terça-feira, 23 de setembro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 26ª Parte 
MILTON MACIEL 

Fim da 25ª parte:
Nesse momento do diálogo os dois foram interrompidos pelo alarido que acompanhava alguns outros índios que acabavam de chegar à taba e se dirigiam ao ponto onde sogro e genro conversavam. João reconheceu num deles o cacique Caiubi, o pai de seu amigo Jamari, que ele tinha conhecido no dia de sua chegada à praia. O outro homem era também um evidente chefe. Tibiriçá explicou:

– Aquele é Piquerobi, Cacique de Ururaí, meu irmão também. Ao lado está o filho dele, o jovem Jaguaranho. O outro você já conhece, é meu irmão Caiubi, cacique de Jurubatuba. Ururaí(1)  e Jurubatuba(2)  ficam aqui mesmo em Piratininga, a menos de um dia de marcha daqui de Inhapuambuçu (3) .

(1)  Ururaí – atual bairro paulistano de São Miguel Paulista
(2) Jurubatuba – atual bairro do mesmo nome, região de Santo Amaro
(3) Inhapuambuçu corresponde à região entre o Tamanduateí e o Anhangabaú, incluindo as áreas atuais do Pátio do Colégio e o do  mosteiro de São Bento)

26ª parte:
Os visitantes chegaram e cumprimentaram Tibiriçá com grande respeito e a João Ramalho se dirigiram com simplicidade cordial. O chefe de Inhapuambuçu falou:

– Este é João Ramalho, marido de Bartira. Estes aqui são Piquerobi, meu irmão, e seu filho Jaguaranho.

Ramalho admirou-se do porte daqueles homens. Tibiriçá era o mais alto de todos, atlético e musculoso como poucos que o português tivera oportunidade de ver na Europa. Mas Caiubi, Piquerobi e Jaguaranho eram também homens de altura bem superior à média, assim como ele mesmo, João Ramalho. Jamari, lembrou-se ele, era o único um pouco mais baixo nessa família.

Jaguaranho devia regular de idade com ele e Jamari, ao passo que os três irmãos morubixabas eram homens de meia-idade. Todos entraram em animada conversação, com Piquerobi contando as últimas novidades de sua estada no litoral:

– Eu agora tenho duas alianças lá na praia. Além da minha filha, casada com o Bacharel da Cananéia, agora tenho outra filha que casou com outro peró. Essa, a mais moça, agora é mulher do peró Antonio Rodrigues, que vive em Engaguaçu, no Tumiaru.

João ficou vivamente interessado. Com que então havia mais patrícios seus casados com índias! E dois deles com filhas do irmão de seu sogro. Um era o tal Bacharel da Cananéia, de quem Tibiriçá já lhe havia falado um pouco. E havia também esse Antonio Rodrigues, mais um dos que viviam em Engaguaçu, o tal lugar que era chamado por eles de São Vicente.

Caiubi percebeu a curiosidade do português e lhe passou mais informações:

– Cananéia, onde vive o bacharel, tem muitos castelhanos. Eles falam um idioma parecido com o dos perós, mas muita coisa não se entende. E eles garantem que, daquela ilha para o sul, todas as terras pertencem à tal de Castela. E que, dali pra cima, são de Portugal.

– Uma coisa estúpida! – bradou Piquerobi, irritado – Porque essas terras não são de branco nenhum, são de todos nós que sempre estivemos aqui. Como é que eles, que chegaram só agora, acham que podem ser donos do nosso chão?

– A gente tem que fazer guerra contra eles todos, pai. Expulsa eles daqui, mata os que não fugirem. Mas não come, que eles tem gosto muito ruim.

– Por mim eu fazia isso, Jaguaranho. Mas eu tenho aliança com o bacharel e agora com o Antonio Rodrigues, os dois são meus genros, são meus parentes e seus. E o bacharel, você sabe, tem aliança com os castelhanos.

– E os castelhanos de Cananeia têm briga com os perós de Engaguaçu – completou Caiubi – Como é que fica você, meu irmão, se eles resolvem guerrear uns contra os outros? Fica com o bacharel, seu genro há mais tempo, e os castelhanos de Cananeia? Ou fica com Antonio Rodrigues e os perós de São Vicente?

– Eu não preciso me meter. Os castelhanos e os peró podem até guerrear um dia, mas o bacharel e Antonio são mais que amigos, são sócios no negócio deles de vender escravos. Eles não vão entrar nessa guerra.

João Ramalho não se conteve, aquilo o tinha deixado curiosíssimo:

– Desculpe perguntar, mas esse negócio de vender escravos é bom? Dá pra ganhar muito?

– Bacharel é um homem rico, rapaz. Ele já está em Cananeia faz muito tempo e tem muitos homens armados com ele, e muitos escravos para servi-lo Todos são índios. Ele caça índios de outras tribos e também troca escravos, que vêm em navios lá do sul, por comida, água, animais e madeira, que os dos navios precisam. E esses podem ser portugueses, castelhanos ou franceses, para o Bacharel é tudo cliente. Ele tem muitas posses e armas.

Os olhos do português brilharam:

– Armas de fogo?

– Sim, e ele tem um depósito de munição também. Ele compra e vende arma de fogo e pólvora dos navios franceses e depois vende para os perós e os espanhóis – que é o mesmo que castelhanos. Mas não vende pra índio e nem ensina índio a atirar com arma de fogo. Os índios dele só podem usar arma de índio: flecha, lança, tacape, faca.

Nesse momento chegaram algumas mulheres com cauim e comida, e um pequeno banquete foi servido, em honra aos visitantes de Ururaí e Jurubatuba. No final dele, João Ramalho pediu licença para retirar-se, tinha que ir embora com Bartira para a casa deles, a uma razoável distância dali. No caminho foi pensando e sonhando. Talvez ele devesse entrar nesse negócio de venda de escravos, aquilo podia deixar um homem rico, sem que ele tivesse que negociar com pau-de-tinta nem achar ouro ou pedras preciosas.

Naquele fim de tarde em sua oca, depois de comer regiamente e esparramar-se com Bartira mais uma vez para dar e receber muito prazer, a ambição retornou à cabeça do jovem português. Até aquele dia ele estava disposto e ser um índio em todos os sentidos, inclusive no desapego às posses. Mas agora, ao ficar sabendo da lucrativa parceria dos genros de Piquerobi e o quanto aquele negócio de escravos podia tornar um homem rico e poderoso, Ramalho voltou a ser um branco.

Sim, senhor! Precisava, antes de mais nada, conseguir uma arma de fogo e munição para ela. Um arcabuz! Sabia quem podia vender-lhe um: o tal bacharel da Cananeia. Então precisava ir lá e levar algo que servisse como moeda de troca. E, daquele dia em diante, passou a elaborar planos cuidadosos para poder chegar a ter sucesso.

O filhos estão chegando

Duas luas depois daquilo, Bartira comunicou a João Ramalho que estava grávida. Dias antes ele soubera, por meio da própria Bartira, que várias das índias com quem ele brincara, lá embaixo, na pequena aldeia temporária de Engaguaçu, também estavam esperando criança. E todas garantiam que eram filhos do branco barbudo que tanto lhes agradara.

Até mesmo uma índia casada esperava criança também. E também ela garantia que o filho era do português, porque, depois que ele partira serra acima, ela tinha tomado o cuidado de se proteger quando brincava com o marido. Usaram só o tebiquara – a “porta de trás” – tão de gosto das índias, até ela ter certeza que estava grávida do português. Ela e o marido estavam encantados por saber que iriam poder criar um filho ou filha do ilustre genro de Tibiriçá.

João Ramalho caiu das nuvens com a notícia. E, principalmente, com a alegria com que Bartira viera lhe contar aquilo tudo, toda contente porque seu homem tinha emprenhado muitas outras mulheres e ia ter muitos filhos quase ao mesmo tempo em que ela, Bartira, teria o seu primeiro filho com ele, pois também ela já desconfiava que estava esperando criança.

Como era diferente a cabeça daquele povo guaianá! E como sua mulher podia ser assim tão generosa? Precisou de algum tempo para metabolizar aquela tremenda novidade, mas uma coisa ele sentiu de imediato: passaria a amar Bartira ainda mais, se é que podia caber tanto amor em um só coração de homem.

Quantos filhos será que lhe apareceriam em breve? Três, cinco, dez? Tinha brincado diariamente com tantas indiazinhas! Só então ele compreendeu que elas tinham ficado grávidas porque quiseram, já que sabiam perfeitamente como evitar a gravidez, com práticas e ervas que todas conheciam desde muito tempo.

O fato foi que, depois de sete meses mais, começaram a nascer em Piratininga e Engaguaçu os primeiros descendentes de João Ramalho no Brasil. Quase todas as índias tinham voltado da praia para Inhapuambuçu, uma vez que tinha passado a temporada de pesca e seca dos peixes, caranguejos e mariscos.

E foram, ao todo, nove os filhos e filhas do peró de Vouzela. O português mal cabia em si de tanto orgulho. Em Portugal, ele seria cobrado por todas as mães, teria que se responsabilizar pelo sustento de todos aqueles filhos. E, possivelmente, o governo o mandaria prender como adúltero e fornicador. Mas aqui, neste paraíso abençoado, nada disso acontecia. As índias, felizes demais com suas crias, exibiam-nas com orgulho a todos. E a João Ramalho com ternura e contentamento. Mas não lhe pediam nada, não lhe cobravam nada, como se lhes bastasse apenas a imensa alegria de terem um filho dele. Ah, paraíso, paraíso!!!     CONTINUA

Flagrante do autor a bordo da nau ESPERA, da frota de Pedro Álvares Cabral, em 1500, comandada por Nicolau Coelho.  Descobriu-se, por esta foto encontrada recentemente nos arquivos históricos da Torre do Tombo, em Portugal, que o autor Milton Maciel descreve tão bem os eventos do Brasil Colônia porque é contemporâneo de Cabral, João Ramalho, Villegaignon e Essomericq, uma autêntica testemunha ocular da história. Crédito da fotografia: Pero Vaz de Caminha (câmera: 8GB, Samsung Galaxy).
(Uma réplica perfeita, em tamanho real e construída no ano 2000 segundo os planos originais de projeto da nau Espera, está ancorada num lago à beira da BR101, na cidade de Araquari, Santa Catarina, no Posto Sinuelo – a pequena distância da nova fábrica de automóveis da BMW no Brasile a apenas 40 Km de Joinville. Para visitar a nau paga-se a incrivelmente baixa quantia de 2 reais. Lá dentro, ela tem um historiador formado, o tempo todo à disposição dos visitantes). 

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