MILTON MACIEL
Fim da 24ª
parte:
– Pajé Anauá disse: Esse peró é muito importante, vai
ser seu grande amigo e aliado. Tibiriçá tem que se preparar e preparar seu
povo. Os tempos dos tupinambás, tamoios, tupiniquins e carijós estão acabados.
Os perós vão chegar em número cada vez maior. Com grandes canoas de vento e com
muitas armas de estrondo. Os perós vão ser os novos donos da terra. Não é
possível evitar esse destino. Se Tibiriçá for homem de juízo, deve fazer
aliança com os perós, para evitar que sua tribo seja escravizada ou morta. Quem
não for aliado dos perós, quem não lutar ao lado deles contra os inimigos
deles, vai perecer. E esse rapaz que vai chegar vai ser o peró que vai fazer a
aliança dos guaianases com os perós possível. Graças a esse moço, que vai ser
um grande chefe de índios e perós, os guaianases vão se salvar. E Tibiriçá será
um grande herói dos perós.
25ª parte: A
profecia do pajé Anauá
– Mas... isso é
coisa muito grande, meu sogro. Pode-se acreditar?
– Grande pajé
Anauá nunca errou uma previsão. Nunca! Foi nosso grande líder espiritual por um
tempo muito, muito, muito grande. O Bacharel disse pra mim que ele morreu com
mais de cem anos dos brancos.
– Cem anos! Mas
isso é muita vida! E quem é esse Bacharel?
– Bacharel é um
peró muito inteligente e muito sabido, que vive aqui, segundo ele mesmo diz, há
mais de dez anos. Ele foi que me ensinou o que sei do idioma português. E me
explicou que um ano dos brancos é 13 luas das nossas.
– Sim... Sim,
isso é mesmo verdade. Mas onde vive esse Bacharel? Eu posso me encontrar com
ele?
– Pode, sim. Bacharel
mora mais ao sul de Engaguaçu, em Cananéia. Os brancos chamam Engaguaçú de São
Vicente. João não viu, mas há um pequeno conjunto de casas de barro dos Perós
em outra parte de Engaguaçu, do outro lado de onde João Ramalho deu à praia,
quando naufragou.
– Pelos céus!
Quer dizer que ali mesmo onde eu estive, há um povoado de brancos portugueses?
Mas por que vocês não me disseram nada, não me levaram para os meus, se eu
fiquei tantos dias lá na praia?
– João, procure
entender: os seus são os guaianases! Você já não é mais um peró, é um índio
como nós. Você mesmo já falou que queria ficar aqui com os índios. Nós já
sabíamos da profecia de Anauá – e Anauá nunca falhou. Eu dei ordem para não
falarem dos perós de São Vicente para João, até João subir aqui para
Inhapuambuçu. Eu não queria perder meu aliado e Bartira não queria perder seu
marido.
– Bom, pensando
assim... É, meu sogro, acho que eu tenho é que lhe agradecer muito mesmo, por ter
tomado essa decisão. Você tem toda a razão. Depois de conviver a aprender a
viver com vocês, eu não quero nunca mais ser um branco e não quero jamais
voltar para Portugal. Eu naveguei para esta terra com a ideia de ficar rico
depressa, de pilhar, roubar e até matar, se fosse preciso, de descobrir ouro e
negociar com os contrabandistas franceses de pau de tinta. Mas agora...
– Agora?...
– Pois é, agora
eu aprendi que isso é tudo ilusão, meu sogro. Isso não é viver. Só os indígenas
sabem viver. Os brancos são infelizes e só servem para fazer os outros
infelizes também. Os portugueses estão fazendo grandes crueldades nas Índias e
na África, que são terras muito longe daqui, que eles já conquistaram e onde
pilham, roubam destroem e escravizam as pessoas.
– Pois foi isso
que Anauá me disse que eles vão fazer aqui também. A mesma coisa. Vão trazer a
desgraça e muitas doenças para as pessoas todas daqui. E, muito triste isso, o
grande pajé falou que nos não temos como evitar essa desgraça.
– Pois meu
sogro, eu estou pronto a pegar em armas com vocês, contra os perós meus
patrícios. Antes que eles consigam escravizar um guaianá, eles vão ter que me
enfrentar e me matar. Mas eu garanto que, antes que o consigam, eu vou matar um
monte deles primeiro.
O cacique olhou
João nos olhos detidamente e viu que o que aquele moço dizia era a pura
verdade, que vinha do seu coração. Prova maior do que aquela não podia existir
de que a profecia de Anauá, mais uma vez, se cumpria. Sim, aquele seu genro era
seu grande aliado, era seu amigo e, mais do tudo, era um autêntico índio
guaianá.
Tibiriçá deu um
passo em direção a João Ramalho e estreitou-o num abraço apertado e longo. Os
dois homens, comovidos, ficaram o tempo todo em silêncio, se falassem iriam
revelar a voz embargada. Mas, naquele momento, selou-se para sempre a grande
aliança entre o futuro chefe Ramalho e o atual chefe Tibiriçá. Este foi o
primeiro a falar depois disso:
– Não vai ser
preciso, João. Graças a Tupã, os guaianases puderam contar com o grande Anauá.
E ele me fez jurar que eu ia fazer como ele me disse: fazer aliança com os
perós que vierem dominar nossas terras. Lutar, não contra eles, mas ao lado
deles, contra seus inimigos. E esses inimigos, ele esclareceu, vão ser os
franceses e os tupinambás e os tamoios, que já são, junto com os carijós,
nossos inimigos de sempre. E, dessa forma, eu vou conseguir preservar o povo
guaianá por muito tempo e nós não vamos ser escravos, mas aliados dos
portugueses.
– Um estranho
futuro, meu chefe...
– Sim, estranho.
Até porque, veja só que esquisito: João virou índio, mas Tibiriçá vai ter que
virar branco peró.
– Como?! Mas o
que quer dizer isso?
– Quer dizer que
eu ainda vou ter nome de branco¸ assim como minha família toda. Anauá disse que
assim eu vou garantir a sobrevivência dos meus e do meu povo. Quando chegar o
tempo, eu vou receber aqui nesta mesma terra de Piratininga os brancos e dar a
eles abrigo e deixar que construam suas casas aqui. Inhapuambuçu ainda vai ser
um povoado de brancos, João. De brancos e de índios, que viverão em paz entre
si. Um dia aparecerão aqui muitos pajés brancos, de roupa preta. Então o tempo
será chegado. E você, João, será o nosso maior defensor nesses novos tempos.
Mas não precisará matar dos seus antigos companheiros. Isso não será
necessário.
– Bem, se meu
sogro acredita que será assim, então assim será. Mas já sabe: Se algum dia
precisar que eu lute e mate os perós é só me dar a ordem. Eu a cumprirei sem
hesitar, com gratidão no coração.
– Obrigado,
João. João é mesmo homem bom. Bem como Anauá garantiu que João seria. Mas agora
deixe eu lhe falar de São Vicente. Ali não tem bem um povoado, tem umas dez
choupanas de barro e palha só. É só entreposto de venda de escravos. Ali perto
fica um lugar de atracar barcos pequenos, que os perós chamam de Porto dos
Escravos. E tudo fica em Engaguaçu, que é uma ilha.
– Então aqui
também há comércio de escravos?!
– Sim, João. Os
perós e os tupiniquins vendem ali índios carijós, que são aprisionados só para
serem vendidos. É diferente, não é mais como o normal, que a gente faz escravos
só durante a guerra e Lea escravos para nossa aldeia, para sacrificar e comer
no grande ritual. O que esses perós e tupiniquins fazem é só comércio.
– E quem compra
os carijós escravos?
– Outros perós,
dos navios que chegam ao largo de ilha de Engaguaçu. E também os franceses, que
levam os escravos para cortarem as árvores de pau-de-tinta lá na terra dos
tamoios. É que os tamoios são aliados dos franceses e eles não fazem dos
aliados seus escravos. Exatamente como vai acontecer com os guaianases, que vão
ser sempre aliados dos perós. Aqui nas nossas terras quase não tem
ibirapitanga, a árvore do pau-de-tinta.
Nesse momento do
diálogo os dois foram interrompidos pelo alarido que acompanhava alguns outros
índios que acabavam de chegar à taba e se dirigiam ao ponto onde sogro e genro
conversavam. João reconheceu num deles o caíque Caiubi, o pai de seu amigo
Jamari, que ele tinha conhecido no dia de sua chegada à praia. O outro homem
era também um evidente chefe. Tibiriçá explicou:
– Aquele é Piquerobi, Cacique de Ururaí, meu
irmão também. Ao lado está o filho dele, o jovem Jaguaranho. O outro você já
conhece, é meu irmão Caiubi, cacique de Jurubatuba. Ururaí(1) e Jurubatuba(2) ficam aqui mesmo em Piratininga, a menos de
um dia de marcha aqui de Inhapuambuçu.
1- Ururaí – atual bairro de São Miguel Paulista
2 – Jurubatuba – atual bairro do mesmo nome, região de Santo Amaro
(Inhapuambuçu corresponde à região entre o Tamanduateí
e o Anhangabaú, incluindo as áreas atuais do Pátio do Colégio e o do mosteiro de São Bento)
CONTINUA
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