MILTON MACIEL
Fim da 20ª parte:
Salvavam animadamente os rapazes que chegavam. Mas,
num determinado instante, todos pararam e se voltaram para a saída de uma
grande oca. João Ramalho estremeceu: só podia ser o chefe Tibiriçá! Será que
ele o acolheria como um índio, condição expressa pra confirmar-lhe o casamento
com sua filha?
Mas não era Tibiriçá a figura que estava parada na
saída da oca, recendo os olhares de admiração de todos os presentes.
Era POTIRA! – deslumbrante em sua beleza nua,
ressaltada por pequenos enfeites de extremo bom gosto!
21ª parte: O
casamento
O coração de
João Ramalho disparou: Aquela mulher maravilhosa, jovem, belíssima, estava à
sua espera, estava prometida a ele. Era sorte demais, era felicidade demais!
Casado a
contragosto em Portugal, João nunca chegara a gostar realmente de uma mulher.
Agora tinha que reconhecer que estava apaixonado de verdade, pela primeira vez
na vida! Muitas vezes apanhara-se em dúvida cruel, ora com medo que Tibiriçá
voltasse atrás em sua promessa, ora com medo que Potira perdesse o interesse
por ele, um mero peró desbotado, destituído da grande força e destreza dos
guerreiros guaianases.
Outras vezes
afligia-se ao constatar o quanto ainda lhe faltava para poder entender e falar
o idioma tupi com perfeição. Corria o risco de fracassar vergonhosamente quando
o grande morubixaba Tibiriçá o sabatinasse em seu idioma e avaliasse o quanto o
peró fora capaz, nesse curto intervalo de tempo, de aprender e se adaptar aos
costumes tupiniquins.
Agora ele estava
ali, paralisado, embasbacado, o queixo caído, a contemplar aquela menina de
beleza absoluta, como ele nunca sonhara pudesse existir. Uma atmosfera
diferente pairou por instantes na taba. Todos olhavam alternadamente para o
peró e para sua prometida. E olhavam com aquele proverbial bom humor, rindo
felizes, comunicando uma simpatia coletiva como não existia em toda a Europa.
Neles, a expectativa era de felicidade, alegria e festa. Mas em João Ramalho a
insegurança típica dos apaixonados produzia uma devastadora sensação de
insegurança.
Várias outras
moças surgiram e foram se colocar ao lado de Potira. E João pôde ver, mais uma
vez, como sua amada era diferente, como ela se destacava facilmente no meio das
outras, por mais que também elas fossem belos exemplares de mulher.
Nesse momento, o
braço amigo de Jamari ajudou João Ramalho mais uma vez. Chegando por trás do
português, fez-lhe uma forte pressão para a frente sobre as costas e sussurrou:
– Anda, João!
Caminha pra Potira. Ela tá esperando. Quando João chegar mais perto, cacique
Tibiriçá vai aparecer. Não pára, não fica com medo. Caminha pra cacique, que
vai caminhar pra João. E aí fala saudação pra ele. Mas fala em tupi! E pede pra
casar com a filha dele.
João avançou num
arranco, deixando ver que fora empurrado por Jamari, o que provocou uma
imediata gargalhada coletiva. Mas o português tinha agora nos seus os olhos de
Potira. Ou seja, não via mais nada, absolutamente mais nada. Andava devagar,
mecanicamente, como que imantado àqueles dois olhos de mel. E os olhos o
contemplavam com igual paixão, com igual devoção, com igual encantamento. Sim,
exultou João Ramalho, os olhos de Potira também diziam Amor! Então ele mudou
completamente.
Passou a se
sentir forte e sereno, foi capaz de perceber que o grande cacique saíra da oca
em passos firmes e decididos, ultrapassara o grupo de moças paradas à entrada e
postara-se a uns dez passos delas, a esperar pelo visitante.
João Ramalho
lembrou o que Jamari lhe dissera e, parando a dois passos de Tibiriçá, falou,
no seu melhor tupi, a frase que tinha decorado e repetido vezes sem fim para si
mesmo:
– Que Tupã dê sempre
mais saúde e vitorias para grande morubixaba Tibiriçá. João Ramalho tem a honra
de pedir a mão de sua filha Potira em casamento.
A surpresa foi
geral. Nem Tibiriçá, nem Potira, nem ninguém ali presente entendeu o que o peró
quis dizer:
– Pra que João
quer casar com mão de minha filha?! – disse um boquiaberto cacique guaianá.
Outras pessoas
comentaram:
– Ele falou que
quer só mão de Potira? O que ele vai fazer só com mão?
– Será que na
hora de brincar com mulher, peró só quer a mão? Não usa o resto?
– Peró muito
esquisito!
Mais uma vez o
salvador foi Jamari, que falava o idioma e conhecia um pouco do mundo dos
portugueses:
– Não, gente, isso é jeito de peró falar,
quando eles quer casar, pede a mão, mas eles quer é tudo mesmo.
O alívio e as correspondentes
risadas foram gerais. O cacique, ao constatar que o noivo lhe havia falado em
tupi bem compreensível e que lhe pedira a filha toda em casamento – e não só a
mão dela – falou bem alto:
– João Ramalho
pode casar com minha filha. Ela agora é Bartira, mulher de João Ramalho.
E, fazendo um
sinal para a moça, tomou-lhe a mão em sua mão direita e tomou a mão do
português em sua mão esquerda. Ato continuo, depositou as mãos dos moços uma na
outra. A jovem noiva falou:
– Eu quero ser
mulher de João Ramalho. João Ramalho quer ser homem e marido de Bartira?
Por uma fração
de tempo os olhos do português procuraram Jamari e viram que este lhe fazia que
sim com a cabeça.
– Sim, eu quero
ser homem e marido de... Bartira.
– Então vocês
estão casados! Muita felicidade pra nós todos!
E, a essas
palavras do grande cacique, todos os indígenas começaram a cumprimentar os
recém-casados e lhes desejar muita alegria na vida. Os tambores e instrumentos
musicais começaram tocar, as pessoas a cantar e dançar, algumas mulheres a
servir comidas, cauim e vinho de frutas.
Assim que pôde
ser ouvido por sua agora esposa, João Ramalho, que não havia soltado a mão dela
um só instante, perguntou:
– Por que
Bartira? Você é Potira e eu casei com uma Bartira...
– Não, João.
Costume nosso. Meu nome é mesmo Bartira. Potira é o nome de minha mãe. Eu usei
o nome dela até virar mulher casada. Agora sou Bartira para o resto da vida, a
Bartira de João Ramalho.
– Que será o
João Ramalho de Bartira, para o resto de sua vida também, meu amor.
– Meu amor!
Bonito isso, dizer meu amor. Eu também digo: meu amor. Meu amor João Ramalho.
Então ela
virou-se para ele e encaixou-se perfeitamente entre os braços do marido. Os
dois corpos colaram-se, a ânsia do amor os dominou e eles perderam momentaneamente
a capacidade de participar da festa, até mesmo de ver os outros.
Uma índia de
meia-idade, com expressão bondosa no rosto, matizada com um pouco de malícia,
chegou-se aos dois e lhes disse:
– O que é que
vocês ainda estão fazendo aqui? Corram pra oca, está vazia, é toda de vocês
enquanto durar a festa. Vão viver a alegria do amor vocês dois. E não fiquem
aqui atrapalhando a nossa festa. Festa de casamento é prá nós todos aqui fora,
menos vocês. A festa de vocês é outra, é lá dentro.
E dizendo isso,
foi empurrando os dois recém-casados gentilmente pelos braços, em direção a uma
das ocas mais ao fundo da ocara.
Deixou-os à
entrada dela, fez um afago em Bartira e se afastou.
– Muito
obrigada, mãe – disse a deslumbrante noiva.
A grande noite
de amor de Bartira e João Ramalho ia começar.
CONTINUA
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