarante, o de Joana Melosa e o de
Vovó Oscarina.
O
delegado resolveu percorrer os dois, à cata de mais informações. No de Joana
Melosa nada conseguiu. Mas no de Vovó Oscarina, a Casa da Vovó, tropeçou com um
fato realmente inusitado. Foi informado que uma das garotas tinha passado mal
quando soube da morte do guarda, precisou ser atendida no pronto-socorro. E
repetia, sem cessar, “ele ia me tirar da vida!”
Norberto
Oliveira foi atrás dessa moça e conseguiu encontrar a casinha onde ela vivia
com sua mãe adoentada. Era uma mulatinha magra, de carinha assustada, simpática
e falante. Quando soube que estava frente ao delgado de Amarante, o superior
hierárquico de seu amigo e protetor, ela abriu o jogo todo:
– Pro o
senhor ver que pobre não tem sorte mesmo, doutor. O Narciso era um homem bom,
me ajudava muito. Nos últimos três meses ele é que pagava o aluguel. E nos dava
mais dinheiro para as despesas. Ele me contou que estava esperando receber um
dinheiro maior por estes dias. E garantiu que aí ia me tirar da vida. Ele disse
que ia dar baixa da polícia e a gente ia embora pro Paraná, começar vida nova.
Agora o que vai ser de mim e da minha mãe, doutor? Nunca mais eu encontro um
homem bom como esse, vou envelhecer e me acabar num puteiro.
O
delegado ficou absolutamente chocado com a revelação. Conduzindo habilmente a
conversa com a moça, conseguiu extrair números que o fizeram concluir que o
guarda Narciso estava gastando, nos últimos três meses, com a sua protegida, muito mais do que ele ganhava como policial por mês.
Ora, a
menos que ele mentisse muito bem, era por todos sabido que ele vivia numa
situação sempre muito apertada, sem poupança ou reservas. Mota, informado do
ocorrido com a ajuda à moça, disse ao delegado que muitas vezes tinha socorrido
o colega com pequenos empréstimos, que ele sempre pagava ao receber o soldo no
fim do mês. E que, de fato, de três meses para cá ele até estranhara que
Narciso não lhe pedisse um único valezinho.
Então
agora começava a pairar a nuvem negra da dúvida sobre o falecido: De onde ele
havia tirado mais dinheiro para se desafogar no dia-a-dia e, além disso, passar
a bancar sua namorada da zona, aluguel inclusive? E o que tinha acontecido de
diferente três meses atrás exatamente, que envolvesse o guarda diretamente? Uma
única coisa: a morte de Valdemar Silva na delegacia de polícia de Amarante!
Mota e o
delgado sentiram um grande desconforto com aquela nova situação. Confiavam
plenamente em Narciso e ainda há tão poucos dias ele fizera aquela espetacular descoberta no forro e no telhado da delegacia, afirmando, inclusive, que ia
investigar uma pessoa que ele achava pudesse ser o cúmplice de Schlikmann. Como
agora ter que suspeitar do guarda? Era enlouquecedor!...
Devia
haver outra fonte para esse dinheiro extra. O delegado decidiu que, em respeito
ao ótimo conceito em que tinha o colega assassinado, iria fazer uma
investigação completa sobre ele, sem deixar pedra sobre pedra. Descobriria a
nova fonte de dinheiro e inocentaria seu colega dessa pesada e, muito
provavelmente, injusta suspeição.
O Estagiário Eurico
No dia
seguinte, desde muito cedo, começou a investigar a casinha alugada onde o
guarda vivia há vários anos; levou Mota e um
investigador novato, recém-chegado de Florianópolis, para um curto estágio
de treinamento na delegacia de Amarante. Era um garoto de pouco mais de vinte
anos, inexperiente de todo, que atendia pelo nome de Eurico e não parecia muito
inteligente.
Vasculharam
tudo, tim-tim por tim-tim, até meio-dia, sem encontrarem nada de novo ou
relevante. Havia alguns bilhetes amorosos, assinados por uma certa “Cora, sua menina”, que deduziram a ser
a moça do bordel da Vovó. Não deram muita importância aos textos, parecia-lhe
que violavam indevidamente a vida amorosa do colega morto.
Mas o trainee
de investigador não tinha nada com isso e continuou fuçando em tudo, atrás de
mais cartinhas ou bilhetes. E apareceu com um que foi dinamite pura:
Num
bilhete datado da semana anterior ao crime, Cora dizia, entre outras coisas, “...
e aguardo ansiosa o dia da libertação. Vou ser a mulher mais feliz do mundo
quando entrar na casa que você comprou pra nós em Umuarama.”
Opa!
Aquilo era mesmo uma bomba! Uma casa, por mais modesta que fosse, significa um
bom dinheiro. De onde o durango perpétuo Narciso tinha tirado esse dinheiro?
Mota
lembrou que o guarda lhe falara que, por dois ou três fins-de-semana seguidos
tinha visitado o Paraná, para rever parentes. A busca agora passou a ser bem
específica: em algum lugar daquela casa deveria estar guardado um documento
referente a essa compra, se ela de fato tivesse ocorrido. Reviraram tudo, de
ponta a ponta, mas não encontraram nada. Como já passava de meio-dia, o
delegado determinou que por esse dia era suficiente. Precisavam almoçar e
atender também as necessidades da delegacia. E, de qualquer forma, ele iria
voltar à casa da tal Cora e arrancar dela e história da casa de Umuarama, que ela, por alguma razão, omitira.
O
estagiário, no entanto, pediu para ficar na casa de Narciso. Disse que não
tinha a menor fome e que queria remexer mais algumas coisas. Depois iria a pé
para a delegacia. O delegado estranhou tanto empenho, mas autorizou Eurico a
ficar.
O rapaz
apareceu na delegacia às quatro da tarde. Estava todo sujo de poeira e de
barro. E todo molhado. Explicou que havia subido no forro da casa e entrado em
um poço de água que havia no fundo do quintal. E foi nesse poço que ele
encontrou a caixa que estava trazendo com ele agora. Estava bem acondicionada
dentro de uma embalagem hermética de plástico e ligada à superfície por uma
cordinha de náilon de pesca, quase invisível, escondida pela tampa do poço.
Quando Eurico tentou puxá-la, a embalagem entalou.
Ele
então não teve dúvida. O poço era raso, a água estava a uns dois a três metros de
profundidade. Aí improvisou um apoio com uns sarrafos velhos que encontrou por
ali e desceu com auxílio da corda grossa do balde. No meio da descida,
despencou dentro d´água. Mas conseguiu sair com facilidade. E chegou ao solo
com o disputado troféu: Dentro da caixa estava a tal escritura! E mais 10 mil
reais em dinheiro!
Mota e o
delegado Norberto ficaram em estado de choque. O preço da casa, comprada à vista:
180 mil reais! Duas descobertas impressionantes: Sim, o guarda Narciso estava
envolvido em algum negócio grande e escuso. E, sim, o jovem Eurico, com sua
cara de songamonga e seu ar pouco inteligente, tinha dado um coro neles – o
cara era fera! Aquilo é que era vocação!
Agora
tudo mudava no tabuleiro de xadrez do caso Silva. Narciso estava envolvido, era
evidente. Tinha recebido dinheiro para facilitar a entrada do cúmplice de
Schlikmann!
Mas
Eurico levantou outra hipótese:
– Por
que um cúmplice entrando na delegacia? Vocês não estão considerando que o
cúmplice pode ter sido o próprio Narciso e mais ninguém!
–
Caramba, doutor, o menino tem razão. Se o cara recebeu toda essa grana, pode
ser ele mesmo o ajudante de Schlikmann.
– Sim,
cabe a hipótese mesmo – disse o delegado – O Narciso pode muito bem ter trazido
os bagulhos para o Schlikmann aplicar no Silva.
– E,
nesse caso – comentou Eurico – o cúmplice não precisou entrar na delegacia. O
cúmplice era alguém lá fora, alguém, que tinha acesso ao veneno e às outras
coisas. E ele deu isso tudo para o guarda.
Mota
completou:
– E o
guarda entregou para o Schlikmann executar o Silva.
– Com
certeza – confirmou o delegado.
Mas o
rapaz em treinamento discordou:
– No seu
lugar, delegado, eu não teria tanta certeza.
– Como
assim, rapaz? Ora, você viu o filme da confissão do alemão, é claro que foi
ele.
– Pois
para mim pode não ter sido ele. Acompanhem o meu raciocínio: Aquilo pode ser
uma mímica, uma reprodução, até uma celebração do que o Seu Schlikmann VIU
acontecer. Ele viu alguém matar o Silva, viu alguém dar a tal injeção letal,
ficou muito feliz com isso, é claro. Mas ele está doidão, o que ele fala não
pode ser levado ao pé da letra. Além disso, uma vez que a gente sabe agora que
o Narciso participou da coisa dentro da delegacia, tudo é válido: desde ele ter
dado a coisa toda pro Schlikmann até ele ter dado para qualquer dos outros
presos ali dentro da cela matarem o Silva. E até não ter dado para ninguém, ter
sido ele mesmo o executor de Valdemar Silva, ele aplicou o veneno.
– Mas não pode! – objetou o delegado – A gente
tem certeza que foi o Schlikmann! O Narciso descobriu aquele cara que entrou
pelo telhado e jogou os bagulhos...
E aí o
delegado parou, ao ver o sorriso de mofa do seu jovem aprendiz. E caiu em si:
–
Caralho! O Narciso nos enganou, foi tudo uma cortina de fumaça!
– Isso
mesmo, chefe. Ele encenou a tal descoberta para afastar suspeitas de cima dele.
Ele deve ter ficado o tempo todo muito intranquilo, com medo de ser descoberto.
– Filho
da puta! – berrou o Mota – O desgraçado nos levou no bico direitinho.
O
aprendiz observou:
– Eu
acho que ele fez essa encenação porque ele ia pedir baixa da polícia e se
mandar daqui. Para que nunca desconfiassem dele. Ia embora e deixava a história
do tal cúmplice voador do telhado plantada na cabeça de vocês. E ainda saía
como herói.
O
delegado balançou a cabeça para os lados e fez uma cara de desanimado:
–
Caramba, a gente pode ter estado errado o tempo todo. E aí chega esse
menino-prodígio e põe tudo de pernas pro ar.
– Sabe o
que é, delegado. Eu acho que o senhor ficou com muita raiva desse Schlikmann e
decidiu que ele tem que ser o assassino e ponto final. Eu, como não tenho nada
com o peixe, cheguei agora no caso, fico mais isento, posso ver com mais
clareza. E, pra mim, ele é tão suspeito quanto o Narciso e qualquer dos caras
dentro da cela. Qualquer um pode ter dado a injeção fatal no Silva.
O
delegado Oliveira ainda tentou resistir:
– Bem,
tecnicamente, sim. Mas na prática... Porra! – e deu um tapa na testa – Na
prática também! Garoto, você é do caralho, você pode estar certo!
– Assim
como posso estar errado. Mas só não podemos deixar de considerar todas as
hipóteses. Inclusive esta, de que Adolfo Schlikmann é inocente, não matou
Valdemar Silva, apenas testemunhou seu assassinato. Mas agora isso nem é o mais
importante.
– Não é?
– estranhou o carcereiro Mota.
– Não –
respondeu Eurico – Porque o assassino, seja ele quem for, já está resolvido no
que interessa para nós de imediato: ou ele é um dos que estavam lá na cela – e
todos ainda estão lá, bem seguros – ou ele foi o guarda Narciso – que já não
está mais neste mundo. Ou foi o Schlikmann, e ele também está engaiolado. O que
é importante agora é encontrar o pessoal de fora.
–
Pessoal de fora?... – quem estranhou agora foi o delegado.
CONTINUA
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