quarta-feira, 27 de agosto de 2014

TELMA, LOIRA, ENFERMEIRA - Miniconto
MILTON MACIEL

– Fique quietinho agora. Respire bem devagar. E não tente se levantar ainda.

Para mim, parecia que aquela voz sussurrada vinha de uma outra dimensão... Mas ela me trazia de volta ao mundo real. Entreabri os olhos e deparei com um rosto simplesmente perfeito, absurdamente bonito, como eu nunca tinha visto na vida. A dois palmos de mim, emoldurados entre cabelos loiros e brilhantes, dois olhos de um azul esverdeado quase diáfano me fitavam com candura e bondade, infundindo-me uma paz inacreditável. Só então compreendi que eu tinha desmaiado e que aquela criatura divina, com um corpo escultural, denunciado por um conjunto de blusa e calça impecavelmente brancos, estava cuidando de mim, tratando de me reanimar.

Sim, minutos atrás eu tinha conseguido chegar ao cemitério, onde estava se dando o ato final do sepultamento do meu maior amigo. Jonas havia falecido estupidamente em um acidente de moto, algumas horas antes, naquele fatídico 12 de agosto de 2014. Quando uma voz metálica e distante me deu a notícia por telefone, eu estremeci: Jonas! Não, não ele! Meu camarada de infância, colega de escola, de farra, de conquistas amorosas, de faculdade. Muito mais do que o irmão que não tive. Ultimamente a vida tinha nos afastado, com o meu trabalho me levando para uma cidade a mais de 2000 Km da nossa, de onde ele nunca quisera sair.

Foi muito difícil conseguir passagem de avião para aquela manhã e o vôo ainda atrasou mais de duas horas; acabei chegando ao cemitério em cima da hora. Quando encontrei o local do sepultamento, este já estava acontecendo e cheguei no momento exato de ouvir aquele som horroroso, produzido pelas primeiras pás de terra arremessadas sobre o caixão. Durante toda a viagem eu tinha me portado de forma tranquila, estoicamente. Mas quando ouvi aquele barulho aterrador, tudo o que estava represado no meu consciente e no meu inconsciente extravasou num urro de fera e num ataque violento de choro convulsivo. Só então entrou, encaixou com toda brutalidade na minha mente, que Jonas estava partindo para sempre.

Comecei a ficar sem ar, tonto, vendo tudo girar à minha frente. Senti que alguém me pegava pelo braço enquanto eu estava desabando no chão. Depois toda a luz do dia se apagou e eu não sei por quanto tempo permaneci nesse estado. Só sei que agora estava recobrando a consciência, graças àquela criatura celestial à minha frente. Desejei saber quem era ela, seu nome...

Como se pudesse ouvir minha pergunta silente, a musa falou novamente, enquanto ajeitava minha cabeça no sofá onde tinham me colocado. Era evidente, então, que tinham me carregado lá de fora para aquela sala.

– Sou Telma, enfermeira. E você é o Orlando, eu sei. Pois agora fique quietinho, Orlando, descanse mais um pouquinho. Você já está bem e eu garanto que não vai ter mais nada. Ah, faz quase uma hora que eu trouxe você para cá. Lá fora está tudo acabado, mas você vai ficar bem agora.

Meus Deus, que criatura mais fantástica aquela! Que mulher maravilhosa! Eu me senti como um menino que acaba de descobrir que pode ganhar o presente mais incrível de sua vida. Desejei que ela nunca mais saísse do meu lado, era como se, de repente, eu tivesse que acreditar em algo de que sempre desdenhara: Sim, existia mesmo amor à primeira vista! Telma, minha doce Telma, levantou da cadeira onde estava sentada ao meu lado o tempo todo e disse:

– Agora eu preciso ir, Orlando. Mas daqui um instantinho você vai me encontrar de novo, certo? Só que eu quero que você seja um bom menino, fique aqui deitado mais uns dez minutos. Depois pode sair.

Vocês podem não acreditar, mas eu entrei em pânico imediatamente. Eu não queria que ela fosse, ainda que fosse reencontrá-la minutos depois. Era como se eu fosse perder a coisa mais preciosa que eu tinha descoberto na vida, algo completamente irracional. Tentei me segurar, ter um mínimo de controle. Ela parece que entendeu minha agitação, passou a mão carinhosamente pelo meu cabelo e – o céu, o êxtase! – aproximou de mim o rosto perfumado e deu-me um beijo suave e longo na face. Depois saiu, dizendo, da porta:

– Você é muito querido, Orlando. Também eu teria gostado muito – e desapareceu.

Meu coração ficou aos pulos. Ela me beijou, me afagou! E disse que teria gostado muito... Teria... por quê? Ah, meu Deus, será que ela era casada?!

Não aguentei os dez minutos, nem bem ela sumiu da minha vista, no meio da alameda de ciprestes, eu me levantei de um salto e corri atrás dela. Chamei:

– Telma! Telma! – e corri entre as campas de grama, marcadas apenas por cruzes brancas e por lápides. Perguntei às pessoas que encontrava se tinham visto uma enfermeira loira, jovem, toda de branco. Não, ninguém tinha visto, ninguém mesmo.

Subitamente meu passo foi interrompido por algo que eu não vi. Apenas sei que tropecei no próprio ar e, para não cair, me apoiei numa enorme lápide branca, de mármore, com uma inscrição e uma grande fotografia, como quase todas ali.

E foi quando, tal qual ela havia garantido, revi Telma.

Meus olhos levaram algum tempo para se desprender daqueles olhos diáfanos, de cor azul esverdeada, que me olhavam de dentro da fotografia colorida. Olhei para as letras e elas gritaram para mim o inacreditável:

Telma de Souza
* 27/01/1987      + 11/08/2014
Saudades dos seus colegas do Hospital Universitário

Caí de joelhos no chão, abracei-me à lápide, encostei meu rosto na fotografia sob o vidro oval. Minha Telma, meu anjo loiro, tinha morrido um dia antes de Jonas! Senti que ela estava ali comigo. E senti que naquele momento, sim, seria a nossa despedida. Fiquei feliz ao lembrar que ela disse que ela também teria gostado. Como eu teria gostado tanto, tanto! Mas não foi possível... Depois de um longo período levantei dali na mais completa e absoluta paz. Ela tinha partido! E fui tratar de fazer o que tanto Jonas como Telma queriam que eu fizesse, tive certeza: fui continuar minha vida.

E seria uma vida diferente. Telma, ao me socorrer, salvou-me mais do que o corpo: devolveu-me a crença nas pessoas, a crença na Vida. Antes de Telma, eu era materialista, agnóstico, cínico. Ela precisou menos de duas horas para me mostrar que eu estava redondamente enganado!



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