A
INTENTONA DE 35
No terceiro copo de chope, eu já sou um
cara espontâneo. No quinto, fico sincero pra burro. No sexto, ousado. Assim,
depois de uns... (bom, sei lá quantos, não lembro mais, com aquela comida árabe
toda, aqueles charutos de repolho) lasquei direto pro Maguito:
– Tô louco pra pegá tua irmã! Muito
gostosa!
O Maguito já devia ter passado dos dez,
porque ele respondeu na lata:
– Eu também! Mas essa sociedade decadente
inventou essa porra de incesto...
– Tô doido pra dá uns amassos nela.
– Taí, tu tem bom gosto! Já que eu não
posso, eu te ajudo.
Dei um beijo no Maguito e gritei pro
garçom:
– Mais charuto de repolho. E o meu maior
amigo aqui não paga nada hoje.
E o Maguito:
– Salta mais chope também. O meu cunhado
aqui não quer que eu pague nada hoje.
E aí ele me segredou:
– A Sílvia tá fácil, fácil, na comemoração
do coroa. E como lá só tem velho mesmo, se a gente vai, você se dá bem.
– Que papo é esse de comemoração do coroa.
– Ah, é um barato do nosso avô. Hoje é 27
de novembro. E todo 27 de novembro, ele junta um monte de caco velho que nem
ele e comemoram o aniversário de uma tal de Intentona.
– Intentona? Mas quem é essa Intentona? É uma
velha da patota deles?
– Não pode ser. Porque eles falam que é a
Intentona de 35. O velho tem pra mais de 80 anos. Pode ser uma pilantra de 35 anos,
que dá mole pros velhos e arranca uma grana deles. Se bem que, no caso do meu
avô, quem dá mole é ele mesmo. Dura é que ele não vai dar.
E o Maguito se afogou com o chope, de tanto
que riu do velho. Aí eu mandei ver:
– Pô, vamo logo pra essa tal de
comemoração, to doidão pra pegá tua irmãzinha.
Paguei e a gente errou a saída, saímos foi
no pátio dos fundos do restaurante. Lá tinha uma moto com a chave no contato. A
gente montou e saiu a toda. Na porta do restaurante tive a impressão de ver o
nosso garçom correndo desesperado. Mas acho que foi coisa do chope.
Porra, o Maguito dirige moto mal pra burro!
Ou vai ver que foi o chope! Afinal a gente chegou no tal clube não chegou? Tá
certo que antes a gente entrou numas vielas bem pau da Rocinha, uns caras lá
mandaram chumbo na gente, o maior barato, a gente caiu na gargalhada, porque os
panacas atiravam mal pá caralho, não
acertaram um único teco na gente! Afinal, o tal clube ficava em São Cristóvão,
não sei o que o Maguito foi fazer na Rocinha, se a gente saiu do Catete.
Mas o que importa é que nós chegamos lá. Aí
o Maguito perguntou onde eu ia estacionar o meu carro. Arrepiei:
– Pô, é mesmo cara, a gente foi no meu
carro, de onde saiu essa moto?!
Bom filosofia numa hora dessas não adianta
nada, a gente já estava no tal clube, o negócio era entrar logo, porque eu
tinha dois problemas agora: Um: eu tava louco pra encontrar a irmã do Maguito e
dar uns amassos nela; Dois: aquela idéia de misturar chope com comida de boteco
árabe e um monte de charuto de repolho tava me causando uma rebordosa no baixo
ventre. Avisei o Maguito:
– Vai desentocando a gata pra mim, eu tenho
que achar um banheiro antes, emergência!
Mas nessa hora a Silvinha apareceu, toda bronzeadinha,
com um vestidinho branco que acabava meio palmo abaixo da calcinha (era branca
também!). Aí eu pirei. Dane-se o banheiro, pra que um homem tem força de
vontade?
A Silvinha agarrou o Maguito pelo braço e
disse:
– Você atrasado como sempre! E ainda traz
um amigo junto. Oi, Heleno! Olha, entrem de fininho, o negócio do velho já
começou tem um tempão, eu agüentei o que deu, tive que ficar até o fim do
discurso do vovô. Você sabe como é horrível, todo ano a mesma coisa, A tal da
Intentona de 35. Agora fiz sinal pro coroa que tinha que ir no banheiro. Mas
vocês entrem de fininho, por favor. Se o velho saca que vocês não estavam na
hora do discurso dele, vai ser o diabo! Olha, tem uma porta lateral pequena, com
uma cortina, entrem meio abaixados por ali, sai no meio do auditório. Mas não façam barulho, pelo amor de
Deus!
Eu estava hipnotizado pela boquinha da Silvia.
As coxas bronzeadinhas... aaah. Pô, não saquei onde era a tal porta lateral. O
Maguito muito menos. Mas ele me deu um empurrão e disse:
– Vamos, vamos, onde tiver uma cortina a
gente entra.
A gente deu umas três voltas e nada de
cortina. Lá dentro já estavam lascando um velho hino, pelo som devia vir de um
daqueles discos de 78 rotações que o velho tinha, era uma chiadeira só. Por fim
encontramos uma cortina, até que grande pra burro e nos enfiamos meio
abaixados. Saímos no meio do palco!
A velharada toda de agitou. Era um monte de
coroas com fardas militares antigas. Pensei: Ih, fedeu! Mas o coroa do Maguito
até que foi legal:
– Isso são horas de chegar, meninos?! Mas nós não podemos reclamar, afinal é lindo
ver que a juventude de hoje ainda sabe respeitar e prestigiar os verdadeiros
heróis como meu pai, o terceiro-sargento Argimiro Saldanha.
– Viva Argimiro Saldanha! – gritaram todos
os velhos.
Perguntei baixinho pro Maguito:
– Quem foi esse cara?
– O pai do meu avô. Minha mãe disse que o
velho era doidão. Quando era apresentado para as pessoas, dizia que era um
herói, que tinha levado tiro durante um tal de levante. Foi um tiro na bunda. E
aí, pra provar, ele arriava as calças e a cueca e mostrava a cicatriz na bunda
mole e murcha. O vovô tem o maior orgulho desse seu pai herói.
– Pô, velho muito doidão... Devia cheirar
umas carreiras pesadas, não...
– Sei lá. Mas olha: o coroa está chamando a
gente pro meio do palco. Vamos lá.
No centro do palco havia uma coisa coberta
com a bandeira do Brasil. O velho falou:
– Este ano vamos deixar que os jovens
tenham o privilégio de abrir nosso relicário. Por favor, rapazes, vocês que
representam o futuro heróico desta pátria amada:
E, com um só puxão, arrancou a bandeira de
cima do... do CAIXÃO DE DEFUNTO!
Puta cagaço, quase me borro! Não, é
verdade, a essa altura a coisa tava braba lá por baixo, minha barriga fazia
barulho de cano d’água e eu comecei a suar frio. Um caixão de defunto!
O velho pegou minha mão, botou numa parte
da tampa e disse:
– Você, meu jovem, vai ter a honra de abrir
nosso esquife de 2013. Vamos homenagear nosso soldado desconhecido.
Na verdade ele é que abriu aquela tampa.
Dentro tinha um cara morto, com farda do exército, um monte de coisa parecendo
sangue na tal farda. Minha revolução intestina piorou muito. Mas o Maguito me
deu um puxão e cochichou no meu ouvido:
– Se acalma, cagão! Eles fazem isso todo
ano, é um MANEQUIM!
Olhei bem e senti que o sangue me voltava
às faces. Mas algo continuava indócil mais embaixo. Caramba, eu tinha que
correr para um banheiro já!
Com o tal esquife aberto, o velho comandou:
– Agora o momento culminante de nossa festividade.
Todos em pé no auditório, vamos nos preparar para fazer um minuto de silêncio
em homenagem a todos os valentes militares mortos pela Intentona Comunista de
35.
Eu fiquei impressionado e cochichei pro
Maguito:
– Pô, essa Intentona era comunista é? E ela
matou uns soldados?
– Comunistona. Irada! Matou uma porrada de milico, cara. Daqui um pouco
eles vão ler a lista, mais de 20, todo ano eles lêem.
– Intentona! Que nome. Acho que deve ser
apelido. E eu pensando que era amiga do teu coroa, que ele andava de cacho com
ela...
– Não, eles falam mal dela pra burro. Era
inimiga deles. Acho que chamam de intentona por que devia ser uma baita
gordona. Só não lembro como é que ela matou tanto homem sozinha.
– Ora, mano, só pode ter sido uma bomba!
Vai ver ela era gente do Bin Laden.
Um olhar severo do avô nos impôs silêncio. E
o velho me colocou um calhamaço de folhas na mão:
– Esta ano, nosso jovem visitante aqui vai
receber a grande honra de ler a nossa lista de heróis mortos pela Intentona de
35¸ esse bárbaro atentado contra o quartel, levado a efeito pelos comunistas aqui no Rio de
Janeiro, naquela trágica noite de 27 de Novembro de 1935. E agora, por favor,
todos quietos, chegou nossa hora mais solene: um minuto de silêncio em
homenagem aos nossos heróis mortos pela Intentona Comunista de 1935!...
E o silêncio começou. Eu estava pasmo. A
tal Intentona não era uma mulher gordona terrorista, era um atentado de uns
malucos contra um quartel. Tinham matado uns carinhas e...E tinha sido em mil
NOVECENTOS e trinta e cinco! Caramba, mas que idade tinham aqueles matusalens
ali, então?!
O pior é que, assim que acabasse o tal
minuto de silêncio, eu ia ter que ler um monte de nomes com biografias. E eu
estava tremendo. Cara, a coisa na minha barriga estava demais! A pressão
aumentando, aumentando, aumentando. Até que de repente, no meio do maior
silêncio daquelas dezenas de pessoas, a pressão encontrou o caminho da
liberdade. É, foi por lá mesmo, que outro caminho existe? Eu arregalei os olhos, me apertei todo, mas
não deu pra segurar. De repente, saiu um barulhão de canhonaço das minhas
entranhas, em revolta contra charutos de repolho e comida árabe com chope:
– Brrrruuummmmmmm!... – em pleno minuto de
silêncio.
O Maguito caiu na maior gargalhada, se
dobrava de tanto rir. A Silvinha, que tinha voltado e estava bem na fila da
frente do auditório, fez a mesma coisa. Os velhos do auditório até que tentaram
segurar a gargalhada, era falta de respeito com o manequim no caixão, mas...
Também não deu, a gargalhada foi geral. E crescente, cada vez mais alta.
O avô do Maguito ficou vermelho, furioso,
apoplético! Parecia que ia ter uma coisa. Nunca um desrespeito tão grande tinha
acontecido numa cerimônia solene como essa, em seus mais de 85 anos. O velho
passou a mão numa espada velha, dentro da bainha, e veio pra cima de mim, ia me
desancar com bainha e tudo.
Mas mal deu dois passos e teve que recuar
apavorado. O CHEIRO, camarada! O cheiro ali no meio daquele palco tava um
horror. Eu também tava apavorado. Mas muito mais apavorado fiquei quando o tal
manequim deu um pulo de dentro do caixão e deitou a correr para o auditório. A coisa tava braba demais, nem manequim
agüentava! Mas aí, quando o manequim sentou e começou a se abanar, conversando
com os velhos da frente, é que eu vi que aquilo não era manequim coisa nenhuma,
era um daqueles caras mesmo, se fingindo de morto.
A essa altura o Maguito tomou coragem,
entrou na nuvem do cogumelo atômico de repolho e me agarrou pelo braço:
– Vamos se mandar, cara, que a coisa vai
feder é pro teu lado já, já. A velharada vai te esfolar vivo assim que a tua
proteção abaixar. Não precisei outro incentivo, saímos os dois correndo pra
frente, ali em algum lugar a gente tinha deixado uma moto. Moto? Onde? E alguém
lembrava? Pobre do garçom! O jeito foi sair correndo dali também, que as
primeiras cabeças brancas começavam a apontar na porta do clube. Pegamos o
primeiro ônibus que passava e nos mandamos. A Salvação!
Bem, só em parte. Depois de uns dois
quilômetros eu tive outro acesso de liberdade em estado gasoso e os caras nos
botaram pra fora do ônibus a tapa. Desceram junto todos eles, com cara de
desespero. Escondidos, a gente viu que, depois de uns dez minutos o motorista, heroicamente,
entrou e fez sinal pro pessoal: barra limpa! Entraram todos e foram embora, maldizendo este
seu pobre narrador aqui.
A Silvinha? Tá de gozação comigo cara? Até
hoje, toda vez que eu não consigo me esconder dela, ela me olha e cai na maior
gargalhada. E logo comenta com quem estiver perto dela. Maior vexame cara! Quem
manda ser um ignorante em História do Brasil?
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