terça-feira, 26 de agosto de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 20ª. Parte 
MILTON MACIEL 

Fim da 19ª. parte:
Voltaram àquele passo rápido que tinham, que não os forçava e não os fatigava. À sua frente tinham mais de um dia de marcha pelo planalto, ate poderem chegar a Piratininga, onde ficava Inhapuambuçu, a taba do cacique Tibiriçá. A casa de Potira! – era tudo o que pensava João Ramalho

20ª. parte: Piratininga
Depois da escaramuça com os tamoios e o resultado surpreendente que dela adveio, o dia passou a ser de encantamento para todos. Caminhavam com os corações cheios de alegria; e plenos de gratidão para com seu amigo peró.

Nunca os guaianases tinham conhecido um branco assim. Todos os brancos que chegavam nas praias, tanto nas terras deles, como nas dos carijós mais ao sul  ou dos tupinambás e tamoios mais ao norte, vinham com vontade de serem donos de tudo, de tomar a terra dos índios para eles. Eram portugueses – os perós – ou franceses, que falavam uma língua muito diferente da dos perós. Havia também outros brancos de fala mais parecida com a dos perós, a quem estes chamavam de espanhóis, e que muito raramente apareciam por ali, mas que os carijós afirmavam que eram abundantes nas terras do sul.

Nunca um peró se mostrara tão amigo e tão leal com os guaianases. João Ramalho adorava brincar com as índias e aprender a lutar e caçar com os índios. E nunca falara que queria ser dono da terra, como os outros perós, que tudo o que queriam era ficarem ricos – fosse lá isso o que fosse – da noite para o dia, tomando para si grandes pedaços de terra e encontrando o tal do ouro de que tanto falavam. Sabiam que, em mais de um lugar, os brancos tinham feito os índios seus escravos, obrigando-os a trabalhar na extração de ibirapiranga – que os franceses chamavam de bresil e os perós de pau-brasil.

O próprio Jamari tinha sido vítima de um peró bandido, que capturava índios para escravizar e vender aos franceses. Mas João Ramalho não falava nunca que queria ser um branco rico, dono de terras e de escravos. Pelo contrário, o tempo todo ele só falava que queria ser um índio. Que queria viver livre e pelado como um índio, casar com uma índia, ter muitos filhos, todos eles índios. E não queria ter terra, porque, como um índio, sabia que a terra não pode pertencer a ninguém, porque ela já pertence a todos, desde que Tupã colocou os homens e as mulheres sobre ela.

E agora, mais do que nunca, aquele peró homem bom havia demonstrado como ele era mesmo um verdadeiro guaianá. Lutara com o chefe inimigo e desafiara todos os guerreiros tamoios de uma vez só, para poder ajudar seus companheiros. E, como se não bastasse, diferente de todos os outros brancos, aquele se esforçava dia e noite para aprender a língua dos índios. E aprendia rápido, com enorme facilidade, já se fazendo entender na maior parte das ocasiões.

Durante o alegre percurso naquela manhã, até a hora em que pararam à beira de um rio, para caçar, banhar-se, pescar e apanhar frutos e mel, os jovens guaianases se revezaram ao lado de João Ramalho, puxando conversa com ele, elogiando a luta do homem chamado Romano, contando coisas suas. Enfim, tratando de se aproximar ainda mais daquele que começava a se tornar um verdadeiro companheiro e um provável líder para eles. Compreensivo, Jamari se afastava do lado de João, para dar lugar a um ou mais dos rapazes, quando se aproximavam mais do amigo peró, amigo homem bom! Jamari, num certo momento, achegou-se novamente,  para dizer a Ramalho:

– Turma toda agora vê que João é homem bom, bom e corajoso, bom e esperto. Todo mundo quer ser amigo de João. Isso é bom, muito bom.

– Ora, pois, Jamari, como não ser assim, se eu sou de fato um de vós agora? Fico feliz que todos me recebam como amigo e companheiro. Eu sou um guaianá e minha vida agora pertence a vossa tribo, a qual defenderei com toda a força do meu ser, até o fim dos meus dias. E isso independente de eu me tornar marido de Potira ou não. Porque, mesmo que isso não venha a acontecer, se Tibiriçá e vocês me aceitarem em Inhapuambuçu, é ali que eu quero viver para sempre, como um autêntico índio.

Jamari sentiu-se comover e respondeu, em sua fala mansa e simples:

– João homem bom! Jamari tem orgulho de ser amigo de João.

– Pois eu digo e afirmo Jamari: vocês, de agora em diante, são a única família que eu hei de ter neste mundo.

Estavam parados, preparando a refeição, quando esse diálogo foi ouvido por todos. A reação geral foi a de uma verdadeira comemoração, com batidas de pés e um grito em uníssono, semelhante àquele que haviam dado, horas atrás, para festejar a solução do embate contra os tamoios. Definitivamente, João Balbode de Maldonado havia morrido em terras brasileiras! Aquele que ali estava, conversando animadamente em tupi com seus companheiros, era somente mais um índio guianá, um grande guerreiro e um grande amigo. E um futuro parente do grande chefe Tibiriçá.

Depois de um período maior de descanso, o grupo retomou a marcha pelo grande planalto, cruzando riachos tranqüilos e poucos rios de maior porte, ora em meio a trechos de mata fechada, ora em meio a campos dotados de muito capim e vegetação de pouca altura. Num desses riachos avistaram um bando de capivaras e flecharam uma delas, que lhes serviria de refeição para a noite, que já se aproximava.

Tão pronto o sol se escondeu e as primeiras estrelas despontaram, improvisaram de novo um rústico quebra-vento, ao abrigo do qual acenderam sua fogueira e assaram sua carne. Então, depois de comerem mais uma vez regiamente, estiraram-se todos para o sono da noite. Mais uma vez João Ramalho fechou os olhos com um sentimento de plenitude e gratidão: Isto é o Paraíso!

Não era somente o paraíso, mas era também outra coisa, como Jamari lhe anunciou, assim que o sol começou a surgir, iluminando a paisagem deslumbrante à frente deles:

– Isso tudo Piratininga! Nós tá quase chegando a Inhapuambuçu, João. Falta pouco.

O português sentiu o coração disparar. Então ele estava em Piratininga, estava a poucas horas de Inhapuambuçu, ou seja, a poucas horas de rever sua Potira! Teve vontade de sair correndo, mas lembrou-se que, em primeiro lugar, não sabia para que lado correr. E depois, era um membro de uma equipe, juntos tinham começado a viagem, juntos deviam terminá-la. Aquietou-se e esperou a iniciativa dos companheiros.

Mas, para sorte sua, também eles tinham pressa, também eles tinham ali suas famílias, seus amores, seus amigos. Todos queriam chegar logo, de forma que a marcha foi de fato muito mais acelerada do que no resto do percurso pelo planalto.

Cruzaram um riacho de águas muito barrentas, avermelhadas e um dos companheiros disse ao português:

–  Este I-Piranga, água vermelha. Ipiranga, muito perto de Inhapuambuçu.

Outro apontou para o sudoeste e falou:

– Olha, João, aquele é Jaraguá, monte alto, já é depois de lugar da tribo nossa. Agora nós só tem que andar até o rio dos tamanduás, o Tamanduate-í. E aí nós chegou.

Estimulados por estas duas últimas palavras, todos começaram a trotar e depois a quase correr. Passaram por coivaras, onde o chão estava enegrecido de carvão e cinza, esperando a época dos novos plantios. Passaram por áreas de cultivo de mandioca e começaram a cruzar com gente que ia e vinha, ocupada em suas tarefas do novo dia.

Eram mulheres e homens que saudavam o grupo de rapazes com muita alegria. E reparavam naquele branco diferente, pelado como eles, mas dotado de uma enorme cabeleira e de uma enorme barba, ambas castanhas e muito crespas.

–  Aramalho! Aramalho! – gritavam todos eles animada-mente. Era óbvio que já sabiam de seu compromisso com a filha do cacique, de sua esperada viagem até Piratininga e era também mais do que óbvio que ele tinha sido muito bem descrito para aquela gente que não o conhecia.

Algumas daquelas pessoas recolhiam samburás cheios de peixes das beiras dos rios, outras iam apanhar caça nas armadilhas deixadas para a noite. Outras estavam já voltando com muita lenha para queimar. Em todas elas, indistintamente, João Ramalho notou um toque em comum: a alegria, a tranquilidade. É o Paraíso e esses são seus anjos.

Mas o anjo maior de todos se chamava Potira e, a partir daquele momento, Ramalho passou a olhar todas as mulheres por que passava com miradas de total ansiedade: quando seus olhos pousariam na face resplendente de sua amada?

Notou que eles agora tinham que transpor uma espécie de barreira feita com grandes amontoados de restos secos de árvores, que se dispunha longamente ao redor de...

– Inhapuambuçu! – gritaram todos os seus companheiros de jornada, festejando em altos brados. João compreendeu que aqueles galhos funcionavam como uma espécie de muralha defensiva rústica para a taba. De fato, a Inhapuambuçu que se descortinou a seus olhos, não tinha uma paliçada de troncos a defendê-la, como ele tinha suposto que tivesse. O português logo percebeu que aquilo era uma tradução da enorme raridade dos ataques de inimigos à aldeia.

Então as primeiras ocas começaram a surgir, ao redor da ocara com suas fogueiras.

A notícia da chegada dos jovens índios e seu companheiro peró já havia chegado horas antes à taba, sinalizada por sentinelas que estavam encarapitadas em árvores ao longo do caminho. Na ocara, um grande número de indígenas estava reunido com seus cocares, colares e pinturas de festa. Chocalhos, tambores e membis tocavam ruidosamente e as pessoas batiam pés, dançavam e cantavam.

Salvavam animadamente os rapazes que chegavam. Mas, num determinado instante, todos pararam e se voltaram para a saída de uma grande oca. João Ramalho estremeceu: só podia ser o chefe Tibiriçá! Será que ele o acolheria como um índio, condição expressa pra confirmar-lhe o casamento com sua filha?

Mas não era Tibiriçá a figura que estava parada na saída da oca, recebendo os olhares de admiração de todos os presentes.

Era POTIRA! – deslumbrante em sua beleza, ressaltada por pequenos enfeites de extremo bom gosto!


CONTINUA

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