MILTON MACIEL
Final da 16a. parte:
– Vai saber,
João,. Vai saber. João agora é índio, vai aprender tudo, até a remar direito,
sem atrapalhar os outros.
E caiu na gargalhada, no que foi secundado pelos outros.
Inclusive João Ramalho. Que estava feliz, bem alimentado e ansioso para começar
logo a subida. Ao fim dela, não importa o quanto tivesse que andar depois pelo
planalto, uma indiazinha bonita e sensual estaria de braços abertos à sua
espera. E essa era agora a grande motivação de sua vida:
Potira!
17a. parte: Aqui Paranapiacaba !
Como Jamari
antecipara, o grupo começou a subir facilmente, andando por dentro do rio, que
descia com águas ainda relativamente mansas pela parte menos íngreme da subida
da serra. Ali a profundidade era minúscula de fato, com água à altura dos
joelhos. A caminhada era rápida e agradável. Um pouco mais desconfortável para
João Ramalho, que não conseguia se desfazer de suas velhas botas, por mais que
o amigo insistisse para que as abandonasse:
– João não é
índio no pé. Se deixa bota, aprende em seguida que pé fica grosso e se defende
sozinho. Experimenta.
Mas o português
desconversava e seguia calçado, trotando agora com as botas pesadas de tanta
água. O barulho esquisito que isso fazia e os escorregões que ele levava nas
pedras largas e limosas do fundo faziam com que, a toda hora, seus companheiros
rissem ostensivamente dele.
Cerca de meia
hora durou esse autêntico passeio por dentro do rio, na sua parte de menor
aclive. Depois, este começou a aumentar sensivelmente e as águas, então,
passaram a correr com velocidade cada vez maior. A profundidade foi também
aumentando e verdadeiros caudais se formavam, dividindo o leito em estreitas
gargantas espremidas entre as rochas. A correnteza e a profundidade cada vez
maiores inviabilizaram o deslocamento pelo leito, de forma que, num certo
ponto, sem que nenhum dos índios tivesse dito nada, todos eles saíram de
repente de dentro do rio e passaram a andar pela margem esquerda, também ela
eivada de obstáculos naturais, como lajes de rocha escura e escorregadia.
Esses obstáculos
foram se tornando cada vez mais difíceis de transpor e chegou um momento em que
os rapazes que iam à frente começaram a escalar um rochedo enorme e liso, de
cerca de cinco metros de altura. Ao lado dele, a margem toda se erguia agora
num paredão quase vertical, não deixando outra alternativa senão a escalada.
Os índios
logravam fazê-la com evidente facilidade, acostumados que estavam a isso. Mas,
para o beirão, aquilo transformou-se num verdadeiro suplício. Foi quando ele se
convenceu que, com suas botas rangedeiras e encharcadas, de solas lisas e
duras, jamais conseguiria grimpar-se ao rochedo. Então, seguindo a recomendação
dos companheiros, fez o óbvio e inevitável: descalçou as botas e deu um jeito
de prendê-las amarradas ao redor do pescoço, usando para isso dois pedaços de cipó
buscados por Jamari num pequeno mato adjacente, que era também interrompido por
abrupto paredão lateral.
Alguns minutos,
vários escorregões e duas quedas sem maiores conseqüências, exceto as
gargalhadas do companheiros, e João Ramalho conseguiu chegar ao alto do
rochedo. Para ter que reiniciar de imediato o sofrimento, porque agora tinha
que descê-lo, numa altura desse lado estimada por ele nuns três metros.
E esse foi só o
começo da dureza para o português. Logo a seguir o rio encapelou-se em uma cachoeira
de 6 metros de altura e a única forma de continuar implicava na escalada do
íngreme paredão lateral, o que os índios começaram a fazer com a maior
naturalidade, ao mesmo tempo em que conversavam e riam animados. Apoiavam os
pés em minúsculas saliências da rocha, abraçavam-se a ela com um esforço que
aparecia em seus músculos intumescidos e a iam contornando e subindo. Quando
chegaram à metade, passaram todos para um conjunto de arbustos que margeavam a
rocha, presos à vertente íngreme da lateral.
Agarrando-se
agora à vegetação, conseguiram subir mais rapidamente e com maior facilidade.
E, chegando no topo, começaram a chamar João Ramalho, que, apavorado, ainda
permanecia lá embaixo. Solidário, Jamari esperava com ele. E lhe falou:
– Agora João tem
que subir. Não tem medo, João. Faz tudo o que Jamari fizer. Tudo igual, onde eu
piso, João pisa. Onde eu agarro, João agarra. E não olha pra baixo, bobage.
Pensa que tem que subir, que isso é só começo. É parte mais fácil.
– Fácil?! Com a
breca, queres tu dizer que vai ficar mais difícil mais à frente? Mas estão isso
é impossível, homem de Deus!
– Impossível,
nada. João aprende. Difícil só primeira vez. Depois aprende e perde medo. João
vai se queixar é de dor nos braços e nos pés, mais isso passa. Vem, João,
lembra que lá em cima tem recompensa muito boa: Potira espera João.
O português
imaginou a bela Potira a esperar sorridente por ele, a abrir-lhe os braços
amorosos. No instante seguinte imaginou-a abrindo-lhe também as pernas e isso
inflamou-o instantaneamente. Tudo o que ele queria agora era vencer aqueles
malditos rochedos, nem que, para isso, tivesse que se arrebentar inteiro.
Jamari deu um
salto e agarrou-se na parede lisa. João Ramalho fez exatamente a mesma coisa,
tratando de pisar e agarrar-se nos mesmos pontos que o amigo havia abordado.
Deu certo! Gemeu sob o enorme esforço
feito com os braços, mas percebeu que dessa forma tinha firmeza. E galgou o
rochedo na mesma velocidade de Jamari. Quando chegou à parte em que saiam da
rocha para a capoeira íngreme de arbustos, uma touceira deles se desprendeu com
o seu peso e ele balançou no ar prestes a cair lá embaixo. Mas o braço firme de
Jamari o susteve a tempo.
– Ai, obrigado,
amigo, que quase que me estuporo todo lá embaixo! Pode ser que me tenhas
salvado a vida, homem. Fico a dever-te esta.
– Bobage! – foi
tudo que Jamari falou, rindo tranquilo. E explicou como João devia agarra-se a
ramos e arbustos com mais atenção, sem jogar-se afoitamente a eles:
– Até porque
pode ter cobra e pode ter aranha venenosa ali.
– Hom’essa!
Agora mesmo é que me deixas apavorado, ó Jamari! Com que então não basta eu
morrer estabacado lá embaixo, posso também morrer picado por cobra ou por
aranha! Ai, Jesus, será que chego lá em cima? Aí, minha Potira, será que vais virar
viúva antes de casar-te comigo?
– Bobage, João
aprende. Usa olho, se tem cobra, aprende a ver. Se tem aranha, aranha é grande,
aprende a ver. É fácil. Olha primeiro, bota mão depois. Fácil.
Mas a via crucis
do português continuou por mais duas horas, escalando paredões cada vez mais
altos e mais íngremes, contornando cachoeiras, atravessando o rio várias vezes,
a nado e lutando contra a corrente turbilhonante, porque o caminho pela margem
oposta era menos complicado naquele trecho. O cansaço e a dor nos braços forma
se acentuando cada vez mais, mas João Ramalho só pensava em duas coisas:
Uma, que ele não
podia fazer feio, que se os rapazes à frente dele subiam, ele tinha que subir
também. A outra, o que mais o ajudava, era usar sua imaginação para criar cenas
em que entrava num rio ou se embrenhava no mato com sua Potira nuazinha.
Ajudou-o o fato que a tarde foi escurecendo e a noite se aproximando, de forma
que ele já não podia se impressionar com o abismo, cada vez mais fundo a seus
pés, coisa agora de centenas de metros, já que não podia mais vê-lo na
escuridão.
Continuou
seguindo os companheiros e o infatigável Jamari, que ficava o tempo todo ao seu
lado, orientando-o e animando-o. A um sinal deste, João começou a perceber que
agora não havia mais escaladas a fazer, que estavam se afastando do rio,
subindo por um percurso menos íngreme, por dentro de uma floresta pouco densa.
O ruído intenso da água despencando pelas ravinas do rio foi se atenuando até
desaparecer, a aclividade diminuindo progressivamente, até que, num dado
momento, em plena escuridão, Jamari e os outros rapazes pararam de repente e
começaram todos a comemorar.
Riam e batiam os
pés com força no chão. E abraçavam João à maneira dos europeus, como tinham
aprendido com ele.
– João chegou,
aqui Paranapiacaba! Serra é nossa, João venceu. Agora nós vai descansar, comer
e dormir. E fazer fogueira pra esquentar, que vai fazer frio demais pra João.. Tem
outro rio aqui perto, bom pra pescar de noite. Nós pega peixe e lenha agora.
Para João era inacreditável
que os índios caminhassem ali, em plena noite, como se fosse dia, como se enxergassem
tudo normalmente. Para ele a noite, sem lua, com céu cheio de estrelas, era
puro breu. Mas em pouco tempo havia fogueira, muita lenha e vários peixes sendo
assados. O paraíso!
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