MILTON MACIEL
Fim da 14a. parte:
– Sim, acaba até começar de novo. Não é simples? O bom é que,
desse jeito, a gente não se mata quase, as tribo tudo continua tudo cheia de
gente; e as aldeia que são queimada, se constrói outra em poucos dia...
– E vocês podem continuar se vingando uns dos outros eternamente...
– Isso, agora João compreendeu!
– E comendo um assado de gente também...
– Sim, mas de gente não, que nós não é canibal. De guerreiro
inimigo valente, de herói inimigo. É só isso que nós come.
15a. parte
João Ramalho
passou uns dois dias ensimesmado com aquela nova informação. Jamari acreditava
e insistia: os guaianases não eram canibais. E a lógica era estranhíssima. Se
fossem canibais, comeriam carne humana todos os dias, se possível. Mas não,
eles não faziam isso. Jamais comeriam a carne de um homem covarde, de um índio
qualquer, que não tivesse sido capturado vivo, depois de demonstrar grande
coragem e competência no combate. Nunca comeriam um inimigo morto em combate,
sem dar mostras de bravura. Ou uma mulher ou uma criança. Isso era feito só pelos
canibais verdadeiros, os tais de antropófagos.
Mas, para o
jovem guayanã, eles não eram canibais porque só comiam carne humana em raras
ocasiões, e assim mesmo muito pouco. Não comiam para matar a fome ou para ter
prazer, mas para absorverem a coragem e a nobreza do adversário abatido. E era
uma homenagem que prestavam a ele, acima de tudo.
No terceiro dia,
João Ramalho voltou ao assunto, já falando, a maior parte do tempo, na língua
tupi, que aprendia muito rapidamente.
– Jamari,
dize-me cá uma coisa: que raios de gosto tem a carne humana?
Jamari riu, com
uma expressão de quem estranhava a pergunta, mas respondeu:
– Depende. Carne
de índio é bom. Quase mesmo gosto que macaco, que paca grande. Mas carne de
português...
– Ai, Jesus!
Assim tu me assustas, criatura! Quer dizer que vocês comem também carne de
brancos portugueses? Mas isso é terrível. Quer dizer que poderiam ter me ...
– Não, João.
Bobagem. Nós não é canibal, não come homem branco. Já expliquei: só guerreiro
índio muito valente. Mas tem os outro que come branco. Os tamoio, nossos
inimigo. Eles comem português, tem ódio de português. Mata e come. Leva
prisioneiro , mas come em seguida, não faz honra. E eles diz que comem com
raiva, porque carne de português não é bom como carne de índio.
– Ufa, me
devolves a tranquilidade, homem! Mas, por que raios a carne de português não é
boa?
– Eles diz que
carne de português é muito doce. E azeda, também. Doce deve ser por causa das
porcaria que branco come. E azeda, eu penso, deve ser por causa da sujeira,
roupa fede, corpo fede, não toma banho quase.
– Ora, mas assim
tu me ofendes, criatura!
– Ofende não,
João. João já aprendeu a tomar banho todos os dia, pensa que eu não vi? Mesmo
quando as menina não veio buscar João pro banho, João já vai pro rio se lavar.
E João já não usa mais roupa, que fede
muito, né?
– Bom tenho que
reconhecer que tens razão. Acostumei-me com vossa higiene e limpeza. De mais a
mais, como a toda hora me aparece uma moça ou uma mulher querendo me levar para
o mato, aprendi que devo estar sempre limpo. Porque nenhuma delas me procura
sem antes ter se banhado inteirinha. E quanto a andar sem roupa... Bem, começa
que não tenho mais roupas, praticamente. Só aquela muda que está bem ruinzinha.
Mas a verdade é que estou me acostumando a não usar roupa porque... bem, porque
é melhor mesmo. Como estamos no verão e aqui é mui quente, não sinto quase
frio. Mas quando chegar o inverno...
– Quando chega
frio, principalmente lá em cima, Inhapuambuçu, Piratininga, nós dá coisa pra
João proteger corpo, tem coisa que as mulher faz com algodão e tem peles de
bicho, pele macia. Mas, se João acostuma andar sempre pelado agora, quando vem
o frio vai ver que já se acostumou e nem vai precisar de proteção pra corpo.
O português
voltou ao assunto que o intrigava:
– Com que então
eu sou doce demais e azedo?
– Pros Tamoios,
que nós não come português. João deve ser doce, mas acho que não é mais azedo:
anda pelado e toma banho agora!
Nas semanas
seguintes, o domínio da língua tupi passou a ser uma realidade para João
Ramalho. Tinha sido mais fácil do que ele esperava. Aconteceu que o número de
vocábulos era muitíssimo mais resumido do que em idioma português. Em
compensação, a maneira de pronunciar era surpreendente-mente mais difícil. Era
como se eles tivessem não só cinco vogais, mas vinte. Havia várias formas de
pronunciar aquele som básico que corresponderia à letra A do alfabeto, como se
existissem várias vogais A.
O beirão teve todos os méritos nesse
aprendizado, porque soube explorar a fundo toda a boa vontade de Jamari e das
índias, às quais correspondeu com um esforço que chegava às raias do
sacrifício. Repetia cada palavra vezes sem fim, falava-as e pedia para ser
corrigido¸ dormia repetindo a mesma coisa até pegar fundo no sono, repetia-a
sonhando em voz alta.
Quando se sentiu
mais seguro no domínio do tupi, então começou a puxar conversa com os homens também.
Estes souberam reconhecer o valor do esforço do rapaz e trataram também de
ajudá-lo a se comunicar de maneira ainda mais completa. Para isso, começaram a
levá-lo consigo em suas atividades diárias: caçar, pescar nos rios, pescar no
mar, recolher frutas e raízes, fabricar canoas com troncos de árvores, cortar
lenha, cortar madeira para construir ocas, colher palha de palmeiras para fazer
telhados, construir paliçadas de defesa.
Depois Jamari e
mais dois índios começaram a ensinar o português a usar a as armas indígenas: lança,
arco e flecha, borduna e punhal. Iniciaram-no também no tipo de luta que
praticavam, que João Ramalho, que aprendera em sua terra a luta-livre e o
pugilato romanos, achou extremamente simples e muito vulnerável. Precisou
aprender a carregar enormes toras de troncos nas costas, em competições em que
os índios pareciam de divertir muito. O português era mais alto e mais forte do
que a maioria dos índios, mas estes estavam muito acostumados, desde crianças,
ao que faziam e tinham a musculatura mais desenvolvida.
De qualquer
forma, aquele período de contato diário com os homens teve um efeito muito
benéfico para o português. Formou ali sólidas amizades que, não o sabia ainda,
haveriam de durar pelo resto de sua vida. Também sem que o soubesse, aquele
adestramento em luta e em uso de armas haveria de ser-lhe valiosíssimo muito
antes do que ele poderia imaginar.
Um terceiro
efeito aconteceu também: João começou a passar muito mais tempo longe das
índias, que ficavam impacientes, disputando-lhe muito mais a atenção quando ele
voltava. E, ao distanciar-se delas, o rapaz começou a lembrar muito mais da
indiazinha que o cativara desde o primeiro momento. João começou a sentir muita
falta de Potira.
Por isso, num
fim de dia, comentou com Jamari e seu pai que já se sentia em condições de
subir até Inhapuambuçu e mostrar ao chefe Tibiriçá que já era digno de casar
com sua filha. Agora, ele já era um índio: sabia falar o tupi, sabia lutar,
caçar, pescar, usar armas, construir canoas e ocas. Vivia pelado como os
índios, a única coisa que ainda usava eram suas velhas botas, cada dia mais
acabadas.
Ouviu com grande
alegria, que eles também concordavam. E João Ramalho obteve do cacique a
permissão de fazer a longa caminhada, serra acima, até a aldeia de chefe
Tibiriçá. Para sua surpresa e encantamento, o cacique decidiu que, além da já
prometida companhia de Jamari, ele teria também mais dez guerreiros a
acompanhá-los na viagem. Muitos mais se ofereceram e Jamari acabou por fazer a
seleção. Todos eles tinham sido instrutores de João Ramalho nos dias
anteriores.
A subida da serra
- o primeiro
No dia seguinte,
muito cedo, partiram os doze jovens para a longa caminhada. Primeiramente, um
grande trajeto quase ao nível do mar, cruzando mangues, rios e riachos, ora
vadeando-os nos trechos que davam pé, ora nadando nos trechos mais profundos e
largos.
CONTINUA
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