MILTON MACIEL
77 - OS AMARELOS
Fim do cap. 76: "...agora mais esperto, fez questão de levar o estagiário com cara de pouco inteligente junto. Como as aparências enganam, pensou. O estagiário era um crânio!
Na tarde
seguinte, pontualmente às 14:30, O delegado Oliveira e seu estagiário, o
investigador Eurico, estavam na Funerária Paz do Meu Amor, esperando para serem
atendidos pelo proprietário, Alcebíades Trancoso.
O
delegado notou que seu auxiliar estava pouco à vontade naquele ambiente.
Estavam no que se poderia chamar de ‘loja’, a parte onde diversos caixões de
defunto estavam expostos; alguns, de evidente valor maior, na horizontal, sobre
armações metálicas luxuosas; e outros, mais modestos, na vertical, simplesmente
encostados nas paredes. Havia uma profusão de grandes castiçais, armações para
círios e coroas e muitos acessórios dourados e prateados. O cheiro de madeira recém-envernizada
inundava todo o ar, atingia até mesmo a calçada em frente à loja.
O
delegado comentou com o estagiário, que, observou, estava cada vez menos à
vontade naquele ambiente:
– Cheiro
forte este, não?
–
Horrível! Para mim é o cheiro da morte.
– Cheiro
da morte?
– Ah,
delegado, o senhor pode achar infantilidade minha e vai estar certo. Mas deixe
eu lhe contar de onde vem isso. Quando eu era pequeno, na minha cidade, todo
dia me mandavam buscar pão na padaria. Eu devia ter uns sete anos, por aí.
Acontece que, para chegar na padaria, eu tinha que passar em frente à
funerária. Pra mim era um horror, um suplício. Os caixões eram colocados, toda
manhã, encostados na parede como estes aqui, só que do lado de fora, na
calçada! Eu morria de medo.
–
Engraçado isso...
–
Engraçado? Era pior que filme de terror! Eu passava pela calçada do outro lado,
não olhava quando chegava perto, chegava a fechar os olhos. Mas não adiantava.
Eu sabia que estava passando bem em frente àquela maldita funerária por causa
do cheiro. Este mesmo cheiro horroroso que tem aqui agora. Aí eu passava
tremendo. E correndo. E trancava a respiração, eu achava que se aspirasse o
cheiro da morte, eu podia morrer ali mesmo. E, como fechava os olhos, algumas
vezes eu me estabacava todo no chão, uma vez ralei feio o joelho. No fim, tanto
supliquei à minha mãe que ela começou a mandar meu irmão mais velho na padaria.
O raio da padaria ficava bem em frente à funerária, não adiantava dar uma volta
muito maior pela rua de trás.
– Pô,
isso ficou assim até hoje, então?
– Ficou.
Pro senhor ver como essas experiências de criança marcam a gente. Hoje eu sou
policial, convivo com todo tipo de violência, gente arrebentada e furada, e não
me impressiono com nada disso. E nem com morto também. Agora, basta ver um
caixão de defunto, eu tremo na base! E este cheiro, então...
– Você
prefere esperar lá fora, então? Quer que eu entreviste o homem sozinho?
– Não,
delegado. O dever em primeiro lugar. Eu sei que isso é só um chilique, uma
infantilidade, como eu disse. Quando a gente for embora, isso passa. Ah, graças
a Deus, lá vem o homem!
Alcebíades
Trancoso entrou no recinto da loja, exibindo um sorriso de satisfação. Era
muito raro que ele recebesse visitas ali. Aquilo era recinto de receber
clientes, normalmente os parentes de um defunto ou quase-defunto. Ou,
raríssimas vezes, o próprio candidato a defunto, que vinha escolher e
encomendar seu próprio caixão, indivíduo previdente e precavido. Visitas mesmo eram
muito raras. Até porque, parecia-lhe isso um contrassenso, as pessoas morriam
de medo da morte. Ora, como se a morte não fosse a coisa mais natural da vida!
Para ele, depois de todos esses anos trabalhando como agente funerário, a morte
chegava a ser uma coisa não só naturalíssima, mas também desejável e bonita.
Era
graças à morte que ele, injustamente apelidado de papa-defunto por aquele povo
ignorante – ora, quem papa o defunto é a terra, fria e indiferente – exercitava
seus dons artísticos com a excelência de um mestre. O que podia haver de mais
nobre e mais belo do que restaurar o rosto de um morto, acabado pela velhice ou
pela doença – quando não por ambas ao mesmo tempo – e reconduzi-lo ao esplendor
de uma face recomposta, brilhante, serena, feliz até.
Como não
sentir um enorme orgulho de seus dons de criador, se era ele mesmo que
desenhava e fazia executar seus caixões com requintes de um grande mestre
marceneiro, um verdadeiro entalhador-escultor E os forros, então? Que soberbas
combinações de cores e que maciez de acolchoados! Que satisfação que dava ver
um defunto comodamente estendido em sua alfombra final, usufruindo de um
conforto como poucas vezes tivera em vida, mergulhado na nobreza de um tecido
importado.
Efetivamente,
Alcebíades Trancoso amava o que fazia, entregava-se de corpo e alma à sua
maravilhosa vocação, por isso era reconhecido por todos naquela cidade como o
grande agente funerário que de fato era. Jamais, em mais de vinte e cinco anos,
qualquer dos diversos agentes que tentaram concorrer com ele no mercado de
Amarante conseguiu se estabelecer na praça. O último, um experiente concorrente
vindo de Curitiba, não tinha resistido nem um ano na cidade. Fechou o seu
negócio quando compreendeu que não tinha como concorrer com um grande mestre. E
vendeu o seu estoque de caixões paranaenses ao próprio Alcebíades. Que os
comprou mais por piedade do pobre homem, aquilo não era mercadoria digna de
entrar em sua loja. Tanto que os repassou logo depois a um autêntico
papa-defuntos da cidade de São José.
Agora
ele entrava em sua loja com a cabeça erguida e o peito estufado. Os visitantes
eram ilustres e suas mercadorias eram o que havia de melhor na cidade.
Cumprimentou efusivamente o delegado e o jovem que estava com ele e os levou,
embora não os percebesse muito entusiasmados com isso, para fazer um
caixão-tour pela loja toda. Frente a cada produto mais nobre ele o abria e
exibia o esplendor interno daquela obra de arte, quase que se persignava ante
uma relíquia sagrada.
O
estagiário estava cada vez mais apavorado, pálido e sentindo engulhos no
estômago e no baixo ventre. O delegado percebeu isso, achou que o ajudante ia
desmaiar logo, logo. Então resolveu fazer algo para acabar como o city-tour
funerário:
– Seu
Alcebíades, nós estamos realmente encantados com a sua loja, com a qualidade
dos seus produtos todos. Amarante tem mesmo que se orgulhar do senhor e da sua
funerária Paz do Meu Amor. Mas a razão de nossa presença aqui é de natureza
ultrassecreta, liga-se a uma investigação de assassinato. Como senhor tem
funcionários por aqui e, sabe como é, para nós policiais, as paredes todas têm
mesmo ouvidos, eu queria lhe convidar para a gente conversar ali dentro da
nossa viatura. É rapidinho e não tem sol hoje. O que o senhor me diz?
– Hum,
investigação de assassinato! Ora, será uma honra para mim, se eu puder
colaborar com a polícia de Amarante. Claro, claro, vamos saindo, vamos
conversar na viatura, sim.
Eurico
Pompeu pareceu voltar à vida enfim, saiu quase correndo para fora, a pretexto
de ir abrir as portas do veículo. Engoliu de volta a saraivada que já estava
pronta para saltar de seu estômago. Bendito delegado, ficava devendo esta! Mais
um pouquinho e ia dar o vexame de vomitar dentro daquele caixão de luxo,
emporcalhar o nobre tecido roxo importado. Ufa!
Já
comodamente instalados na grande camionete, o delegado começou:
– Pois,
Seu Alcebíades, nós estamos começando a investigar todas as mortes ocorridas em
Amarante nos últimos três anos, cuja causa tenha sido infarto fulminante do
coração. Veja bem, só casos em que a pessoa morreu no primeiro e único ataque.
Quer dizer, fulminante mesmo! É claro que temos os nossos médicos para nos
darem todas as informações, afinal o atestado de óbito é obrigatório e um deles
sempre assina o dito cujo.
– Mas aí
nós nos lembramos de senhor. Quase todos os mortos de Amarante acabam passando
aqui pela sua casa, são tratados, lavados, vestidos, encaixotados aqui. Alguns
médicos viram alguns defuntos, Seu Alcebíades. Mas o senhor viu TODOS eles! Não
é fato?
Alcebíades
Trancoso encheu o peito de orgulho e confirmou:
– Ah, meu rapaz, isso é que dá não ter
concorrentes nesta cidade. No fim vou eu para o sacrifício, que remédio!
– Pois
então, Seu Alcebíades, nós achamos que é bem provável que o senhor lembre de
muita coisa a respeito desses mortos e...
– Ora,
meu caro delegado, eu não lembro apenas. Eu tenho tudo rigorosamente
registrado. Cada morto que passa por aqui tem um prontuário, com dezenas de
informações, algumas bem sigilosas. E tem, também, um belo álbum fotográfico,
porque eu não deixo escapar um só dos meus trabalhos de maquiagem e
recons-tituição sem um bom registro de imagens. Mas o que é, exatamente, que os
senhores estão procurando? E por que?
– Bem –
respondeu o delegado – estamos procurando todas as informações possíveis sobre
pessoas que morreram de ataque fulminante do coração. E que, para o senhor e seus
registros implacáveis, tenham algo que tenha lhe parecido diferente.
–
Diferente, como?
O
investigador Eurico respondeu:
– Algo
esquisito, inusitado, estranho. Que chamasse sua atenção, em resumo. O senhor
lembra, antes de mais nada, quantas pessoas foram atendidas aqui na sua casa,
que morreram do coração assim de repente?
– Nos
últimos três anos? Hum, deixe ver, deixe eu pensar...
O
papa-defuntos (desrespeitoso nome!) mergulhou em seus pensamentos e deixou-se
ficar absorto por vários minutos, de olhos cerrados, fechando de vez em quando
mais um dedo, numa contagem silente. Os policiais mantiveram- se na mais muda
expectativa. Finalmente Trancoso falou:
– Foram
nove! Exatamente nove. Isso daria uma média de três por ano. Mas não foi assim.
Foram dois, mais dois, mais cinco. Cinco do meio do ano passado até este começo
de ano. Contando já o Valdemar Silva, que foi o último que eu recebi aqui, dos
que morreram de infarto fulminante.
– E quem
foram essas pessoas?
–
Jovens, delegado. Relativamente jovens, a maior parte. Começa com um ajudante
de açougueiro, rapaz de menos de trinta, o Girolamo. Depois veio a velha
Matilde, uma exceção, tinha mais de setenta anos e era dona de um puteiro que
hoje não existe mais. No outro ano morreram o Evangelista, vendedor das
Pernambucanas. Tinha 38 anos. E o Viriato, que era um gigolô e jogador, pinta
braba, com seus 50 anos. E agora, os últimos cinco, são: O Pimenta, o João
Melo, o Siegfried, a Lurdinha e o Valdemar Silva.
O
estagiário perguntou:
– E como
eram esses, fora o Valdemar Silva?
– Bom, o
Pimenta era o dono de uma transportadora menor, lá de Rio dos Cedros. Tinha
mais de 50 anos, preciso ver na ficha a idade certa. Lembro que, depois que ele
morreu, o Valdemar Silva foi lá e comprou a transportadora da viúva. Ele falava
aqui que essa concorrente dele não valia nada, que comprou só pra ajudar a
viúva de um colega. Pagou uma bagatela. Depois morreu... Ah, o João Melo! Era
bem novo, menos de 40 anos, magro, atlético, corria, jogava futebol. Morreu do
coração, mas parece que provocado o problema por um choque elétrico que ele
levou no chuveiro, momentos antes.
– E o
Siegfried?
– Esse
já estava perto dos sessenta. Não tinha boa saúde, era muito gordo, bebia
cerveja demais, viciado em carne de porco. Apagou durante um churrasco.
Levantou pra fazer um discurso de gozação e emborcou. Mortinho!
– E a
última pessoa, fora o Valdemar, que a gente já conhece o caso?
– Bem a
última pessoa foi a mais jovem de todas. E uma mulher. A Lurdinha. Tinha só 26
anos. E linda, uma pintura. Uma lástima, mulher bonita não devia morrer jovem,
ainda que isso prejudique os meus negócios. E uma lástima muito maior,
delegado: a autópsia descobriu que moça, que era solteira, estava grávida. O
feto morreu, eu fiz um caixãozinho branco diminuto, uma joia, lindo demais, uma
obra-prima.
–
Trágico, mesmo, gente. Que pena...
– Pois
é, seu moço, às vezes, nesta minha profissão onde se ganha com a morte dos
outros, até eu mesmo fico contrariado com a morte. Essa menina não devia ter
morrido, ia ser uma mãe em poucos meses.
– E o
pai da criança. Seu Trancoso? Quem era?
– Ficou
no mistério, delegado. Mas as más línguas cochichavam, sabe como é cidade
pequena, doutor. Diziam que tinham visto ela, mais de uma vez, com alguém lá da
Transportadora do Valdemar Silva. Tinha as que afirmavam que era o próprio
Valdemar, outras que garantiam que era aquele gerente dele, o que foi embora há
poucos dias pra terra dele.
– O tal
de Bergonzi?
– Esse
mesmo, menino. Mas eu não posso afirmar nada, era tudo boato corrente aqui no
ano passado.
O
delegado Oliveira resolveu dar uma demonstração de sua satisfação:
–
Muito bem, Seu Trancoso, o senhor está sendo simplesmente fantástico pra gente.
Já nos ajudou muito, mesmo! Agora, tem mais alguma coisa, nesses casos todos,
que tenha chamado a sua atenção? A tal coisa insólita, esquisita, como disse o
meu ajudante aqui.
O agente funerário coçou
a cabeça, pensou mais um pouco, pareceu hesitar um pouco, mas acabou falando:
– Olhe,
delegado, nas mortes dos outros anos, não. Mas nestas últimas incluindo o
Valdemar Silva nisso, tem alguma coisa que me deixou com a pulga atrás da
orelha. Pode ser uma bobagem, uma coisa sem importância. Pode ser até que as
pessoas tivessem uma doença do fígado, sei lá.
– E que
coisa era essa, Seu Alcebíades?
– Pois
olhe, rapaz, não em todos, mas em três deles, eu notei uma coisa esquisita
mesmo. A COR da pele deles.
O
delegado deu um pulo no assento da viatura, bateu com a cabeça no teto,
disfarçou o entusiasmo:
– Quais
deles?
– Pois o
Silva, a mocinha grávida e o Pimenta, o colega do Silva.
– Que
tal, delegado? – comentou Eurico, igualmente entusiasmado.
– A cor
era o AMARELO, Seu Alcebíades?
–
Caramba! Era isso mesmo, delegado. Como é que o senhor adivinhou?
– Muito
bem, caro Alcebíades Trancoso, chegou a hora de a polícia de Amarante lhe fazer
uma revelação. Uma revelação estarrecedora, uma revelação de um assassinato que
nós estamos mantendo em segredo até hoje. Eu sei muito bem que posso confiar no
senhor, como já demonstrou cabalmente na armação que a gente fez pra fingir a
morte do Celso Teles. Sem a sua participação e sem o seu sigilo, nada teria
dado certo. Pois prepare-se: Valdemar Silva foi assassinado! Não morreu do coração.
Foi envenenado.
O
papa-defuntos soltou um assobio de surpresa e disse:
–
Caramba! E isso tem a ver com a cor amarela dele?
– Tudo a
ver, Seu Alcebíades. O veneno usado provoca essa cor por algumas horas, até
desaparecer. Depois a cor e o resíduo do próprio veneno desaparecem. Se a gente
não colher o sangue até poucas horas depois da morte, uma exumação não encontra
mais resíduos dele.
–
Que coisa incrível, delegado! Mas então as outras duas pessoas, os outros dois
amarelos...
– Bem –
disse o investigador estagiário – é exatamente isso que nós estamos procurando
aqui com o senhor. E o mais incrível, é que NÓS ENCONTRAMOS!
– Seu Alcebíades
do céu! O senhor tem uma memória assombrosa! – falou o delegado, quase
gritando.
– Ora,
obrigado, delegado, mas isso não é nada perto do registro, das fichas que eu
tenho dessas pessoas. E das fotografias. Espere só que eu vou buscar no
arquivo. Vou demorar um pouquinho. Ah, agora eu compreendo porque vocês
quiseram falar comigo aqui na viatura. O caso é gravíssimo, pode corresponder a
mais de um assassinato. É ultrassecreto!
– Top secret, Seu Alcebíades. Sigilo
absoluto.
– Claro,
claro, contem comigo. Agora preciso ir pro escritório, com licença.
CONTINUA
Nenhum comentário:
Postar um comentário