terça-feira, 2 de setembro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 21ª. Parte    
MILTON MACIEL

Fim da 20ª parte:
Salvavam animadamente os rapazes que chegavam. Mas, num determinado instante, todos pararam e se voltaram para a saída de uma grande oca. João Ramalho estremeceu: só podia ser o chefe Tibiriçá! Será que ele o acolheria como um índio, condição expressa pra confirmar-lhe o casamento com sua filha?

Mas não era Tibiriçá a figura que estava parada na saída da oca, recendo os olhares de admiração de todos os presentes.

Era POTIRA! – deslumbrante em sua beleza nua, ressaltada por pequenos enfeites de extremo bom gosto!

21ª parte: O casamento
O coração de João Ramalho disparou: Aquela mulher maravilhosa, jovem, belíssima, estava à sua espera, estava prometida a ele. Era sorte demais, era felicidade demais!

Casado a contragosto em Portugal, João nunca chegara a gostar realmente de uma mulher. Agora tinha que reconhecer que estava apaixonado de verdade, pela primeira vez na vida! Muitas vezes apanhara-se em dúvida cruel, ora com medo que Tibiriçá voltasse atrás em sua promessa, ora com medo que Potira perdesse o interesse por ele, um mero peró desbotado, destituído da grande força e destreza dos guerreiros guaianases.

Outras vezes afligia-se ao constatar o quanto ainda lhe faltava para poder entender e falar o idioma tupi com perfeição. Corria o risco de fracassar vergonhosamente quando o grande morubixaba Tibiriçá o sabatinasse em seu idioma e avaliasse o quanto o peró fora capaz, nesse curto intervalo de tempo, de aprender e se adaptar aos costumes tupiniquins.

Agora ele estava ali, paralisado, embasbacado, o queixo caído, a contemplar aquela menina de beleza absoluta, como ele nunca sonhara pudesse existir. Uma atmosfera diferente pairou por instantes na taba. Todos olhavam alternadamente para o peró e para sua prometida. E olhavam com aquele proverbial bom humor, rindo felizes, comunicando uma simpatia coletiva como não existia em toda a Europa. Neles, a expectativa era de felicidade, alegria e festa. Mas em João Ramalho a insegurança típica dos apaixonados produzia uma devastadora sensação de insegurança.

Várias outras moças surgiram e foram se colocar ao lado de Potira. E João pôde ver, mais uma vez, como sua amada era diferente, como ela se destacava facilmente no meio das outras, por mais que também elas fossem belos exemplares de mulher.

Nesse momento, o braço amigo de Jamari ajudou João Ramalho mais uma vez. Chegando por trás do português, fez-lhe uma forte pressão para a frente sobre as costas e sussurrou:

– Anda, João! Caminha pra Potira. Ela tá esperando. Quando João chegar mais perto, cacique Tibiriçá vai aparecer. Não pára, não fica com medo. Caminha pra cacique, que vai caminhar pra João. E aí fala saudação pra ele. Mas fala em tupi! E pede pra casar com a filha dele.

João avançou num arranco, deixando ver que fora empurrado por Jamari, o que provocou uma imediata gargalhada coletiva. Mas o português tinha agora nos seus os olhos de Potira. Ou seja, não via mais nada, absolutamente mais nada. Andava devagar, mecanicamente, como que imantado àqueles dois olhos de mel. E os olhos o contemplavam com igual paixão, com igual devoção, com igual encantamento. Sim, exultou João Ramalho, os olhos de Potira também diziam Amor! Então ele mudou completamente.

Passou a se sentir forte e sereno, foi capaz de perceber que o grande cacique saíra da oca em passos firmes e decididos, ultrapassara o grupo de moças paradas à entrada e postara-se a uns dez passos delas, a esperar pelo visitante.

João Ramalho lembrou o que Jamari lhe dissera e, parando a dois passos de Tibiriçá, falou, no seu melhor tupi, a frase que tinha decorado e repetido vezes sem fim para si mesmo:

– Que Tupã dê sempre mais saúde e vitorias para grande morubixaba Tibiriçá. João Ramalho tem a honra de pedir a mão de sua filha Potira em casamento.

A surpresa foi geral. Nem Tibiriçá, nem Potira, nem ninguém ali presente entendeu o que o peró quis dizer:

– Pra que João quer casar com mão de minha filha?! – disse um boquiaberto cacique guaianá.

Outras pessoas comentaram:

– Ele falou que quer só mão de Potira? O que ele vai fazer só com mão?

– Será que na hora de brincar com mulher, peró só quer a mão? Não usa o resto?

– Peró muito esquisito!

Mais uma vez o salvador foi Jamari, que falava o idioma e conhecia um pouco do mundo dos portugueses:

–  Não, gente, isso é jeito de peró falar, quando eles quer casar, pede a mão, mas eles quer é tudo mesmo.

O alívio e as correspondentes risadas foram gerais. O cacique, ao constatar que o noivo lhe havia falado em tupi bem compreensível e que lhe pedira a filha toda em casamento – e não só a mão dela – falou bem alto:

– João Ramalho pode casar com minha filha. Ela agora é Bartira, mulher de João Ramalho.

E, fazendo um sinal para a moça, tomou-lhe a mão em sua mão direita e tomou a mão do português em sua mão esquerda. Ato continuo, depositou as mãos dos moços uma na outra. A jovem noiva falou:
– Eu quero ser mulher de João Ramalho. João Ramalho quer ser homem e marido de Bartira?

Por uma fração de tempo os olhos do português procuraram Jamari e viram que este lhe fazia que sim com a cabeça.

– Sim, eu quero ser homem e marido de... Bartira.

– Então vocês estão casados! Muita felicidade pra nós todos!

E, a essas palavras do grande cacique, todos os indígenas começaram a cumprimentar os recém-casados e lhes desejar muita alegria na vida. Os tambores e instrumentos musicais começaram tocar, as pessoas a cantar e dançar, algumas mulheres a servir comidas, cauim e vinho de frutas.

Assim que pôde ser ouvido por sua agora esposa, João Ramalho, que não havia soltado a mão dela um só instante, perguntou:

– Por que Bartira? Você é Potira e eu casei com uma Bartira...

– Não, João. Costume nosso. Meu nome é mesmo Bartira. Potira é o nome de minha mãe. Eu usei o nome dela até virar mulher casada. Agora sou Bartira para o resto da vida, a Bartira de João Ramalho.

– Que será o João Ramalho de Bartira, para o resto de sua vida também, meu amor.

– Meu amor! Bonito isso, dizer meu amor. Eu também digo: meu amor. Meu amor João Ramalho.

Então ela virou-se para ele e encaixou-se perfeitamente entre os braços do marido. Os dois corpos colaram-se, a ânsia do amor os dominou e eles perderam momentaneamente a capacidade de participar da festa, até mesmo de ver os outros.

Uma índia de meia-idade, com expressão bondosa no rosto, matizada com um pouco de malícia, chegou-se aos dois e lhes disse:

– O que é que vocês ainda estão fazendo aqui? Corram pra oca, está vazia, é toda de vocês enquanto durar a festa. Vão viver a alegria do amor vocês dois. E não fiquem aqui atrapalhando a nossa festa. Festa de casamento é prá nós todos aqui fora, menos vocês. A festa de vocês é outra, é lá dentro.

E dizendo isso, foi empurrando os dois recém-casados gentilmente pelos braços, em direção a uma das ocas mais ao fundo da ocara.

Deixou-os à entrada dela, fez um afago em Bartira e se afastou.

– Muito obrigada, mãe – disse a deslumbrante noiva.

A grande noite de amor de Bartira e João Ramalho ia começar.


CONTINUA

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