segunda-feira, 15 de setembro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 24ª Parte 
MILTON MACIEL

Fim da 23ª parte:
Quando todos foram embora, João Ramalho tomou Bartira nos braços e, erguendo-a do solo, carregou-a assim no colo para dentro da oca, enquanto pronunciava as palavras que eram clássicas para os recém-casados na Europa há muitas de gerações:

– Enfim sós, meu amor.

Depositou sua esposa sobre as peles macias e amou-a com paixão e ternura por muito tempo, naquela que seria a primeira das inúmeras noites de amor que aquela modesta casa abrigaria.

24ª parte: Os pajés dos perós: padres

Depois que o casal aplacou sua inicialmente incontrolável sede de amor, ambos começaram a visitar diariamente a taba e a fazer refeições junto com os demais habitantes. Potira tentou convencer sua filha a voltar com o marido para a grande oca coletiva. Mas Bartira explicou-lhe que João Ramalho não aceitaria isso tão cedo. E, de mais a mais, também ela não queria perder a exclusividade de um ninho de amor para recém-casados:

– Não, mãe. Costume de peró, de uma oca para cada casal é muito bom, melhor que o nosso. Eu estou adorando, a gente se abraça e brinca a hora que bem entende. E tem as nossas coisas mais arrumadas e eu trabalho muito menos. Assim tenho muito mais tempo para o meu homem e o meu homem é uma delícia, mãe. É o melhor de todos que eu já provei. Você devia experimentar. Será que pai vai achar ruim? Eu acho que não.

– Ah, minha filha, você é uma menina maravilhosa, oferecendo seu marido novo assim para sua mãe provar. Mas por agora não é bom, vocês recém começaram a vida de vocês. Mas daqui a umas luas, quando vocês tiverem baixado esse fogo louco de vocês, então você pode emprestar ele para suas irmãs. E para as filhas de Caiubi, irmãs de Jamari, que são suas primas. Elas vão ficar muito felizes e muito gratas a você pela delicadeza.

– Ah, sim, mãe, eu mal posso esperar para minhas amigas verem como é bom o meu peró. Sei que elas vão gostar muito. Jamari me contou que as minhas amigas que ficaram na praia, lá em Engaguaçu, todas elas já brincaram com meu João. E até uma mulher casada também brincou.

– Mas então esse teu peró deve ser muito bom nas coisas que faz.

– Taí, mãe: Ele não é! Não sabe a maior parte das coisas boas, tem muito o que aprender ainda comigo, tem umas proibições bobas, acho que é coisa de religião, uma tolice. Imagine que ele não sabia me brincar por trás, que é tão bom, e quando eu quis que ele fizesse, ele me disse que era um tal de pecado. Sabe, custei muito a entender o que é pecado para os peró.

– E o que é isso, filha?

– Bom, eles acreditam num deus pra isso, num deus praquilo; e numa deusa também, que ele chama Maria. Têm um deus para cada dia, imagine só! Mas o problema é que esses deuses deles são gente que não gosta da vida. Mãe, eles são muito tristes. E muito brabos. Vivem proibindo tudo e dando castigo pra tudo. O tal do pecado é fazer o que a gente quer fazer, mas que os deuses deles proíbem.

– E o que eles proíbem?

– Tudo, mãe! Tudo o que é bom. Não pode brincar por trás, é pecado. Moça que não casou não pode brincar, de jeito nenhum mãe, nem mesmo que seja só pela frente, é pecado. Homem não pode brincar com outra mulher, só com esposa – senão é pecado. Mulher também, nem quando o marido concorda – é pecado. Comer carne de inimigo valente não pode – é pecado. E João falou que os peró têm um monte de pajés, não é só um em cada taba. Esses pajés existem, pelo que eu entendi, para proibir as pessoas de fazerem tudo o que é bom. João diz que o nome dos pajés de peró é padre.

– E eles são bons pra curar, tirar maus espíritos, adivinhar o futuro?

– Que nada, mãe! Meu peró diz que eles não sabem curar com ervas, não sabem afastar maus espíritos, não sabem prever o futuro.

– Mas então pra que servem esses pajés inúteis deles?

– Acho que só pra proibir, mãe. Proibir e encher as pessoas de medo de castigo dos deuses deles. Deuses deles muito maus, muito chatos. Muito tristes. Os pajés deles são muito tristes, não podem brincar com mulher, não podem casar, não podem ter filhos.

– Mas isso é uma coisa doentia, minha filha! Que horror! Como é que um homem bom como João Ramalho pode acreditar nessas coisas de Anhangá? Isso só pode ser coisa de Anhangá, religião do diabo. Esses deuses e os pajés deles querem que o povo fique sempre infeliz, não se divirta, não goze a vida, não brinque bastante todo mundo. Muito, muito triste isso que você me contou, filha. Eu agora estou com tanta pena do seu peró, coitado.

– Eu também sinto, mãe. Por isso estou fazendo tudo o que posso para limpar a cabeça do meu homem dessas coisas indignas de uma pessoa normal. Mas não tem sido fácil. O que ajuda é que João gosta muito de mim, então ele faz força para me agradar. E aí acaba cedendo bastante.

– Então você vai fazer ele muito feliz, porque você vai tirar ele desse mundo feio e triste dos deuses e dos pajés dele, esses tais de padres. Seu pai já me falou que encontrou mais de um desses pajés de peró quando esteve em guerra lá nas terras dos tamoios. Disse que eles andam sempre de roupa, como todos os brancos. Mas não são as mesmas roupas dos perós e dos franceses. Nem dos castelhanos, que eu já vi também. Tibiriçá diz que eles usam roupa preta até os pés. E que são, de fato, uns tipos horríveis, que vêm mal em tudo. Que têm vergonha de olhar homem pelado. E mulher pelada, então?  Eles se viram, fogem, dizem que é coisa de Anhangá. Seu pai diz que, pra esses pajés tristes e horríveis, qualquer mulher é coisa de Anhangá. Que foi a mulher que trouxe dor e sofrimento para o mundo.

– Que horror, minha mãe! Como pode ser feliz um povo que não reconhece o bem que está na mulher? Isso João não me falou ainda, vou perguntar pra ele. Agora eu estou ainda mais horrorizada com a religião dos brancos, mãe.

– Pois é. Pobre de João. João é homem bom, não merece.

– Não merece, mãe. João é homem bom. Não merece.

– Minha filha, eu nunca vi um pajé mau desses dos peró. Mas o dia que eu enxergar o primeiro, acho que sou capaz de bater muito nele. Se eu vejo um pajé de roupa preta até os pés, um anhangá desses, eu vou castigar ele muito, por causa do mal que ele fez para homem bom como João Ramalho.

– Isso mesmo, mãe. Você tem razão. Padre é pajé triste, sempre de preto, que só sabe fazer os perós tristes e infelizes, como ele mesmo. Os padres tiram a alegria de viver. É justo castigar cada um deles.


E, com esse firme propósito em mente – castigar o malvado pajé de preto dos peró – mãe e filha se despediram.

A profecia do pajé Anauá

Do outro lado da aldeia, João Ramalho conversava com seu sogro Tibiriçá. O assunto também era pajé, Mas desta vez era o chefe guaianá que falava sobre o grande pajé Anauá.

– João lembra que prometi falar de Anauá?

– O pajé que lhe falou de mim antes que eu naufragasse em Engaguaçu?

– Ele mesmo. Já morreu faz muitas luas. Foi o maior pajé que já conheci na minha vida. Muito poderoso. Grande curador. E um grande adivinho do futuro também.

– E o que ele lhe falou a meu respeito, meu sogro?

– Anauá disse assim: Quando o tempo do calor vier, vai aparecer na praia de Engaguaçu um peró muito jovem. Tibiriçá vai estar lá embaixo quando isso acontecer. Deve receber esse peró muito bem. Deve fazer ele marido de sua filha Bartira.

– Ai, Jesus! E por quê?

– Ele disse: Esse peró muito importante, vai ser seu grande amigo e aliado. Tibiriçá tem que se preparar seu povo. Os tempos dos tupinambás, tamoios e tupiniquins estão acabados. Os perós vão chegar em número cada vez maior. Com grandes canoas de vento e com muitas armas de estrondo. Os perós vão ser os novos donos da terra. Não é possível evitar esse destino. Se Tibiriçá for homem de juízo, deve fazer aliança com os perós, para evitar que sua tribo seja escravizada ou morta. Quem n1ao for aliado dos perós, quem não lutar ao lado deles contra os inimigos deles, vai perecer. E esse rapaz que vai chegar vai ser o peró que vai fazer a aliança dos guaianases com os perós possível. Graças a esse moço, que vai ser um grande chefe de índios e perós, os guaianases vão se salvar e Tibiriçá ainda será um grande herói dos perós.


CONTINUA

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