MILTON MACIEL
Fim da 18a, parte:
Jamari soltou-se dos tamoios que o aprisionavam e foi
explicar o impasse a João Ramalho. Então o português falou algo a Jamari que o
fez arregalar os olhos com enorme brilho. E ele falou para todos os tamoios,
enquanto João Ramalho sujeitava firmemente o filho do chefe deles num verdadeiro
torniquete ao redor do pescoço:
19a. parte - O planalto
– Vocês ganhou
de nós na luta, porque vocês muito mais gente. Mas seu chefe lutou só com um
peró e perdeu. Perdeu feio! Vergonha pra ele, não vergonha pra nós. Então nós
pode levar ele. E vocês leva os que quiser de nós, mas só um pouco.
Nesse momento
João Ramalho interveio, falando em seu já razoável tupi:
– Ou vocês não
levam ninguém e eu não levo o chefe de vocês!
E, no mesmo
momento, libertou o filho do cacique tamoio de seu abraço. Abraço de urso, pensou, divertido. Está aí um bicho que aposto
que estes bugres não conhecem.
O homem
libertado por ele correu a se reunir com seus guerreiros e os dois grupos se
refizeram, com os poucos que tinham ficado inconscientes já de volta à plena
consciência. Seguiu-se um tempo de muita deliberação e discussões. Para os
tamoios, voltarem sem o filho do cacique e, ao mesmo tempo, chegarem com seis
ou mais prisioneiros implicava em um risco mais ou menos sério. Por eles,
estava melhor aquele acordo proposto pelo peró.
Já alguns dos guaianases
achavam que seria uma grande desonra para eles se aceitassem aquilo. Tinham
sido claramente derrotados pelos tamoios, a nobreza de comportamento lhes
exigia que fossem levados como cativos para a taba dos vencedores. E que fossem
comidos como importantes guerreiros, em grande festa cerimonial.
O impasse estava
formado, porque alguns tamoios não queriam ir embora sem levar prisioneiros, ao
passo que a maioria preferia não correr o risco de chegar sem o filho do chefe.
Mais uma vez foi João Ramalho que resolveu a situação, com uma ideia muito
amalucada:
– Pois eu
desafio todos vocês a lutarem comigo. Mas tem que ser um de cada vez, se vocês
não forem covardes. O chefe de vocês já é meu prisioneiro. Agora eu derroto
todos vocês, um após o outro, e nós levamos todos os tamoios para comer em
Inhapuambuçu.
A seguir,
apanhou no chão e calçou suas botas, para surpresa geral. E colocou-se
imediatamente em posição de luta, abaixado. Um guerreiro tamoio aceitou o
desafio e veio se colocar à frente dele. João fez sinal a ele que atacasse primeiro.
Quando o homem avançou com os braços, o português saltou para trás, erguendo-se
velozmente. Armou o bote e soltou-lhe um tremendo pontapé na cabeça,
atingindo-o em cheio com o duro salto de sua bota, O tamoio rolou no chão,
desacordado. Do alto de sua cabeça corria um filete de sangue.
Ramalho
encaminhou-se para o grupo de inimigos e colocou-se novamente, agachado, em
posição de luta. Houve um longo intervalo em que nada se ouvia, a não ser o
ciciar de cigarras na floresta. Então o chefe dos tamoios, o filho do cacique,
assumiu sua condição de autoridade máxima e gritou com seus guerreiros,
ordenando-lhes que voltassem todos para sua taba imediatamente.
Pelo alarido
feito por eles e, também, pelos guaianases, pôde-se ver que estavam todos muito
felizes e aliviados com o desfecho. O líder tamoio caminhou então em direção a
João Ramalho e lhe disse:
– Peró grande
lutador. Muito corajoso, desafiando todos nós pra briga. Muito esperto também!
Peró salvou minha vida e salvou todos nós, os que perderam, tamoios e
guaianases, de passar vergonha. Eu sou Acauã, filho de cacique Ubiratã. Acauã é
grato a peró, peró pode visitar nossa tribo quando quiser, meu pai vai ficar
contente e vai mandar que nenhum de nossa tribo seja inimigo de peró.
João Ramalho
aproveitou imediatamente o ensejo e, tomando na sua a mão de Acauã, apertou-a à
maneira européia, enquanto dizia:
– Meu nome é João Ramalho, sou peró e tenho
honra de ser amigo de Acauã, de seu pai Ubiratã e de seus guerreiros. Que nunca
mais exista luta entre nós. E pode ter certeza que vou aceitar, sim, o seu
convite e vou visitar sua tribo dentro de algumas luas. Posso levar meus amigos
aqui?
Não só Acauã,
mas todos os tamoios disseram que sim. Ao menos entre aquele reduzido números
de guerreiros tamoios e guaianases a paz estava feita. Despediram-se com amplos
gestos de amizade e foram embora cada um para seu lado, com os guaianases demandando
o rumo sudoeste.
O planalto
Depois de
caminharem cerca de um quarto de hora em silêncio, subitamente, a um sinal de
Jamari, todos os guaianases pararam e prorromperam num brado uníssono de
vitória. E correram todos a abraçar o português. Jamari falou:
– João Ramalho
salvou todos nós hoje. E salvou a honra de todos também. Quando chegar em
Inhapuambuçu, nós vai contar tudo e pedir pra fazer grande festa em homenagem a
João. Grande luta essa de peró, com as mãos fechadas e com os pés. Nós não tá acostumado
com ela, nem os tamoios. Com ela, João vence fácil qualquer índio. Como chama
essa luta?
– Ah, nos
chamamos de luta livre romana. E a luta que usa só os punhos, chamamos de
pugilato romano.
– Romano? Que é isso?
– É o nome de
quem inventou essa luta – João Ramalho sabia que não adiantaria nada falar
sobre Roma naquela hora e lugar.
– Pois esse tal
de Romano é homem muito inteligente, luta dele muito boa. João pode ensinar a
gente a lutar assim, como o Romano?
– Ora, mas é
certo que sim, meu bom amigo. Está aí uma boa, uma ótima ideia. Vamos fazer
isso, sim. Vocês vão me ensinar muita coisa boa do mundo de vocês e eu vou
ensinar as coisas boas do meu. Está decidido.
Então todos
retomaram a marcha, conversando muito animados, comentando a rápida reviravolta
que o amanhecer lhes trouxera. Primeiro o ataque dos tamoios, depois a derrota
e a possibilidade do cativeiro e da morte honrosa, redentora dessa derrota. E
aí, inesperadamente, a reviravolta de reviravolta, com o peró desafiando e
vencendo dois fortes guerreiros tamoios e, com sua ideia genial, transformando
tudo numa inimaginável celebração de paz e até de amizade com o inimigo.
Voltaram àquele
passo rápido que tinham, que não os forçava e não os fatigava. À sua frente
tinham mais de um dia de marcha pelo planalto, ate poderem chegar a
Piratininga, onde ficava Inhapuambuçu, a taba do cacique Tibiriçá.
A casa de Potira! – era
tudo o que pensava João Ramalho, que voltara a caminhar de pés no chão, com as botas novamente amarradas ao redor do pescoço.
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