terça-feira, 8 de março de 2016

LUA  OCULTA – 74   
MILTON MACIEL 

74 – A MORTE OUTRA VEZ 
Fim do cap. 73:  "E de Camry novo, ficou sabendo. Esse japinha! Sempre amigo, sempre ético. Não desmerecia o pai a quem tinha saído em tudo. Menos no apetite. Hanashiro Ito fora sempre frugal e magrinho a vida inteira. E continuava sendo, na borda dos 90 anos." 

O mês passou em Amarante com um enorme burburinho gerado pela última novidade: o lançamento do grande projeto de shopping center, com suas torres cilíndricas de oito andares, uma para escritórios comerciais e a outra para apartamentos residenciais. As vendas na planta tiveram um grande sucesso, de fato eram oportunidades de negócios como nunca tinham acontecido na cidade.

A grande empresa incorporadora da obra, a firma paulista do Doutor Bernardo Hellis, tinha uma participação extraordinária no mercado e sua reputação era sólida e imbatível. Estavam há mais de vinte anos na praça e haviam construído e vendido mais de dezesseis grandes shoppings, desde Piracicaba, onde começaram, até Sobral, no Ceará. Sempre com características muito próprias: todos os shoppings eram construídos preferencialmente, há partir de uns dez anos, em cidades com menos de cem mil habitantes. Todos entregues e inaugurados rigorosamente dentro dos prazos contratados. E todos eles muito bem-sucedidos comercialmente para os lojistas que ousaram investir ali seu capital.

Duas grandes construtoras foram contratadas e começaram a trabalhar simultaneamente. A primeira levou menos de quarenta dias para botar abaixo a grande mansão Schlikmann, para alegria e entusiasmo de Leon. Não ficou pedra sobre pedra, tudo virou um grande chão terraplenado. A outra construtora começou a trabalhar nos fundamentos da grande construção do Shopping Amarante e de suas duas torres. Com a maior parte da obra do shopping seria construída com pré-moldados, o prazo total de execução estava estabelecido em contrato: um ano e meio. Já para as duas torres o prazo era maior: 21 meses.

Por outro lado, a transportadora Real Grandeza estava começando a tomar a cara do seu novo dono. Aos poucos Hiro Ito tomava pulso de todas as operações e já havia contratado um executivo em Blumenau para substituir Natanael Bergonzi, assim que ele deixasse e cargo de gerente e voltasse para sua terra natal, em Pernambuco.

Para o japinha eram dias de puro deleite. Terra nova, casa nova (havia alugado uma casa muito moderna quase ao lado da Transportadora, com uma bela piscina térmica), firma nova, amizade velha – Celso Teles – e amizades novas: todo o pessoal da Teles e muita gente legal que foi conhecendo no dia a dia de sua nova empresa e conquistando com sua inigualável simpatia.

Dois dias antes da partida de Bergonzi seus colegas de transportadora lhe ofereceram uma festa-surpresa inesquecível. Então o pernambucano pôde ver o quanto era apreciado por seus colegas subordinados. De fato, o gerente geral sabia exercer a autoridade com brandura e muita calma, ao contrário do falecido Silva, que era um casca-grossa da pior espécie. Cabia sempre a Natanael Bergonzi o papel de mediador, o de colocador de panos quentes, aquele que resolvia as crises que Valdemar Silva criava a todo instante com funcionários e com motoristas autônomos.

Por outro lado, em mais de 10 anos de gerência e mais de 15 anos de firma, nunca houve qualquer mancha em sua reputação. Sempre agira com total lisura, a ponto de se tornar aos poucos merecedor da confiança total do desconfiadíssimo Pitoco. Entrara na Real Grandeza quando tinha 28 anos e nunca mais saíra desse emprego. Não que o salário que Valdemar pagava fosse lá grande coisa. Mas, com o passar dos anos, à medida que ele se consolidava como funcionário exemplar e como gestor perfeito, Silva foi obrigado a lhe dar consideráveis bônus de fim de ano, principalmente depois que duas empresas concorrentes haviam tentado lhe levar o funcionário com propostas de salários muito mais altos. Valdemar, um grande unha-de-fome, foi obrigado a abrir aas burras e Natanael Bergonzi começou sua vida de poupador e investidor.

E aprendeu muito bem a operar com a Bovespa, a Bolsa de Valores de São Paulo. Tão bem que o próprio Pitoco se entusiasmou com os resultados que seu gerente alcançava para seus investimentos no mercado financeiro e acabou usando os serviços dele como se ele fosse um autêntico corretor. Propondo uma substancial participação nos lucros obtidos, Natanael passou a aplicar quantias muito grandes do seu patrão e alcançou resultados ainda mais convenientes. E, com isso, aumentou ainda mais o seu capital investido.

Por isso agora, Hiro entendeu muito bem, o pernambucano estava de fato em condições de deixar o emprego e passar a viver exclusivamente de sua atividade de investidor. Bergonzi lhe adiantara que pretendia investir também algo em imóveis em sua terra natal, provavelmente construiria sobrados para pessoas de renda baixa, tanto para aluguel, quanto para venda.

– Um avião, uma águia esse gerente do Valdemar! – comentou Hiro Iro numa conversa com Celso Teles – Acho que mereceu cada tostão que ganhou na Transportadora e na Bolsa. Tem uma fama de honestidade a toda prova e todo mundo na firma está lamentando a saída dele. Eu cheguei a lhe fazer uma proposta que eu achava irrecusável, mas ele nem quis saber de pensar no assunto. Me deu o não logo de cara. Uma pena. Parece que ele se garante, juntou um bom pé de meia.

– Olha, japinha, depois de conhecer como era o meu falecido quase-sogro, aquele filho da puta prepotente que mandou me matar, eu acho que esse cara merece umas boas férias eternas. Porque conviver com o Pitoco devia ser uma barra pesadíssima. Imagine merecer a confiança total daquele carne-de-pescoço: o Bergonzi deve ter engolido as próprias entranhas zilhões de vezes. Deixe o homem ir, japa, o cara deve estar traumatizado pro resto da vida.

Depois da festa que seus colegas lhe deram na firma e do bônus extra que Hiro lhe concedeu pelo extraordinário treinamento que ele proporcionou a seu substituto, enfim Natanael Bergonzi deixou sua rotina diária de mais de 15 anos na Transportadora Real Grandeza e se preparou para grande viagem para Caruaru.

O guarda Narciso

Dois dias antes de sua partida, mais uma bomba explodiu na cidade: o guarda Narciso foi encontrado morto dentro do seu próprio carro, um velho Gol, numa estrada vicinal a uns 10 quilômetros do centro de Amarante. Foi assassinado com um tiro à queima-roupa bem no coração. O assassino havia encostado o cano da arma no peito da vítima e disparado. A falta de qualquer ruído de tiro, bem como a exígua quantidade de pólvora encontrada ao redor do orifício da bala, levou à imediata suposição de que o criminoso provavelmente havia usado um silenciador.

O delegado Oliveira ficou estarrecido. Quem assassinou o guarda possivelmente soube de algo que era um grande segredo de que só ele e o carcereiro Mota tinham conhecimento. Pouco dias antes de ser morto, Narciso havia descoberto algo de diferente no telhado da delegacia. E havia feito o delegado e o carcereiro subirem por uma grande escada, colocada do lado de fora do prédio, até alcançarem o telhado. Ali o guarda tinha acabado de confirmar sua desconfiança: havia claros sinais de que as telhas não estavam bem encaixadas em um certo ponto da água esquerda do telhado.

Narciso andava cismado, como o delgado e o carcereiro, sobre como o alemão Schlikmann havia conseguido o veneno e a seringa, com os quais ele matou ou mandou matar o baixinho Valdemar Silva.

Que era Schlikmann o autor ou o mandante do crime, não havia dúvida alguma por parte do delgado e de seus dois auxiliares mais diretos, Mota e Narciso. Principalmente depois daquela virtual confissão que o alemão passara a fazer constantemente em seus delírios de louco – e que o Dr. Luzardo tinha conseguido gravar com o celular.

Mas o grande mistério persistia: Como?! Como o alemão tinha conseguido veneno e apetrechos para liquidar com o Silva? Pois ninguém, com certeza, havia entrado na delegacia pela porta da frente, guardada a noite toda por Narciso. E, muito menos, pelas janelas e porta dos fundos, gradeadas e intocadas as primeiras, lacrada totalmente a segunda.

Contudo, há coisa de três dias, Narciso, de tanto pensar e pensar fixamente nesse quebra-cabeças, tinha resolvido fazer a enésima inspeção no forro da casa. O delegado e o carcereiro lhe disseram que aquilo não ia dar em nada, cada centímetro quadrado daquele forro tinha sido examinado com todo o cuidado mais de uma vez. E nenhum sinal de arrombamento havia sido encontrado.

Só que, desta vez, Narciso achou algo! Ao invés de apenas examinar o forro atrás de sinais de violação, ele foi mais além. Forçou as tábuas de forro da velha casa em vários pontos. E, de repente, em um desses pontos, a junção entre eles cedeu. Narciso apoiou-se nas mãos e ergueu o corpo pelo buraco que ele mesmo abriu, deixando a alta escada em A que usara para subir até o nível do forro. E então, lá de cima, soltou um grito excitado:

– Ei, ei, tem alguma coisa aqui! Venham ver. Venham cá!

Mota e o delegado correram para a sala maior. E, lá de cima, onde Narciso havia afastado duas telhas para deixar entrar a luz do sol das 10 da manhã, ele jogou alguma coisa:

– Estava aqui em cima, bem neste ponto. Alguém andou por aqui e conseguiu abrir uma brecha neste forro. Grande o suficiente para jogar alguma coisa. Olhem só o que eu achei: uma luva de látex! E tem um monte de pegadas de tênis aqui, no poeirão, indo e voltando de um ponto ali mais adiante. Já vou pra lá!

Mota berrou para cima:

– Caramba! Boa, Narciso, grande dentro, cara! Você é danado, não sossegou enquanto não achou algo na casa.

O delegado, coçando a cabeça, comentou em voz mais baixa:

– Cacete, Mota, isso abre novas possibilidades pro caso, enfim! O cúmplice entrou por cima e jogou as coisas pro alemão. Ou fez mais, forçou mais a tábuas e conseguir passar. E aí deve ter descido com uma corda.

– Mas veja bem, chefe, a zorra que o narciso fez pra passar por ali, ficou um buracão, não acredito que o cara tenha feito nada tão grande assim, senão a gente tinha sacado logo de cara. Não havia qualquer marca nesse forro. Eu mesmo examinei essa parte da sala pelo menos três vezes.

– É, o cara deve ter aberto uma fenda grande o suficiente para jogar as coisas. O que nos leva à certeza que o alemão foi o executor do crime. E que o cúmplice só jogou de cima uma embalagem com os bagulhos todos: veneno em pó, líquido, seringa, luvas. Bem, é tudo muito pequeno, dá um embrulhinho de nada. Pode ser mesmo...

Nesse momento Narciso voltou a gritar lá de cima:

– Mais novidade: encontrei o ponto por onde o cara entrou no telhado, tem algumas poucas telhas mal encaixadas. E é o começo das pegadas. Acho que de fora não dá pra ver tão bem como eu estou vendo daqui de dentro. Como o telhado todo é muito antigo e não é nada santo no seu alinhamento, de fora não fica muito evidente a mexida. Vão buscar a escada grande na garagem dos fundos, coloquem por fora, deem uma olhada no ponto que eu vou sinalizar aqui de dentro. Eu vou tirar duas telhas perto, e aí mostro pra vocês o lugar.

Mota buscou a longa escada e o delegado subiu por ela até ultrapassar o nível da calha. E viu a cabeça e a mão do guarda Narciso apontando na direção de um grupo de quatro telhas que pareciam mesmo mais fora de lugar que as outras. De fato, lá de baixo isso não seria perceptível. E, quando de outras vezes eles tinham usado essa mesma escada para inspecionar o telhado como era feito agora, nada lhes chamou a atenção. Eram todas telhas muito velhas e cheias de fungos e líquens.

Só que agora, acompanhando a sinalização de narciso, era evidente que aquele grupo estava numa situação diferente de todas as demais. Sim, conclui o delegado, elas tinham sido mexidas naquela madrugada! Uma cara magro podia passar por ali, forçar as tábuas do forro, jogar os bagulhos pro velho Schlikmann e se mandar, repondo as telhas no lugar tão bem quanto pudesse fazer pelo lado de fora. À luz da noite e com medo de ser visto, o cara certamente tinha que fazer a coisa muito depressa.

Mota alcançou um celular para Narciso, que fotografou tudo abundantemente. Eram provas, enfim!
Quando os três já estavam tomando uma cerveja e comemorando a grande façanha do guarda Narciso, ainda pairava uma sombra escura sobre tudo:

E agora? – comentou o delegado – Como é que a gente vai explicar que não encontrou nenhum sinal, absolutamente nenhum, do lado de fora da casa. Pra chegar ao telhado, ou o cara usou uma corda – o que é bem improvável – ou uma escada como esta nossa. Mas como não ficou marca nenhuma?

– Chefe: e se o cara usou esta nossa escada mesmo?! Ela está lá nos fundos faz anos, desde a última pintura da casa, quando o novo prefeito veio visitar, lembra?

– Puta que pariu, Mota! Vamos voltar lá, vamos ver onde eu apoiei essa escada agora há pouco. Eu acho que você pode ter razão. Vamos, vamos!

Correram para fora e olharam o ponto onde a escada tinha sido apoiada pelo delegado: uma enorme laje de pedra, que cobria as caixas de gordura da casa!

– Foi isso! O porra apoiou neste mesmo lugar, não tinha como deixar marca. Ele andou pela calçadinha lá da garagem do fundo até aqui. Trouxe a escada até aqui, apoiou, subiu, abriu as telhas, o forro, jogou a bagulhada; e aí fez todo o serviço inverso, botou a escada de volta na garagem. E está rindo da gente até hoje, o filha da puta!

– Isso mesmo, delegado. Foi isso! – berrou todo entusiasmado o esperto Narciso – Ponto final: Schlikmann é o assassino mesmo e fim de papo.

– Merece outra cerveja, delegado. A gente tomou a única que tinha aqui, vou buscar mais?

– Vai, Mota, vai e traz logo três! Hoje é o dia mais feliz para mim em mais de três meses! Ah, fodemos com o alemão! Se fudeu, Fritz! Pô, Narciso, você merecia uma condecoração. Espera aí. Vamos entrar.

E, em frente a sua mesa, o delgado pegou a tampinha da garrafa de cerveja que tinham bebido e fez a brincadeira que todo moleque já fez várias vezes na infância: conseguiu tirar a parte interna e, com a ajuda dela por dentro da camisa, prendeu a tampinha no peito do guarda narciso como uma autentica medalha.

E, batendo continência, falou, solene:

– O Estado de Santa Catarina condecora você, bravo guarda Narciso Pereira, por este ato de coragem na Guerra das Alturas, com a mais alta comenda da ordem de Brahma-Antárctica.

Mota bateu continência também. A cerimônia foi completada com mais três garrafas de cerveja esvaziadas em pleno expediente. O delegado pensou: As regras que se fodam, hoje a gente abre uma exceção.

CONTINUA

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