MILTON MACIEL
76 – ERA UMA VEZ UM PÓ CHINÊS
Fim do cap. 75: "Sim, chefe. O assassino executor está preso ou está morto. Mas ele pode ter sido ajudado por gente de fora ou pode ter sido apenas o executor de um plano arquitetado por gente de fora. De fora da delegacia, eu quero dizer. Que não estava lá na hora do crime.
– Sim,
sim – concordou o delegado – Os bagulhos que mataram o Silva não vieram caminhando
sozinhos para a delegacia. E, ao que tudo indica, o Narciso foi o caminho de
entrada, ele é que barrava a única entrada da delegacia.
Mota
completou:
– E aí
sabemos que ele levou uma nota preta, que deu até para comprar uma casa. E
começou a bancar a putinha dele, também. E isso há coisa de três meses pra cá.
– E essa
moça disse pro delegado que ele estava esperando receber uma outra nota preta
por estes dias. Que só depois disso é que ele ia embora daqui.
– Isso
mesmo, Eurico. Isso pode significar então...
Eurico
emendou:
– Pode
significar que ele marcou encontro naquele ermo pra receber o resto da grana.
– E
recebeu chumbo no peito, no lugar de dinheiro – observou o delegado.
Mota
continuou as deduções:
– Mau
pagador! O filho da puta resolveu economizar essa parcela, eliminou o credor.
– Ou fez
isso e mais um pouco: queimou o arquivo – disse Eurico.
– É isso, garoto! Tá na cara. Deve ter sido bem assim. Poupa uma grana preta e se livra de um possível estorvo. Ou chantagista...
– O
senhor tem razão, delegado. Vai ver o Narciso andou exigindo mais grana pra
ficar de bico fechado. Sim, sim, tudo isso é possível.
O
Delegado Oliveira fez sinal de silêncio e falou:
– Bom,
já evoluímos bastante. Agora vamos recapitular e ver o que a gente tem como
certeza e o que nós temos como conjectura. Certo?
–
Certo, chefe. Vamos lá – disse Eurico –
Número Um: Certezas. O guarda Narciso se vendeu e ajudou no crime. Recebeu um
bom dinheiro por isso. Enganou vocês com a xaropada do telhado. Ia embora daqui
com a mulherzinha dele para Umuarama, no Paraná.
– E ele
não pode ter feito tudo sozinho. O Narciso era uma toupeira, não podia saber
nada de venenos complicados como esse, concordam?
– Cem
por cento, chefe – respondeu Mota. E os assassinos, vamos dizer assim, internos,
podem ser: Narciso, Schlikmann, o bandido do Paraná, os dois de Santa Catarina.
Cinco caras ao todo.
Eurico
sintetizou:
– Que
estão todos engaiolados ou mortos. Então esses não precisam nossa atenção
imediata. Depois a gente cuida deles. Logo...
– O assassino
externo é que precisa da nossa atenção agora – afirmou o delegado.
– Ou os
assassinos externos, chefe. Podem ser mais de um, não podem?
– Tem
razão, rapaz. Podem, sim. Principalmente se não foi o Schlikmann o executor nem
o mandante do crime. Por que, nesse caso, o que não falta neste mundo aqui fora
é gente que odiava Valdemar Silva.
– Como
esse Celso Teles, que ele tentou mandar matar. O cara pode muito bem ter se
avivado e mandado queimar o Valdemar pra não ter que passar de novo por um
sufoco daqueles.
O
delegado pulou em defesa de Celso Teles:
– Não
diga bobagem, garoto. Você não conhece Celso Teles. Esse é um cara do bem, por
ele eu ponho a mão no fogo.
– Mas eu
vi que vocês dois botavam a mão no fogo pelo Narciso e olha a queimadura que
arranjaram...
– Não
enche, guri! – queimou-se o Mota – E, quanto ao Celso, pode ir tirando o cavalinho
da chuva, esse é dos nossos, é o cara mais decente de Amarante, pode ter
certeza.
– Bom se
vocês dois defendem o cara com tanta veemência... Ele deve ser alguém muito
especial mesmo.
– E é,
rapaz. Quando você conhecer o cara, você vai nos dar razão. Então vamos deixar
o Celso de fora disto e vamos em frente.
Eurico
concordou:
– Muito
bem. Então vamos no focar no pessoal externo. O mandante e os possíveis
auxiliares. Por onde começamos?
– Por
quem conhece venenos e forma de matar pessoas com eles – respondeu o delegado –
Acho que essa é a peça-chave para nós. Essa criatura, com certeza, é de fora,
porque nem o Schlikmann, nem nenhum dos outros engaiolados, muito menos o
Narciso, sabiam porra nenhuma sobre venenos.
–
Concordo – disse Eurico – Vamos ter que achar o veneno, quem o vendeu, quem o
comprou, quem sabia usar essa joça. E proponho outra linha de investigação:
Quem tinha a ganhar com a morte de Silva?
– Bem – disse
o delegado – em primeiro lugar, é claro, o Schlikmann, que se livrava de uma
cara que tinha meio que jurado ele de morte. Depois vem, vamos ver... A mulher
dele e a filha dele.
– As
herdeiras, é claro – observou Mota, pensativo. De fato, com a morte do velho
tirano, elas ficaram numa boa, as duas. Riquíssimas. Uma até mudou pra Paris,
vejam só.
E a
garota? – comentou Eurico – soube que o velho andou embolachando ela pra valer.
Será que não quis se vingar e, ao mesmo tempo, botar a mão na grana?
– Furado,
garoto, o velho batia na filha a toda hora, desde criancinha. Mais fácil que
fosse aquele padrinho dela, o mecânico, o... como é mesmo...
– O
Rondelli, chefe.
– Isso,
Mota. Obrigado. Eu acho mil vezes mais fácil o italiano emputecer com o Silva
por causa das porradas na menina. Eu fiquei sabendo que ele é que defendia a
garota das surras que os pais davam nela. Ele é padrinho da menina. Só que não
me parece o cara que manja de venenos. E acho, que pelo jeitão dele, se ele
resolvesse matar o Pitoco, ia na cara dele e descarregava um tresoitão na
barriga do velho.
– Sempre
se pode contratar um farmacêutico. Ou um agrônomo. Ou veterinário. Parece que o
tal veneno é de uso agropecuário, não é?
– É,
sim, Eurico. Inclusive, na época, a gente passou um pente fino em todas as
lojas de agropecuária de toda a região, sem resultado algum, ninguém comprou
aquilo por aqui. Mas o Dr. Krause, que foi o médico que descobriu o uso do
veneno, já tinha nos dito que isso não é usado no Brasil normalmente, que
possivelmente veio de fora do país, trazido ou comprado por quem,
possivelmente, pretendia usar isso num crime.
– Hum
muito interessante – observou Eurico. Como é mesmo o nome do veneno, já esqueci
do que li no laudo do legista.
– Pois
pra mim – disse o delegado – esse legista, o Dr. Krause, é inesquecível. Um
bamba, um cobra, um gênio. Sacou na hora o que podia ser, deu o diagnóstico sem
assinar o laudo e mandou a gente esperar o resultado dos exames. Quando esses
vieram, não deu outra: Fluoracetato de
sódio na cabeça. Aliás, no caso do Silva, a gente devia dizer no ombro, no
bigode que ele não usava e no braço, injetado.
O
estagiário comentou:
– Ah,
sim, isso mesmo: fluoracetato de sódio, um tremendo de um veneno para ratos,
que depois foi proibido nos Estados Unidos porque matava era um monte de gente.
Morte acidental por manuseios e morte intencional por assassinato.
O
delegado confirmou:
– Isso
mesmo. E o negócio só é fabricado na China, hoje em dia. E não é importado
regularmente aqui no Brasil. Então quem conseguiu o veneno, conseguiu por baixo
dos panos.
Trouxe
de fora pessoalmente. Ou mandou vir de fora. Com que intenção? Com certeza não
foi para matar ratos. Não é, delegado?
– Claro
que não, Mota. O mais provável é que fosse para matar gente, isso sim. O que
nos leva a pensar num crime muito bem premeditado.
– Isso
mesmo, delegado – falou Eurico – E por alguém que ficou sabendo como é que essa
joça funciona e como é que se mata com ela. Só que não precisa ser químico, nem
farmacêutico, nem agrônomo ou veterinário para ficar sabendo disso. Hoje a
Internet tem fartura de material sobre venenos e envenenamentos.
– E tem outra
coisa, rapaz: tem muito livro policial, livro de mistério, onde o autor conta
como o crime é cometido usando o veneno x ou y, com todos os mínimos detalhes.
E fora os filmes que são feitos a partir desses livros. Eu lembro de um monte
de venenos que me foram apresentados pelos livros de Agatha Christie, por
exemplo.
– Pois é,
chefe – respondeu o estagiário – Isso tudo nos deixa no mato sem cachorro. A
rigor qualquer um, aqui em Amarante, pode ter tomado conhecimento desse tal
raticida 1080, o fluoracetato de sódio. Daí o passo seguinte é conseguir o
produto através de importação ou contrabando. Ou, o mais provável, simplesmente
trazendo o bagulho na mala ou no bolso, numa viagem ao exterior.
– Tá
certo, isso é o mais provável, mesmo. Afinal, basta um nadinha dessa merda pra
matar até um elefante, caramba. Um envelopinho no bolso e tchau e bênção.
– Opa, pera
aí, pera aí um pouco Mota! Isso que você disse agora me deu uma ideia. Para
tudo, será que a gente não pode tomar um cafezinho, pra esfriar a cabeça e
esquentar a barriga? Vamos lá, vamos no boteco da esquina. Enquanto isso eu vou
pensando mais nessa ideia. Pode ser, chefe?
– Por
mim tá bom, rapaz. Mas que ideia é essa?
– Me dê
só mais um tempinho, chefe. Só o tempo de a gente tomar o café. Quero pensar se
não é só palpite furado.
Saíram
os três da delegacia, que estava às moscas mesmo e impuseram-se um tempo de
descanso para as cabeças. A ideia do café acabou não sendo muito boa, porque a
bebida do boteco estava no mais agudo grau 3F – fraco, frio e fedorento. Mas
foi positiva porque deu ao estagiário Eurico o tempo que ele precisava para colocar
as coisas em ordem na cabeça.
Então,
ainda maldizendo o gosto do café que havia a caro custo engolido e jurando para
si mesmo que nunca mais faria isso outra vez, o aprendiz de feiticeiro abriu o
jogo:
– Por
favor, delegado, considere o que eu vou dizer: Em primeiro lugar, acho que
podemos fechar questão, como ponto de partida, que quem obteve esse pó chinês
foi uma pessoa aqui de Amarante, certo?
Os outros
dois fizeram que sim com a cabeça, o suficiente para o estagiário prosseguir:
– Muito
bem. Então essa pessoa consegue a muamba de alguma forma e atem aqui na cidade.
Com que finalidade? Para matar todos os ratos de Amarante num dia só. Ou para
matar alguém.
– Par matar
alguém, é óbvio. Mas, e daí, qual é a novidade? Onde você está querendo chegar,
exatamente.
–
Exatamente nisto, delegado. Imaginemos que o pó não tenha vindo para matar
especificamente Valdemar Silva. Suponhamos que tenha vindo para matar alguém
ANTES de matar Valdemar Silva. É possível?
Mota
concordou:
– Sim, é
perfeitamente possível. A pessoa que matou o Silva, nesse caso, já matou alguém
com esse veneno antes. É essa a ideia?
– Exatamente
essa. E isso nos leva ao que?
– A uma
nova linha de investigação – respondeu o delegado Oliveira, já todo entusiasmado
com o que estava pensando.
– E qual
é a linha óbvia, delegado?
– Ora, você
sabe muito bem, seu Sherloquinho. Isso mesmo que você sugeriu, sem precisar dizer
claramente: Investigar se, antes de Valdemar Silva, alguém por aqui teve uma
morte misteriosa como a dele.
– Pior,
delegado: se alguém teve uma morte dada como natural e, especificamente, por ataque cardíaco, como acontece com
o uso desse tal 1080.
– Pô,
rapaz! – Protestou Mota – Se a gente se der um período de uns três anos, que seja,
de investigação, vamos achar uma pá de gente que bateu as botas por causa do
coração nesta cidade.
– Ah,
mas vocês não têm um sogro médico dono de hospital como eu tenho – falou todo
sorridente o delegado Oliveira – Um sogrão esperto pra burro e que adora um
mistério também. Pelo hospital dele deve ter passado muito enfartado. Tem só
mais um hospital em Amarante. E poucos médicos. A gente pode ir a todos eles,
muitos trabalham ou trabalharam com o meu sogro. E aí a gente descobre, acho que
rapidamente, quais foram as pessoas que morreram de enfarto fulminante em
Amarante nos últimos anos. Todas elas!
– Pois
olhem – interrompeu Mota – eu acho que há uma outra pessoa que pode nos ajudar
muito nesse assunto. Uma pessoa pela qual passou e ainda passa a quase a totalidade
dos defuntos de Amarante, há pelo menos uns vinte anos.
– Porra,
Mota! Que ideia do cacete, cara! Isso mesmo, o nosso bom papa-defunto, nosso
amigo Alcebíades Trancoso! Um cara super-observador, meticuloso, que tem registro
de tudo. E que, ainda mais, tem uma memória cavalar. Cara, a gente tem que
começar por ele. Só depois eu vou perturbar o meu sogro e coloco o Doutor
Luzardo na jogada. Os presuntos cardíacos passaram por diversos médicos e por
dois hospitais. Mas todos eles passaram, depois disso, pelas mãos cuidadosas de
Alcebíades Trancoso.
Excitadíssimos
com a nova possibilidade, trataram de marcar uma visita ao papa-defuntos na sua
Funerária Paz do Meu Amor. O homem marcou para o dia seguinte, às duas da
tarde, no momento estava ocupadíssimo com um freguês novo, que estava sendo
preparado para sepultamento no dia seguinte. Não. Coração não, disse o agente funerário. Este aqui morreu de porre mesmo, é o tal de Pinga de Mel, bebeu a última
cachaçada da vida dele. Vocês precisam ver a cara de feliz do desgraçado agora.
CONTINUA
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