MILTON MACIEL
Fim da 22ª
parte:
Lá na ocara a festa continuava em plena luz do dia.
Todos se divertiam e comemoravam o casamento de João e Bartira. Mas ninguém
perdia tempo procurando por eles. Todos, mas todos mesmo, sabiam muito bem que
aqueles dois não apareceriam por um bom tempo. Era sempre assim, quando duas
pessoas que se amavam de verdade decidiam ficar juntas. Pois muito bem, Bartira
e João agora estavam JUNTOS!
23ª parte: Quem casa
quer casa
A lua-de-mel de
João e Bartira durou mais de um mês inteiro, período em que eles mal se
juntavam aos outros, perdidos pelos matos e rios, isolados em seu mundo de amor
apaixonado. O português já havia falado para sua jovem esposa que se sentia
muito pouco à vontade para viver numa grande oca em conjunto com mais de 70
pessoas e ainda ter capacidade de fazer amor numa rede, ainda que
discretamente, no escuro da noite.
– Mas nós
podemos ir para o mato sempre que der vontade, se teu problema é ter vergonha
dos outros – explicou-lhe Bartira, sorrindo compreensiva. Seu peró era tão
bobo, tão cheio de preconceitos...
– Mas eu estou
sempre com vontade de ti, minha flor (ele tinha acabado de saber que Bartira
queria dizer flor-de-árvore). Mas olha que me dás uma ideia. E que tal se eu
fizesse para nós uma pequena oca, no meio do mato mesmo? Sabes que eu aprendi
com teu primo e seus amigos – meus amigos agora – a construir ocas e paliçadas?
– Que ideia
esquisita, meu amor. Mas eu compreendo como te sentes. Então acho que deves
falar com meu pai e ver o que ele pensa. Pede-lhe licença para te ausentares da
taba por um tempo, temos o direito de fazer um pedido especial ao cacique, como
recém-casados.
João Ramalho foi
imediatamente procurar o sogro; explicou-lhe como se sentia e o que desejava.
Tibiriçá foi magnânimo:
– João é homem
bom, a gente sabe disso. Mas é peró, também. E peró tem outros costumes. Mas
João também é índio agora. Eu devia exigir comportamento de índio. Mas João é
marido de minha filha, acabou de casar e tem direito a um pedido especial.
Então eu, como cacique, concedo. Vocês podem escolher qualquer lugar nas nossas
terras, qualquer um. Eu, como amigo de João peró, fico contente de poder
ajudar. Sei que minha filha está feliz como nunca vi e isso é muito bom.
– Grande cacique
e meu sogro: Eu fico muito honrado ao ouvir que Tibiriçá se declara amigo deste
peró sem importância. Eu também vou ser amigo de Tibiriçá, amigo sincero e
agradecido. E vou ser por toda a minha vida, vou ser leal para sempre a meu
amigo, meu sogro e meu chefe.
Então Tibiriçá
falou algo que deixou o genro português surpreso:
– João Ramalho
não é peró sem importância, também vai ser grande chefe, grande cacique. Vai
chefiar muitos, muitos homens. Vai viver muitos, muitos anos, mais do que vivem
os homens. Foi Anauá quem disse, muitas luas antes de João chegar em Engaguaçu.
Depois eu vou dizer quem foi Anauá. Outro dia...
João Ramalho
nada mais perguntou, guardando a curiosidade para depois. Mais tarde perguntaria a Bartira quem era
esse Anauá. O importante é que o sogro lhe dera autorização para construir sua
própria oca. Sabia que os demais índios não estranhariam que ele fizesse isso e
a ocupasse por uns poucos dias. Compreenderiam que era coisa de peró
recém-casado, que queria ficar só com a mulher, para fazer muito amor com ela,
fazer amor a toda hora. Mas, para quando achassem que ele se integraria à vida
na oca de habitação coletiva, ele tinha uma outra ideia do que fazer.
João correu para
comunicar a Bartira a resposta do pai dela. Foi então pedir um itagi – o machado de pedra – a Jamari, explicando
porque o queria. O rapaz prontificou-se a ajudar o amigo a construir sua
pequena oca. Mas Bartira agradeceu ao primo, dizendo:
– Não precisa,
Jamari. Eu ajudo meu marido a construir nossa oca. Assim fica mais nosso ninho
de amor, nosso irajá.
Nessa mesma
manhã, João e Bartira saíram andando pela planície, tomando o rumo norte.
Depois de duas horas de marcha, detiveram-se para descansar, banhar-se em um
riacho e fazer mais amor. Depois, enquanto estirados à beira de uma capoeira de
mato, começaram a considerar que aquele parecia ser um lugar perfeito para
erguerem sua casa. Começaram então a procurar e cortar a madeira para os
esteios, os galhos para as paredes, os cipós e as folhas de palmeira de que
necessitavam.
Com a
experiência que os dois já tinham, rapidamente montaram a pequena oca,
amarrando os paus com cipós e preparando a armação que receberia a cobertura de
folhas de palmeira. Quando o sol começou a se aproximar do poente, olharam
embevecidos aquela que seria sua casa e seu lar, onde poderiam viver confortavelmente e
receber algumas poucas visitas.
Tomaram o
cuidado de construí-la em um ponto em que permaneceria escondida pelo mato,
ocultando-a aos olhos de quem passasse pela ampla planície adjacente. Ao mesmo
tempo, havia ali uma clareira natural e o riacho passava a menos de 100 passos
da casa.
Os visitantes
que imaginavam receber no futuro se fizeram presentes antes mesmo que eles
pudessem se instalar precariamente na casa. Ouviram estalar de passos se
aproximando na mata e, ante seus olhos atônitos, viram surgir ninguém menos que
Tibiriçá e sua mulher Potira. Junto com eles vinha Caiubi, o chefe indígena de
Jurubatuba e Jamari, seu filho. Caiubi era um dos irmãos de Tibiriçá.
Os quatro cumprimentaram
vivamente os jovens esposos e depuseram no chão as preciosas cargas que
traziam: Muitas peles de animais para forrar o chão e forrar a rede novinha de
embira. Outras, mais finas, para cobrirem-se nos meses de frio. Utensílios
diversos de cozinha, potes, gamelas, cuias, purungas; facas e machados; dois tecidos
de algodão; e uma incrível provisão de raízes, grãos de milho, frutas, mel,
carnes já semi-moqueadas e até uma quarta de cauim. O forte Caiubi depositou no
chão, aos fundos, um impressionante feixe de lenha¸ que daria para cozinhar
durante muitos e muitos dias.
Tibiriçá
entregou ao genro dois arcos recém-preparados, com mais de 50 flechas, duas
lanças de bom tamanho e um tacape enfeitado. E deu ao peró a sua própria faca
de caça e combate.
Os recém-casados
comoveram-se com tanta bondade. Bartira foi às lágrimas, e, abraçando-se a cada
um deles, agradecia sem parar. João Ramalho, adotando o comportamento
hospitaleiro de dono da casa, acendeu um fogo imediatamente e colocou as carnes
para terminar de moquear. E serviu o cauim nas cuias, que os homens derramaram
inteiras na garganta e as mulheres passaram a sorver devagar, gole a gole, como
mandava o bom comportamento.
Mas não houve
propriamente uma festa. Os visitantes foram logo embora¸ assim que terminaram
sua refeição. Disseram que agora o casal precisava de tempo para desfrutar de
sua casa. A última a sair foi Potira, que circulou toda a oca várias vezes,
fazendo uma reza ritualística e espalhando pelo chão folhas de uma erva
especial, que trouxera para isso. A finalidade era afastar maus espíritos do
lugar e criar uma cerca de proteção para sua filha e o marido. Assim
propiciados, os ancestrais haveriam de olhar pelos dois jovens e protegê-los
contra todos os perigos, principalmente contra inimigos tamoios, tupinambás,
carijós e, eventual-mente, até mesmo algum grupo tapuia que viesse do interior.
Quando todos foram
embora, João Ramalho tomou Bartira nos braços e, erguendo-a do solo, carregou-a
assim no colo para dentro da oca, enquanto pronunciava as palavras que eram
clássicas para os recém-casados na Europa há muitas de gerações:
– Enfim sós, meu
amor.
Depositou sua
esposa sobre as peles macias e amou-a com paixão e ternura por muito tempo,
naquela que seria a primeira das inúmeras noites de amor que aquela modesta
casa abrigaria.
CONTINUA
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