segunda-feira, 8 de setembro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 23ª Parte 
MILTON MACIEL

Fim da 22ª parte:
Lá na ocara a festa continuava em plena luz do dia. Todos se divertiam e comemoravam o casamento de João e Bartira. Mas ninguém perdia tempo procurando por eles. Todos, mas todos mesmo, sabiam muito bem que aqueles dois não apareceriam por um bom tempo. Era sempre assim, quando duas pessoas que se amavam de verdade decidiam ficar juntas. Pois muito bem, Bartira e João agora estavam JUNTOS!

23ª parte: Quem casa quer casa

A lua-de-mel de João e Bartira durou mais de um mês inteiro, período em que eles mal se juntavam aos outros, perdidos pelos matos e rios, isolados em seu mundo de amor apaixonado. O português já havia falado para sua jovem esposa que se sentia muito pouco à vontade para viver numa grande oca em conjunto com mais de 70 pessoas e ainda ter capacidade de fazer amor numa rede, ainda que discretamente, no escuro da noite.

– Mas nós podemos ir para o mato sempre que der vontade, se teu problema é ter vergonha dos outros – explicou-lhe Bartira, sorrindo compreensiva. Seu peró era tão bobo, tão cheio de preconceitos...

– Mas eu estou sempre com vontade de ti, minha flor (ele tinha acabado de saber que Bartira queria dizer flor-de-árvore). Mas olha que me dás uma ideia. E que tal se eu fizesse para nós uma pequena oca, no meio do mato mesmo? Sabes que eu aprendi com teu primo e seus amigos – meus amigos agora – a construir ocas e paliçadas?

– Que ideia esquisita, meu amor. Mas eu compreendo como te sentes. Então acho que deves falar com meu pai e ver o que ele pensa. Pede-lhe licença para te ausentares da taba por um tempo, temos o direito de fazer um pedido especial ao cacique, como recém-casados.

João Ramalho foi imediatamente procurar o sogro; explicou-lhe como se sentia e o que desejava. Tibiriçá foi magnânimo:

– João é homem bom, a gente sabe disso. Mas é peró, também. E peró tem outros costumes. Mas João também é índio agora. Eu devia exigir comportamento de índio. Mas João é marido de minha filha, acabou de casar e tem direito a um pedido especial. Então eu, como cacique, concedo. Vocês podem escolher qualquer lugar nas nossas terras, qualquer um. Eu, como amigo de João peró, fico contente de poder ajudar. Sei que minha filha está feliz como nunca vi e isso é muito bom.

– Grande cacique e meu sogro: Eu fico muito honrado ao ouvir que Tibiriçá se declara amigo deste peró sem importância. Eu também vou ser amigo de Tibiriçá, amigo sincero e agradecido. E vou ser por toda a minha vida, vou ser leal para sempre a meu amigo, meu sogro e meu chefe.

Então Tibiriçá falou algo que deixou o genro português surpreso:

– João Ramalho não é peró sem importância, também vai ser grande chefe, grande cacique. Vai chefiar muitos, muitos homens. Vai viver muitos, muitos anos, mais do que vivem os homens. Foi Anauá quem disse, muitas luas antes de João chegar em Engaguaçu. Depois eu vou dizer quem foi Anauá. Outro dia...

João Ramalho nada mais perguntou, guardando a curiosidade para depois.  Mais tarde perguntaria a Bartira quem era esse Anauá. O importante é que o sogro lhe dera autorização para construir sua própria oca. Sabia que os demais índios não estranhariam que ele fizesse isso e a ocupasse por uns poucos dias. Compreenderiam que era coisa de peró recém-casado, que queria ficar só com a mulher, para fazer muito amor com ela, fazer amor a toda hora. Mas, para quando achassem que ele se integraria à vida na oca de habitação coletiva, ele tinha uma outra ideia do que fazer.

João correu para comunicar a Bartira a resposta do pai dela. Foi então pedir um itagi – o machado de pedra – a Jamari, explicando porque o queria. O rapaz prontificou-se a ajudar o amigo a construir sua pequena oca. Mas Bartira agradeceu ao primo, dizendo:

– Não precisa, Jamari. Eu ajudo meu marido a construir nossa oca. Assim fica mais nosso ninho de amor, nosso irajá.

Nessa mesma manhã, João e Bartira saíram andando pela planície, tomando o rumo norte. Depois de duas horas de marcha, detiveram-se para descansar, banhar-se em um riacho e fazer mais amor. Depois, enquanto estirados à beira de uma capoeira de mato, começaram a considerar que aquele parecia ser um lugar perfeito para erguerem sua casa. Começaram então a procurar e cortar a madeira para os esteios, os galhos para as paredes, os cipós e as folhas de palmeira de que necessitavam.

Com a experiência que os dois já tinham, rapidamente montaram a pequena oca, amarrando os paus com cipós e preparando a armação que receberia a cobertura de folhas de palmeira. Quando o sol começou a se aproximar do poente, olharam embevecidos aquela que seria sua casa e seu lar,  onde poderiam viver confortavelmente e receber algumas poucas visitas.

Tomaram o cuidado de construí-la em um ponto em que permaneceria escondida pelo mato, ocultando-a aos olhos de quem passasse pela ampla planície adjacente. Ao mesmo tempo, havia ali uma clareira natural e o riacho passava a menos de 100 passos da casa.

Os visitantes que imaginavam receber no futuro se fizeram presentes antes mesmo que eles pudessem se instalar precariamente na casa. Ouviram estalar de passos se aproximando na mata e, ante seus olhos atônitos, viram surgir ninguém menos que Tibiriçá e sua mulher Potira. Junto com eles vinha Caiubi, o chefe indígena de Jurubatuba e Jamari, seu filho. Caiubi era um dos irmãos de Tibiriçá.

Os quatro cumprimentaram vivamente os jovens esposos e depuseram no chão as preciosas cargas que traziam: Muitas peles de animais para forrar o chão e forrar a rede novinha de embira. Outras, mais finas, para cobrirem-se nos meses de frio. Utensílios diversos de cozinha, potes, gamelas, cuias, purungas; facas e machados; dois tecidos de algodão; e uma incrível provisão de raízes, grãos de milho, frutas, mel, carnes já semi-moqueadas e até uma quarta de cauim. O forte Caiubi depositou no chão, aos fundos, um impressionante feixe de lenha¸ que daria para cozinhar durante muitos e muitos dias.

Tibiriçá entregou ao genro dois arcos recém-preparados, com mais de 50 flechas, duas lanças de bom tamanho e um tacape enfeitado. E deu ao peró a sua própria faca de caça e combate.

Os recém-casados comoveram-se com tanta bondade. Bartira foi às lágrimas, e, abraçando-se a cada um deles, agradecia sem parar. João Ramalho, adotando o comportamento hospitaleiro de dono da casa, acendeu um fogo imediatamente e colocou as carnes para terminar de moquear. E serviu o cauim nas cuias, que os homens derramaram inteiras na garganta e as mulheres passaram a sorver devagar, gole a gole, como mandava o bom comportamento.

Mas não houve propriamente uma festa. Os visitantes foram logo embora¸ assim que terminaram sua refeição. Disseram que agora o casal precisava de tempo para desfrutar de sua casa. A última a sair foi Potira, que circulou toda a oca várias vezes, fazendo uma reza ritualística e espalhando pelo chão folhas de uma erva especial, que trouxera para isso. A finalidade era afastar maus espíritos do lugar e criar uma cerca de proteção para sua filha e o marido. Assim propiciados, os ancestrais haveriam de olhar pelos dois jovens e protegê-los contra todos os perigos, principalmente contra inimigos tamoios, tupinambás, carijós e, eventual-mente, até mesmo algum grupo tapuia que viesse do interior.

Quando todos foram embora, João Ramalho tomou Bartira nos braços e, erguendo-a do solo, carregou-a assim no colo para dentro da oca, enquanto pronunciava as palavras que eram clássicas para os recém-casados na Europa há muitas de gerações:

– Enfim sós, meu amor.


Depositou sua esposa sobre as peles macias e amou-a com paixão e ternura por muito tempo, naquela que seria a primeira das inúmeras noites de amor que aquela modesta casa abrigaria.

CONTINUA

Nenhum comentário:

Postar um comentário