quarta-feira, 9 de março de 2016

LUA  OCULTA – 75  
MILTON MACIEL 

75 – UM ESTAGIÁRIO MUITO ESPERTO
Fim do cap. 73:  "Mota bateu continência também. A cerimônia foi completada com mais três garrafas de cerveja esvaziadas em pleno expediente. O delegado pensou: As regras que se fodam, hoje a gente abre uma exceção."

Bem, bem, sorriu feliz o delegado. Provamos que o alemão é o executor do crime. Agora falta descobrir quem é esse filho da puta desse cúmplice. Não vai ser moleza... Mas também, se não der pra pegar o cara, foda-se: o principal, que é o assassino, já está na gaiola e não escapa mais.

De fato, Adolfo Schlikmann seguia isolado em sua ala especial do hospital Nossa Senhora da Conceição, sob os cuidados de enfermeiras e seguranças especiais só para ele. E a supervisão mensal de um psiquiatra que vinha de Jaraguá do sul. Sua situação legal estava já definida. Inimputável, mas considerado perigoso por sua demência e anteriores assassinatos, mais o provável assassinato de Valdemar Silva, aguardava-se apenas uma vaga no Manicômio Judiciário para encaminhá-lo para Florianópolis.

Quando se despediram, no final daquele dia, o guarda Narciso disse algo a que o delgado não deu nenhuma importância:

– Olhem, vocês podem não acreditar, mas eu tenho uma certa ideia a respeito de quem pode ser esse cúmplice. Só não vou falar agora, por que ela está meio vaga ainda. Mas podem acreditar que eu vou investigar. Ah, se vou!

Pois agora o delegado Norberto Oliveira estava debruçado sobre o corpo sem vida de seu ajudante mais vivo. Era evidente que ele havia encontrado o fio da meada. E o cúmplice deve ter percebido o perigo que corria. Narciso, por sua vez, é que não deve ter avaliado que também ele corria perigo.

Agora a coisa tinha assumido um tom de extrema gravidade: um assassino estava preso, mas outro assassino estava solto e incógnito. E esse homem tinha acabado de matar uma autoridade policial. Agora, ou ele encontrava esse desgraçado, ou a coisa ia ficar feia pro lado dele também.

Tinha pegado Valdemar Silva e Adolfo Schlikmann com a ajuda de Celso Teles, Jardes, Alcebíades Trancoso, Lucas, Gládis, quando montaram aquela monumental farsa da pseudo-morte de Celso.

Depois o alemão eliminara Silva e ele tinha o caso completamente resolvido agora. Não, completamente não! Agora o cúmplice de um assassinato havia se tornado, por sua vez, um assassino. E assassino de um policial que estava no calcanhar dele.

Caramba, desta vez o delegado estava mesmo sozinho! Era ele e Deus. E Deus parece que, ao menos por enquanto, não estava dando colher de chá pra delegado nenhum.

Não foi possível obter nenhum testemunho. Ninguém, absolutamente ninguém, viu ou ouviu qualquer coisa. O velho carro Gol do guarda Narciso estava estacionado numa pequena estradinha, que saía de uma estrada vicinal de uso agrícola. A estradinha levava até à beira de um lago de médio porte, pertencente a uma fazenda local.

Dentro do carro a investigação não encontrou qualquer sinal de luta. Ou o guarda fora colocado ali já sem vida, ou fora alvejado à queima roupa por alguém ali mesmo. O estudo de balística e da posição do corpo, encontrado recostado normalmente sobre o encosto e ainda sujeitado pelo cinto de segurança, sugeria morte instantânea e um disparo efetuado por alguém provavelmente sentado no banco do carona. A arma usada era de calibre 32.

O passo seguinte foi examinar as pegadas no chão da estrada de terra. Ficou evidente que elas chegavam e voltavam de um ponto onde outro automóvel estivera estacionado, na confluência da estradinha com a estrada vicinal de terra, mas já no leito desta estrada mais larga. O problema é que, por aquele ponto de uma estada muito usada localmente, haviam transitado diversos outros veículos após o crime. O estudo de marcas deixadas por pneus deu resultados inconsistentes.

A morte fora estabelecida pelo legista vindo de Blumenau como tendo acontecido 16 horas antes da autopsia, portanto durante a noite anterior, entre 10 horas e meia-noite.

O delegado Oliveira estabeleceu duas hipóteses de trabalho. Na primeira, o criminoso havia sequestrado o guarda e feito com que ele dirigisse até o ponto do crime, sendo acompanhado por outro automóvel, no qual fugiu depois. Nesse caso havia pelo menos duas pessoas implicadas no assassinato.

Na segunda hipótese, o criminoso agia sozinho. Mas, nesse caso, como justificar o local onde o crime ocorrera e o carro fora encontrado, a cerca de dez quilômetros da cidade, numa estradinha de mínimo trânsito? O guarda devia ter sido atraído para o local por alguém, talvez alguém que lhe estivesse prometendo alguma informação importante. Era também necessário considerar a hipótese de que essa pessoa fosse alguém que o guarda conhecia e em quem confiava.

Essa pessoa, o assassino solitário, teria, em ambas as possibilidades, chegado ao local em seu próprio carro, no qual se evadiu depois de praticar o crime.

Em deferência à inteligência do guarda assassinado, o delegado Norberto Oliveira preferiu acreditar em sua segunda hipótese: o criminoso não havia sequestrado o policial e o obrigado a dirigir até o local do crime. Pelo contrário, marcara um encontro com a vítima naquele lugar. Mas... com que motivo?

A primeira possibilidade, a de passar alguma informação secreta para o guarda, pareceu muito inconsistente para o delegado. Não haveria razão alguma para que o encontro fosse marcado em lugar tão distante e deserto. A menos, é claro, que a pessoa estivesse cobrando um bom dinheiro pela informação e esperasse receber o pagamento no ato. Mas o guarda Narciso vivia sempre duro e teso, não tinha reservas, não poderia pagar nem duzentos reais por uma informação; De mais a mais, ele teria aberto o jogo com o delegado e pedido dinheiro para tal fim.

Restava então a outra possibilidade a analisar: o guarda conhecia a pessoa e o encontro fora marcado ali por uma única e óbvia razão: esse encontro tinha que permanecer secreto. Mas aí a primeira coisa a se pensar não tinha nada a ver com crimes misteriosos, mas sim com ligações misteriosas, mais exatamente alguma mulher misteriosa com quem o guarda estivesse tendo um caso. Como ele era solteiro, então a mulher devia ser casada.

Mas ninguém dentre os conhecidos do guarda Narciso tinha jamais visto ou ouvido nada que sugerisse a existência desse caso secreto. Narciso era mais dado a frequentar dois dos bordeis mais conhecidos de Amarante, o de Joana Melosa e o de Vovó Oscarina.

O delegado resolveu percorrer os dois, à cata de mais informações. No de Joana Melosa nada conseguiu. Mas no de Vovó Oscarina, a Casa da Vovó, tropeçou com um fato realmente inusitado. Foi informado que uma das garotas tinha passado mal quando soube da morte do guarda, precisou ser atendida no pronto-socorro. E repetia, sem cessar, “ele ia me tirar da vida!”

Norberto Oliveira foi atrás dessa moça e conseguiu encontrar a casinha onde ela vivia com sua mãe adoentada. Era uma mulatinha magra, de carinha assustada, simpática e falante. Quando soube que estava frente ao delgado de Amarante, o superior hierárquico de seu amigo e protetor, ela abriu o jogo todo:

– Pro o senhor ver que pobre não tem sorte mesmo, doutor. O Narciso era um homem bom, me ajudava muito. Nos últimos três meses ele é que pagava o aluguel. E nos dava mais dinheiro para as despesas. Ele me contou que estava esperando receber um dinheiro maior por estes dias. E garantiu que aí ia me tirar da vida. Ele disse que ia dar baixa da polícia e a gente ia embora pro Paraná, começar vida nova. Agora o que vai ser de mim e da minha mãe, doutor? Nunca mais eu encontro um homem bom como esse, vou envelhecer e me acabar num puteiro.

O delegado ficou absolutamente chocado com a revelação. Conduzindo habilmente a conversa com a moça, conseguiu extrair números que o fizeram concluir que o guarda Narciso estava gastando, nos últimos três meses, com a sua protegida, muito mais do que ele ganhava como policial por mês.

Ora, a menos que ele mentisse muito bem, era por todos sabido que ele vivia numa situação sempre muito apertada, sem poupança ou reservas. Mota, informado do ocorrido com a ajuda à moça, disse ao delegado que muitas vezes tinha socorrido o colega com pequenos empréstimos, que ele sempre pagava ao receber o soldo no fim do mês. E que, de fato, de três meses para cá ele até estranhara que Narciso não lhe pedisse um único valezinho.

Então agora começava a pairar a nuvem negra da dúvida sobre o falecido: De onde ele havia tirado mais dinheiro para se desafogar no dia-a-dia e, além disso, passar a bancar sua namorada da zona, aluguel inclusive? E o que tinha acontecido de diferente três meses atrás exatamente, que envolvesse o guarda diretamente? Uma única coisa: a morte de Valdemar Silva na delegacia de polícia de Amarante!

Mota e o delgado sentiram um grande desconforto com aquela nova situação. Confiavam plenamente em Narciso e ainda há tão poucos dias ele fizera aquela espetacular descoberta no forro e no telhado da delegacia, afirmando, inclusive, que ia investigar uma pessoa que ele achava pudesse ser o cúmplice de Schlikmann. Como agora ter que suspeitar do guarda? Era enlouquecedor!...

Devia haver outra fonte para esse dinheiro extra. O delegado decidiu que, em respeito ao ótimo conceito em que tinha o colega assassinado, iria fazer uma investigação completa sobre ele, sem deixar pedra sobre pedra. Descobriria a nova fonte de dinheiro e inocentaria seu colega dessa pesada e, muito provavelmente, injusta suspeição.

O Estagiário Eurico

No dia seguinte, desde muito cedo, começou a investigar a casinha alugada onde o guarda vivia há vários anos; levou Mota e um investigador novato, recém-chegado de Florianópolis, para um curto estágio de treinamento na delegacia de Amarante. Era um garoto de pouco mais de vinte anos, inexperiente de todo, que atendia pelo nome de Eurico e não parecia muito inteligente.

Vasculharam tudo, tim-tim por tim-tim, até meio-dia, sem encontrarem nada de novo ou relevante. Havia alguns bilhetes amorosos, assinados por uma certa “Cora, sua menina”, que deduziram a ser a moça do bordel da Vovó. Não deram muita importância aos textos, parecia-lhe que violavam indevidamente a vida amorosa do colega morto.

Mas o trainee de investigador não tinha nada com isso e continuou fuçando em tudo, atrás de mais cartinhas ou bilhetes. E apareceu com um que foi dinamite pura:

Num bilhete datado da semana anterior ao crime, Cora dizia, entre outras coisas, “... e aguardo ansiosa o dia da libertação. Vou ser a mulher mais feliz do mundo quando entrar na casa que você comprou pra nós em Umuarama.”

Opa! Aquilo era mesmo uma bomba! Uma casa, por mais modesta que fosse, significa um bom dinheiro. De onde o durango perpétuo Narciso tinha tirado esse dinheiro?

Mota lembrou que o guarda lhe falara que, por dois ou três fins-de-semana seguidos tinha visitado o Paraná, para rever parentes. A busca agora passou a ser bem específica: em algum lugar daquela casa deveria estar guardado um documento referente a essa compra, se ela de fato tivesse ocorrido. Reviraram tudo, de ponta a ponta, mas não encontraram nada. Como já passava de meio-dia, o delegado determinou que por esse dia era suficiente. Precisavam almoçar e atender também as necessidades da delegacia. E, de qualquer forma, ele iria voltar à casa da tal Cora e arrancar dela e história da casa de Umuarama, que ela, por alguma razão, omitira.

O estagiário, no entanto, pediu para ficar na casa de Narciso. Disse que não tinha a menor fome e que queria remexer mais algumas coisas. Depois iria a pé para a delegacia. O delegado estranhou tanto empenho, mas autorizou Eurico a ficar.

O rapaz apareceu na delegacia às quatro da tarde. Estava todo sujo de poeira e de barro. E todo molhado. Explicou que havia subido no forro da casa e entrado em um poço de água que havia no fundo do quintal. E foi nesse poço que ele encontrou a caixa que estava trazendo com ele agora. Estava bem acondicionada dentro de uma embalagem hermética de plástico e ligada à superfície por uma cordinha de náilon de pesca, quase invisível, escondida pela tampa do poço. Quando Eurico tentou puxá-la, a embalagem entalou.

Ele então não teve dúvida. O poço era raso, a água estava a uns dois a três metros de profundidade. Aí improvisou um apoio com uns sarrafos velhos que encontrou por ali e desceu com auxílio da corda grossa do balde. No meio da descida, despencou dentro d´água. Mas conseguiu sair com facilidade. E chegou ao solo com o disputado troféu: Dentro da caixa estava a tal escritura! E mais 10 mil reais em dinheiro!

Mota e o delegado Norberto ficaram em estado de choque. O preço da casa, comprada à vista: 180 mil reais! Duas descobertas impressionantes: Sim, o guarda Narciso estava envolvido em algum negócio grande e escuso. E, sim, o jovem Eurico, com sua cara de songamonga e seu ar pouco inteligente, tinha dado um coro neles – o cara era fera! Aquilo é que era vocação!

Agora tudo mudava no tabuleiro de xadrez do caso Silva. Narciso estava envolvido, era evidente. Tinha recebido dinheiro para facilitar a entrada do cúmplice de Schlikmann!

Mas Eurico levantou outra hipótese:

– Por que um cúmplice entrando na delegacia? Vocês não estão considerando que o cúmplice pode ter sido o próprio Narciso e mais ninguém!

– Caramba, doutor, o menino tem razão. Se o cara recebeu toda essa grana, pode ser ele mesmo o ajudante de Schlikmann.

– Sim, cabe a hipótese mesmo – disse o delegado – O Narciso pode muito bem ter trazido os bagulhos para o Schlikmann aplicar no Silva.

– E, nesse caso – comentou Eurico – o cúmplice não precisou entrar na delegacia. O cúmplice era alguém lá fora, alguém, que tinha acesso ao veneno e às outras coisas. E ele deu isso tudo para o guarda.

Mota completou:

– E o guarda entregou para o Schlikmann executar o Silva.

– Com certeza – confirmou o delegado.

Mas o rapaz em treinamento discordou:

– No seu lugar, delegado, eu não teria tanta certeza.

– Como assim, rapaz? Ora, você viu o filme da confissão do alemão, é claro que foi ele.

– Pois para mim pode não ter sido ele. Acompanhem o meu raciocínio: Aquilo pode ser uma mímica, uma reprodução, até uma celebração do que o Seu Schlikmann VIU acontecer. Ele viu alguém matar o Silva, viu alguém dar a tal injeção letal, ficou muito feliz com isso, é claro. Mas ele está doidão, o que ele fala não pode ser levado ao pé da letra. Além disso, uma vez que a gente sabe agora que o Narciso participou da coisa dentro da delegacia, tudo é válido: desde ele ter dado a coisa toda pro Schlikmann até ele ter dado para qualquer dos outros presos ali dentro da cela matarem o Silva. E até não ter dado para ninguém, ter sido ele mesmo o executor de Valdemar Silva, ele aplicou o veneno.

 – Mas não pode! – objetou o delegado – A gente tem certeza que foi o Schlikmann! O Narciso descobriu aquele cara que entrou pelo telhado e jogou os bagulhos...

E aí o delegado parou, ao ver o sorriso de mofa do seu jovem aprendiz. E caiu em si:

– Caralho! O Narciso nos enganou, foi tudo uma cortina de fumaça!  

– Isso mesmo, chefe. Ele encenou a tal descoberta para afastar suspeitas de cima dele. Ele deve ter ficado o tempo todo muito intranquilo, com medo de ser descoberto.

– Filho da puta! – berrou o Mota – O desgraçado nos levou no bico direitinho.

O aprendiz observou:

– Eu acho que ele fez essa encenação porque ele ia pedir baixa da polícia e se mandar daqui. Para que nunca desconfiassem dele. Ia embora e deixava a história do tal cúmplice voador do telhado plantada na cabeça de vocês. E ainda saía como herói.

O delegado balançou a cabeça para os lados e fez uma cara de desanimado:

– Caramba, a gente pode ter estado errado o tempo todo. E aí chega esse menino-prodígio e põe tudo de pernas pro ar.

– Sabe o que é, delegado. Eu acho que o senhor ficou com muita raiva desse Schlikmann e decidiu que ele tem que ser o assassino e ponto final. Eu, como não tenho nada com o peixe, cheguei agora no caso, fico mais isento, posso ver com mais clareza. E, pra mim, ele é tão suspeito quanto o Narciso e qualquer dos caras dentro da cela. Qualquer um pode ter dado a injeção fatal no Silva.

O delegado Oliveira ainda tentou resistir:

– Bem, tecnicamente, sim. Mas na prática... Porra! – e deu um tapa na testa – Na prática também! Garoto, você é do caralho, você pode estar certo!

– Assim como posso estar errado. Mas só não podemos deixar de considerar todas as hipóteses. Inclusive esta, de que Adolfo Schlikmann é inocente, não matou Valdemar Silva, apenas testemunhou seu assassinato. Mas agora isso nem é o mais importante.

– Não é? – estranhou o carcereiro Mota.

– Não – respondeu Eurico – Porque o assassino, seja ele quem for, já está resolvido no que interessa para nós de imediato: ou ele é um dos que estavam lá na cela – e todos ainda estão lá, bem seguros – ou ele foi o guarda Narciso – que já não está mais neste mundo. Ou foi o Schlikmann, e ele também está engaiolado. O que é importante agora é encontrar o pessoal de fora.

– Pessoal de fora?... – quem estranhou agora foi o delegado.

– Sim, chefe. O assassino executor está preso ou está morto. Mas ele pode ter sido ajudado por gente de fora ou pode ter sido apenas o executor de um plano arquitetado por gente de fora. De fora da delegacia, eu quero dizer. Que não estava lá na hora do crime.

CONTINUA

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