quinta-feira, 18 de setembro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 25ª Parte
MILTON MACIEL

Fim da 24ª parte:

– Pajé Anauá disse: Esse peró é muito importante, vai ser seu grande amigo e aliado. Tibiriçá tem que se preparar e preparar seu povo. Os tempos dos tupinambás, tamoios, tupiniquins e carijós estão acabados. Os perós vão chegar em número cada vez maior. Com grandes canoas de vento e com muitas armas de estrondo. Os perós vão ser os novos donos da terra. Não é possível evitar esse destino. Se Tibiriçá for homem de juízo, deve fazer aliança com os perós, para evitar que sua tribo seja escravizada ou morta. Quem não for aliado dos perós, quem não lutar ao lado deles contra os inimigos deles, vai perecer. E esse rapaz que vai chegar vai ser o peró que vai fazer a aliança dos guaianases com os perós possível. Graças a esse moço, que vai ser um grande chefe de índios e perós, os guaianases vão se salvar. E Tibiriçá será um grande herói dos perós.

25ª parte: A profecia do pajé Anauá

– Mas... isso é coisa muito grande, meu sogro. Pode-se acreditar?

– Grande pajé Anauá nunca errou uma previsão. Nunca! Foi nosso grande líder espiritual por um tempo muito, muito, muito grande. O Bacharel disse pra mim que ele morreu com mais de cem anos dos brancos.

– Cem anos! Mas isso é muita vida! E quem é esse Bacharel?

– Bacharel é um peró muito inteligente e muito sabido, que vive aqui, segundo ele mesmo diz, há mais de dez anos. Ele foi que me ensinou o que sei do idioma português. E me explicou que um ano dos brancos é 13 luas das nossas.

– Sim... Sim, isso é mesmo verdade. Mas onde vive esse Bacharel? Eu posso me encontrar com ele?

– Pode, sim. Bacharel mora mais ao sul de Engaguaçu, em Cananéia. Os brancos chamam Engaguaçú de São Vicente. João não viu, mas há um pequeno conjunto de casas de barro dos Perós em outra parte de Engaguaçu, do outro lado de onde João Ramalho deu à praia, quando naufragou.

– Pelos céus! Quer dizer que ali mesmo onde eu estive, há um povoado de brancos portugueses? Mas por que vocês não me disseram nada, não me levaram para os meus, se eu fiquei tantos dias lá na praia?

– João, procure entender: os seus são os guaianases! Você já não é mais um peró, é um índio como nós. Você mesmo já falou que queria ficar aqui com os índios. Nós já sabíamos da profecia de Anauá – e Anauá nunca falhou. Eu dei ordem para não falarem dos perós de São Vicente para João, até João subir aqui para Inhapuambuçu. Eu não queria perder meu aliado e Bartira não queria perder seu marido.

– Bom, pensando assim... É, meu sogro, acho que eu tenho é que lhe agradecer muito mesmo, por ter tomado essa decisão. Você tem toda a razão. Depois de conviver a aprender a viver com vocês, eu não quero nunca mais ser um branco e não quero jamais voltar para Portugal. Eu naveguei para esta terra com a ideia de ficar rico depressa, de pilhar, roubar e até matar, se fosse preciso, de descobrir ouro e negociar com os contrabandistas franceses de pau de tinta. Mas agora...

– Agora?...

– Pois é, agora eu aprendi que isso é tudo ilusão, meu sogro. Isso não é viver. Só os indígenas sabem viver. Os brancos são infelizes e só servem para fazer os outros infelizes também. Os portugueses estão fazendo grandes crueldades nas Índias e na África, que são terras muito longe daqui, que eles já conquistaram e onde pilham, roubam destroem e escravizam as pessoas.

– Pois foi isso que Anauá me disse que eles vão fazer aqui também. A mesma coisa. Vão trazer a desgraça e muitas doenças para as pessoas todas daqui. E, muito triste isso, o grande pajé falou que nos não temos como evitar essa desgraça.

– Pois meu sogro, eu estou pronto a pegar em armas com vocês, contra os perós meus patrícios. Antes que eles consigam escravizar um guaianá, eles vão ter que me enfrentar e me matar. Mas eu garanto que, antes que o consigam, eu vou matar um monte deles primeiro.

O cacique olhou João nos olhos detidamente e viu que o que aquele moço dizia era a pura verdade, que vinha do seu coração. Prova maior do que aquela não podia existir de que a profecia de Anauá, mais uma vez, se cumpria. Sim, aquele seu genro era seu grande aliado, era seu amigo e, mais do tudo, era um autêntico índio guaianá.

Tibiriçá deu um passo em direção a João Ramalho e estreitou-o num abraço apertado e longo. Os dois homens, comovidos, ficaram o tempo todo em silêncio, se falassem iriam revelar a voz embargada. Mas, naquele momento, selou-se para sempre a grande aliança entre o futuro chefe Ramalho e o atual chefe Tibiriçá. Este foi o primeiro a falar depois disso:

– Não vai ser preciso, João. Graças a Tupã, os guaianases puderam contar com o grande Anauá. E ele me fez jurar que eu ia fazer como ele me disse: fazer aliança com os perós que vierem dominar nossas terras. Lutar, não contra eles, mas ao lado deles, contra seus inimigos. E esses inimigos, ele esclareceu, vão ser os franceses e os tupinambás e os tamoios, que já são, junto com os carijós, nossos inimigos de sempre. E, dessa forma, eu vou conseguir preservar o povo guaianá por muito tempo e nós não vamos ser escravos, mas aliados dos portugueses.

– Um estranho futuro, meu chefe...

– Sim, estranho. Até porque, veja só que esquisito: João virou índio, mas Tibiriçá vai ter que virar branco peró.

– Como?! Mas o que quer dizer isso?

– Quer dizer que eu ainda vou ter nome de branco¸ assim como minha família toda. Anauá disse que assim eu vou garantir a sobrevivência dos meus e do meu povo. Quando chegar o tempo, eu vou receber aqui nesta mesma terra de Piratininga os brancos e dar a eles abrigo e deixar que construam suas casas aqui. Inhapuambuçu ainda vai ser um povoado de brancos, João. De brancos e de índios, que viverão em paz entre si. Um dia aparecerão aqui muitos pajés brancos, de roupa preta. Então o tempo será chegado. E você, João, será o nosso maior defensor nesses novos tempos. Mas não precisará matar dos seus antigos companheiros. Isso não será necessário.

– Bem, se meu sogro acredita que será assim, então assim será. Mas já sabe: Se algum dia precisar que eu lute e mate os perós é só me dar a ordem. Eu a cumprirei sem hesitar, com gratidão no coração.

– Obrigado, João. João é mesmo homem bom. Bem como Anauá garantiu que João seria. Mas agora deixe eu lhe falar de São Vicente. Ali não tem bem um povoado, tem umas dez choupanas de barro e palha só. É só entreposto de venda de escravos. Ali perto fica um lugar de atracar barcos pequenos, que os perós chamam de Porto dos Escravos. E tudo fica em Engaguaçu, que é uma ilha.

– Então aqui também há comércio de escravos?!

– Sim, João. Os perós e os tupiniquins vendem ali índios carijós, que são aprisionados só para serem vendidos. É diferente, não é mais como o normal, que a gente faz escravos só durante a guerra e Lea escravos para nossa aldeia, para sacrificar e comer no grande ritual. O que esses perós e tupiniquins fazem é só comércio.

– E quem compra os carijós escravos?

– Outros perós, dos navios que chegam ao largo de ilha de Engaguaçu. E também os franceses, que levam os escravos para cortarem as árvores de pau-de-tinta lá na terra dos tamoios. É que os tamoios são aliados dos franceses e eles não fazem dos aliados seus escravos. Exatamente como vai acontecer com os guaianases, que vão ser sempre aliados dos perós. Aqui nas nossas terras quase não tem ibirapitanga, a árvore do pau-de-tinta.

Nesse momento do diálogo os dois foram interrompidos pelo alarido que acompanhava alguns outros índios que acabavam de chegar à taba e se dirigiam ao ponto onde sogro e genro conversavam. João reconheceu num deles o caíque Caiubi, o pai de seu amigo Jamari, que ele tinha conhecido no dia de sua chegada à praia. O outro homem era também um evidente chefe. Tibiriçá explicou:

–  Aquele é Piquerobi, Cacique de Ururaí, meu irmão também. Ao lado está o filho dele, o jovem Jaguaranho. O outro você já conhece, é meu irmão Caiubi, cacique de Jurubatuba. Ururaí(1)  e Jurubatuba(2)  ficam aqui mesmo em Piratininga, a menos de um dia de marcha aqui de Inhapuambuçu.
1- Ururaí – atual bairro de São Miguel Paulista
2 – Jurubatuba – atual bairro do mesmo nome, região de Santo Amaro
(Inhapuambuçu corresponde à região entre o Tamanduateí e o Anhangabaú, incluindo as áreas atuais do Pátio do Colégio e o do  mosteiro de São Bento)


CONTINUA

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