quinta-feira, 10 de março de 2016

LUA  OCULTA – 76  
MILTON MACIEL 

76 – ERA UMA VEZ UM PÓ CHINÊS
Fim do cap. 75:  "Sim, chefe. O assassino executor está preso ou está morto. Mas ele pode ter sido ajudado por gente de fora ou pode ter sido apenas o executor de um plano arquitetado por gente de fora. De fora da delegacia, eu quero dizer. Que não estava lá na hora do crime.

– Sim, sim – concordou o delegado – Os bagulhos que mataram o Silva não vieram caminhando sozinhos para a delegacia. E, ao que tudo indica, o Narciso foi o caminho de entrada, ele é que barrava a única entrada da delegacia.

Mota completou:

– E aí sabemos que ele levou uma nota preta, que deu até para comprar uma casa. E começou a bancar a putinha dele, também. E isso há coisa de três meses pra cá.

– E essa moça disse pro delegado que ele estava esperando receber uma outra nota preta por estes dias. Que só depois disso é que ele ia embora daqui.

– Isso mesmo, Eurico. Isso pode significar então...

Eurico emendou:

– Pode significar que ele marcou encontro naquele ermo pra receber o resto da grana.

– E recebeu chumbo no peito, no lugar de dinheiro – observou o delegado.

Mota continuou as deduções:

– Mau pagador! O filho da puta resolveu economizar essa parcela, eliminou o credor.

– Ou fez isso e mais um pouco: queimou o arquivo – disse Eurico.

– É isso, garoto! Tá na cara. Deve ter sido bem assim. Poupa uma grana preta e se livra de um possível estorvo. Ou chantagista...

– O senhor tem razão, delegado. Vai ver o Narciso andou exigindo mais grana pra ficar de bico fechado. Sim, sim, tudo isso é possível.

O Delegado Oliveira fez sinal de silêncio e falou:

– Bom, já evoluímos bastante. Agora vamos recapitular e ver o que a gente tem como certeza e o que nós temos como conjectura. Certo?

Certo, chefe. Vamos lá – disse Eurico Número Um: Certezas. O guarda Narciso se vendeu e ajudou no crime. Recebeu um bom dinheiro por isso. Enganou vocês com a xaropada do telhado. Ia embora daqui com a mulherzinha dele para Umuarama, no Paraná.

– E ele não pode ter feito tudo sozinho. O Narciso era uma toupeira, não podia saber nada de venenos complicados como esse, concordam?

– Cem por cento, chefe – respondeu Mota. E os assassinos, vamos dizer assim, internos, podem ser: Narciso, Schlikmann, o bandido do Paraná, os dois de Santa Catarina. Cinco caras ao todo.

Eurico sintetizou:

– Que estão todos engaiolados ou mortos. Então esses não precisam nossa atenção imediata. Depois a gente cuida deles. Logo...

– O assassino externo é que precisa da nossa atenção agora – afirmou o delegado.

– Ou os assassinos externos, chefe. Podem ser mais de um, não podem?

– Tem razão, rapaz. Podem, sim. Principalmente se não foi o Schlikmann o executor nem o mandante do crime. Por que, nesse caso, o que não falta neste mundo aqui fora é gente que odiava Valdemar Silva.

– Como esse Celso Teles, que ele tentou mandar matar. O cara pode muito bem ter se avivado e mandado queimar o Valdemar pra não ter que passar de novo por um sufoco daqueles.

O delegado pulou em defesa de Celso Teles:

– Não diga bobagem, garoto. Você não conhece Celso Teles. Esse é um cara do bem, por ele eu ponho a mão no fogo.

– Mas eu vi que vocês dois botavam a mão no fogo pelo Narciso e olha a queimadura que arranjaram...

– Não enche, guri! – queimou-se o Mota  E, quanto ao Celso, pode ir tirando o cavalinho da chuva, esse é dos nossos, é o cara mais decente de Amarante, pode ter certeza.

– Bom se vocês dois defendem o cara com tanta veemência... Ele deve ser alguém muito especial mesmo.

– E é, rapaz. Quando você conhecer o cara, você vai nos dar razão. Então vamos deixar o Celso de fora disto e vamos em frente.

Eurico concordou:

– Muito bem. Então vamos no focar no pessoal externo. O mandante e os possíveis auxiliares. Por onde começamos?

– Por quem conhece venenos e forma de matar pessoas com eles – respondeu o delegado – Acho que essa é a peça-chave para nós. Essa criatura, com certeza, é de fora, porque nem o Schlikmann, nem nenhum dos outros engaiolados, muito menos o Narciso, sabiam porra nenhuma sobre venenos.

– Concordo – disse Eurico – Vamos ter que achar o veneno, quem o vendeu, quem o comprou, quem sabia usar essa joça. E proponho outra linha de investigação: Quem tinha a ganhar com a morte de Silva?

– Bem – disse o delegado – em primeiro lugar, é claro, o Schlikmann, que se livrava de uma cara que tinha meio que jurado ele de morte. Depois vem, vamos ver... A mulher dele e a filha dele.

– As herdeiras, é claro – observou Mota, pensativo. De fato, com a morte do velho tirano, elas ficaram numa boa, as duas. Riquíssimas. Uma até mudou pra Paris, vejam só.

E a garota? – comentou Eurico – soube que o velho andou embolachando ela pra valer. Será que não quis se vingar e, ao mesmo tempo, botar a mão na grana?

– Furado, garoto, o velho batia na filha a toda hora, desde criancinha. Mais fácil que fosse aquele padrinho dela, o mecânico, o... como é mesmo...

– O Rondelli, chefe.

– Isso, Mota. Obrigado. Eu acho mil vezes mais fácil o italiano emputecer com o Silva por causa das porradas na menina. Eu fiquei sabendo que ele é que defendia a garota das surras que os pais davam nela. Ele é padrinho da menina. Só que não me parece o cara que manja de venenos. E acho, que pelo jeitão dele, se ele resolvesse matar o Pitoco, ia na cara dele e descarregava um tresoitão na barriga do velho.

– Sempre se pode contratar um farmacêutico. Ou um agrônomo. Ou veterinário. Parece que o tal veneno é de uso agropecuário, não é?

– É, sim, Eurico. Inclusive, na época, a gente passou um pente fino em todas as lojas de agropecuária de toda a região, sem resultado algum, ninguém comprou aquilo por aqui. Mas o Dr. Krause, que foi o médico que descobriu o uso do veneno, já tinha nos dito que isso não é usado no Brasil normalmente, que possivelmente veio de fora do país, trazido ou comprado por quem, possivelmente, pretendia usar isso num crime.

– Hum muito interessante – observou Eurico. Como é mesmo o nome do veneno, já esqueci do que li no laudo do legista.

– Pois pra mim – disse o delegado – esse legista, o Dr. Krause, é inesquecível. Um bamba, um cobra, um gênio. Sacou na hora o que podia ser, deu o diagnóstico sem assinar o laudo e mandou a gente esperar o resultado dos exames. Quando esses vieram, não deu outra: Fluoracetato de sódio na cabeça. Aliás, no caso do Silva, a gente devia dizer no ombro, no bigode que ele não usava e no braço, injetado.

O estagiário comentou:

– Ah, sim, isso mesmo: fluoracetato de sódio, um tremendo de um veneno para ratos, que depois foi proibido nos Estados Unidos porque matava era um monte de gente. Morte acidental por manuseios e morte intencional por assassinato.

O delegado confirmou:

– Isso mesmo. E o negócio só é fabricado na China, hoje em dia. E não é importado regularmente aqui no Brasil. Então quem conseguiu o veneno, conseguiu por baixo dos panos.

Trouxe de fora pessoalmente. Ou mandou vir de fora. Com que intenção? Com certeza não foi para matar ratos. Não é, delegado?

– Claro que não, Mota. O mais provável é que fosse para matar gente, isso sim. O que nos leva a pensar num crime muito bem premeditado.

– Isso mesmo, delegado – falou Eurico – E por alguém que ficou sabendo como é que essa joça funciona e como é que se mata com ela. Só que não precisa ser químico, nem farmacêutico, nem agrônomo ou veterinário para ficar sabendo disso. Hoje a Internet tem fartura de material sobre venenos e envenenamentos.

– E tem outra coisa, rapaz: tem muito livro policial, livro de mistério, onde o autor conta como o crime é cometido usando o veneno x ou y, com todos os mínimos detalhes. E fora os filmes que são feitos a partir desses livros. Eu lembro de um monte de venenos que me foram apresentados pelos livros de Agatha Christie, por exemplo.

– Pois é, chefe – respondeu o estagiário – Isso tudo nos deixa no mato sem cachorro. A rigor qualquer um, aqui em Amarante, pode ter tomado conhecimento desse tal raticida 1080, o fluoracetato de sódio. Daí o passo seguinte é conseguir o produto através de importação ou contrabando. Ou, o mais provável, simplesmente trazendo o bagulho na mala ou no bolso, numa viagem ao exterior.

– Tá certo, isso é o mais provável, mesmo. Afinal, basta um nadinha dessa merda pra matar até um elefante, caramba. Um envelopinho no bolso e tchau e bênção.

– Opa, pera aí, pera aí um pouco Mota! Isso que você disse agora me deu uma ideia. Para tudo, será que a gente não pode tomar um cafezinho, pra esfriar a cabeça e esquentar a barriga? Vamos lá, vamos no boteco da esquina. Enquanto isso eu vou pensando mais nessa ideia. Pode ser, chefe?

– Por mim tá bom, rapaz. Mas que ideia é essa?

– Me dê só mais um tempinho, chefe. Só o tempo de a gente tomar o café. Quero pensar se não é só palpite furado.

Saíram os três da delegacia, que estava às moscas mesmo e impuseram-se um tempo de descanso para as cabeças. A ideia do café acabou não sendo muito boa, porque a bebida do boteco estava no mais agudo grau 3F – fraco, frio e fedorento. Mas foi positiva porque deu ao estagiário Eurico o tempo que ele precisava para colocar as coisas em ordem na cabeça.

Então, ainda maldizendo o gosto do café que havia a caro custo engolido e jurando para si mesmo que nunca mais faria isso outra vez, o aprendiz de feiticeiro abriu o jogo:

– Por favor, delegado, considere o que eu vou dizer: Em primeiro lugar, acho que podemos fechar questão, como ponto de partida, que quem obteve esse pó chinês foi uma pessoa aqui de Amarante, certo?

Os outros dois fizeram que sim com a cabeça, o suficiente para o estagiário prosseguir:

– Muito bem. Então essa pessoa consegue a muamba de alguma forma e atem aqui na cidade. Com que finalidade? Para matar todos os ratos de Amarante num dia só. Ou para matar alguém.

– Par matar alguém, é óbvio. Mas, e daí, qual é a novidade? Onde você está querendo chegar, exatamente.

– Exatamente nisto, delegado. Imaginemos que o pó não tenha vindo para matar especificamente Valdemar Silva. Suponhamos que tenha vindo para matar alguém ANTES de matar Valdemar Silva. É possível?

Mota concordou:

– Sim, é perfeitamente possível. A pessoa que matou o Silva, nesse caso, já matou alguém com esse veneno antes. É essa a ideia?

– Exatamente essa. E isso nos leva ao que?

– A uma nova linha de investigação – respondeu o delegado Oliveira, já todo entusiasmado com o que estava pensando.

– E qual é a linha óbvia, delegado?

– Ora, você sabe muito bem, seu Sherloquinho. Isso mesmo que você sugeriu, sem precisar dizer claramente: Investigar se, antes de Valdemar Silva, alguém por aqui teve uma morte misteriosa como a dele.

– Pior, delegado: se alguém teve uma morte dada como natural e, especificamente, por ataque cardíaco, como acontece com o uso desse tal 1080.

– Pô, rapaz! – Protestou Mota – Se a gente se der um período de uns três anos, que seja, de investigação, vamos achar uma pá de gente que bateu as botas por causa do coração nesta cidade.

– Ah, mas vocês não têm um sogro médico dono de hospital como eu tenho – falou todo sorridente o delegado Oliveira – Um sogrão esperto pra burro e que adora um mistério também. Pelo hospital dele deve ter passado muito enfartado. Tem só mais um hospital em Amarante. E poucos médicos. A gente pode ir a todos eles, muitos trabalham ou trabalharam com o meu sogro. E aí a gente descobre, acho que rapidamente, quais foram as pessoas que morreram de enfarto fulminante em Amarante nos últimos anos. Todas elas!

Pois olhem – interrompeu Mota – eu acho que há uma outra pessoa que pode nos ajudar muito nesse assunto. Uma pessoa pela qual passou e ainda passa a quase a totalidade dos defuntos de Amarante, há pelo menos uns vinte anos.

– Porra, Mota! Que ideia do cacete, cara! Isso mesmo, o nosso bom papa-defunto, nosso amigo Alcebíades Trancoso! Um cara super-observador, meticuloso, que tem registro de tudo. E que, ainda mais, tem uma memória cavalar. Cara, a gente tem que começar por ele. Só depois eu vou perturbar o meu sogro e coloco o Doutor Luzardo na jogada. Os presuntos cardíacos passaram por diversos médicos e por dois hospitais. Mas todos eles passaram, depois disso, pelas mãos cuidadosas de Alcebíades Trancoso.

Excitadíssimos com a nova possibilidade, trataram de marcar uma visita ao papa-defuntos na sua Funerária Paz do Meu Amor. O homem marcou para o dia seguinte, às duas da tarde, no momento estava ocupadíssimo com um freguês novo, que estava sendo preparado para sepultamento no dia seguinte. Não. Coração não, disse o agente funerário. Este aqui morreu de porre mesmo, é o tal de Pinga de Mel, bebeu a última cachaçada da vida dele. Vocês precisam ver a cara de feliz do desgraçado agora.

Na tarde seguinte o delgado Oliveira pediu para Mota ficar tomando conta da delegacia e foi conversar com Trancoso. Mas, agora mais esperto, fez questão de levar o estagiário com cara de pouco inteligente junto. Como as aparências enganam, pensou O estagiário era um crânio!

CONTINUA

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