sexta-feira, 22 de agosto de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 18a. Parte  
MILTON MACIEL

Fim da 17a. parte:
Mas em pouco tempo havia fogueira, muita lenha e vários peixes sendo assados. O paraíso!
Os rapazes improvisaram rapidamente um abrigo com galhos de árvores e folhas de palmeira, para atacar o vento do alto da serra. João deitou-se no chão seco, o mais perto que pôde da fogueira e, de barriga mais do que cheia, dormiu imediatamente, sentindo cada músculo do corpo dolorido pelo enorme esforço que fizera na subida.

18a. parte: O ataque dos tamoios
Antes do nascer do sol, já estavam todos de novo em movimento, com aquele passo sereno, estugado e firme, que permitia um avanço veloz, sem contudo caracterizar um grande esforço. João Ramalho começou a calçar suas botas ainda encharcadas, mas Jamari lhe disse:

– Usa bota não, João! Aproveita que agora não tem subida, tem pouco mato, muito campo, e aprende a andar só com pé. Assim, quando chegar em Inhapuambuçu, chefe Tibiriçá vai ver que João é índio de verdade. Onde viu índio pelado de botina?

O português teve que concordar com seu amigo. De fato, quando chegasse a seu destino final, nu e calçado de botas, deveria fazer uma estranha figura para os indígenas. Seu possível sogro fora bem claro com ele: primeiro João aprende a ser índio, depois casa com Potira. Voltou então a amarrar as botas com os cipós, pendurando-as de volta ao redor do pescoço.

A paisagem do alto da serra era muito diferente do que ele havia visto até então: primeiro a praia e os manguezais; depois a subida da serra, cheia de pedras enormes, rochedos, cachoeiras, abismos e vegetação estranha, como ele não conhecia, repleta de samambaias e arbustos com flores enormes e carnudas.

Agora, ao saírem do pouso de Paranapiacaba, a floresta era luxuriosa, alta, fechada, mas muito mais clara e luminosa do que os escassos trechos de mata que cruzara na subida, enquanto ainda era dia. A todo momento os índios subiam nessas árvores e voltavam com a mãos cheias de frutos e, pela primeira vez, de ovos de todos os tamanhos e coloração de casca. Na praia, João já havia aprendido que os indígenas preferiam comer os ovos crus, não gostavam de cozinhá-los. Provando-os, acabou se adaptando ao sabor e superou os primeiros ímpetos de nojo que havia sentido.

Súbito dois rapazes avançaram em direção a uma moita e deram alguns saltos para cima e para os lados. Segundo depois, eles apareceram com uma enorme cobra, que se debatia furiosamente, segura pela cabeça e pelo rabo. Um terceiro índio abateu o animal com um porrete improvisado com um grosso galho caído. Imediatamente outros três passaram a cortar e esfolar a cobra, tirando-lhe as vísceras e preparando-a para o fogo.

João viu, mais uma vez, como o indígena dessas terras era capaz de tirar o fogo praticamente do nada, movendo seus gravetos especiais entre as mãos e soprando ao mesmo tempo sobre palha seca. Acesa a fogueira, os pedaços de cobra, espetados em galhos, foram imediatamente assados. Para o português, mais uma experiência inesperada. Mas a fome era grande e ele sabia que precisava se alimentar bem, para ter energia suficiente para mais dois dias de caminhada.

Então, quando lhe entregaram um pedaço de carne assada com mais de um palmo de comprimento, o português fechou os olhos, cravou-lhe os dentes e se preparou para o pior. Mas, sabia-o, tivesse o gosto que tivesse, ele iria mastigar e engolir aquela coisa nojenta de qualquer jeito.

Só que a coisa não era nada nojenta! Pelo contrário, talvez pela fome, talvez por ter se preparado para o pior, o sabor da carne de cobra pareceu-lhe o de um verdadeiro manjar dos deuses. Devorou o seu pedaço como um autêntico selvagem e, enquanto o fazia, olhava de rabo de olho para a fogueira, para ver se ainda sobraria mais algum pedaço para ele repetir.

Só então percebeu que Jamari já havia reservado um segundo naco de cobra para seu amigo. Olhando-o satisfeito e rindo, alcançou-lhe o novo pedaço, enquanto dizia:

– Gostou , João? Esse cobra muito bom. Era macho.

– Mas que coisa, homem! Mas até isso vocês sabem distinguir, se a cobra é macho ou fêmea? Mas eu gostei sim. Confesso que  estava com medo no começo...

– Medo do gosto?

– Um pouco. Mas eu estava com medo mesmo era da cobra. Que ela se soltasse, picasse vocês e me picasse. Sabe como é, o veneno...

Jamari disse algo e todos caíram outra vez na gargalhada. Depois dirigiu-se ao português:

– Esse cobra sem veneno, João. Perigo mordida porque dente muito grande, boca muito forte. Mas sem veneno.

– E eu a morrer de medo também que o veneno passasse para a gente na carne assada.

Conseguiu dizer isso em razoável tupi, o que fez com que nova explosão de gargalhadas tomasse conta de todos.

A maravilhosa refeição foi complementada com ovos crus e muitas frutas silvestres, cada uma mais deliciosa que a outra. O beirão João Ramalho arrotou contente e voltou a dizer para si mesmo: Paraíso!

Depois dessa refeição, o grupo empreendeu novamente a marcha. Ao fim de pouco tempo, enquanto atravessavam uma capoeira de mato relativamente baixo, de repente se viram todos cercados por um grupo muito maior de guerreiros, que, para João Ramalho, surgiram praticamente do nada.

– Tupinambá! – gritou Jamari

– Tamoio! – falou outro guaianá.

Os índios, pintados para a guerra, circundaram os guaianases e Ramalho com suas lanças, muitos outros tinham arcos retesados, com suas flechas apontadas para o grupo cercado. O português fez uma rápida estimativa: deviam ser mais de trinta atacantes.

Evidentemente, a atenção dos tamoios dirigiu-se ao homem branco de barbas crespas. O que parecia ser o chefe deles dirigiu-se aos homens cercados e falou num idioma que era praticamente igual ao que Ramalho estava aprendendo com os guaianases, logicamente pensando que o branco não entenderia o que ele falava, no que estava redondamente enganado:

– Vocês leva peró fedorento pra comer?  Arrá! Carne muito ruim. Peró gosto ruim.

Jamari respondeu, altivo:

– Peró não é escravo, peró nosso amigo. Parente de chefe Tibiriçá, noivo de filha Tibiriçá de Inhapuambuçu.

Os tamoios todos olharam com desconfiança, achando que Jamari mentia e que eles iam, sim, comer o português. Jamari adiantou-se encarando firmemente o que parecia ser o líder dos tamoios:

– Nós quer lutar! Guaianás luta muito melhor que tamoios. Nós larga as arma, vocês larga as arma, nós luta. Tamoios não sabe lutar.

Os outros guaianases reforçaram o desafio:

– Tamoio é covarde. Tamoio covarde. Covarde! - e largaram suas armas no chão.

Jamari aproveitou:

– Vocês tem que ter medo, porque vocês tem só uns três pra cada um de nós. Se lutar, perde e apanha. E nós leva tudo vocês de escravo e come. Só não come se vocês é covarde, tem medo de lutar com nós. Tamoio tem medo de guaianá!

João Ramalho avaliou a situação. Era óbvio que Jamari estava blefando, que estava tentando inflamar os tamoios a lutarem sem armas, naquela luta meio abaixada que ele tinha praticado com seus amigos índios e para a qual ele, como branco, não demonstrara o menor jeito. Mas, pelo menos, não correriam o risco de serem flechados e furados com as lanças. Pensou no que ele deveria fazer.

Nesse momento o líder dos tamoios fez um sinal para seus guerreiros e todos eles largaram as armas no chão, imitando o que os guaianases tinham feito instantes antes.

Imediatamente os onze índios foram cercados e, na proporção de três para um, atacados pelos braços fortes dos índios tupinambás. Era evidente que estes triunfariam, já que, na verdade, todos se equivaliam em força e destreza  e a vantagem numérica seria logo traduzida em vitória. Contudo, os guaianases demonstravam uma ferocidade inimaginável no combate, gritando palavras ofensivas para seus inimigos. Ramalho compreendeu que eles procuravam demonstrar que eram guerreiros muito corajosos e que, quando fossem finalmente vencidos e capturados, o que era inevitável, que eles seriam realmente dignos de serem comidos como heróis, na taba tupinambá.

O líder dos tamoios não entrou em combate, limitava-se a ficar observando os outros e a ditar ordens de comando para um ou outro de seus guerreiros. Nem olhava para João Ramalho. O português entendeu que o tamoio o considerava com desprezo, um mero peró escravo, sujo e de carne ruim, que os guaianases estavam levando para comer – Arrá, mau gosto! Um reles peró, que nem sabia lutar como um homem de verdade.

João Ramalho, ao ver que seus companheiros já estavam começando a ser subjugados, entendeu que aquele era o seu momento. E, dirigindo-se ao chefe dos tamoios em razoável idioma tupi, para total surpresa e aparvalhamento deste, lhe disse:

– Você é covarde, não luta. Pois vem lutar comigo, seu covarde.

E abaixou-se em posição de luta indígena, ao mesmo tempo em que jogava no chão as botas que tinha enroladas ao pescoço.

O chefe da missão tamoia achou graça daquele peró doido e aproximou-se em posição de luta também. João Ramalho calculou que teria uma fração ínfima de tempo para agir, antes que os enormes braços musculosos do outro o envolvessem num abraço de urso.

E atacou primeiro, valendo-se do fator surpresa. Em primeiro lugar, desferiu um tremendo murro na cara do tamoio que, face à posição inerentemente instável de estar agachado, caiu sentado para trás, sem entender o que estava acontecendo. Imediatamente João ergueu-se completamente, com um salto felino, e atacou o outro novamente no rosto, só que, desta vez, com um tremendo pontapé de pé direito.  O tamoio rolou para a esquerda, com a força do golpe, e ficou semi-inconsciente no chão. O beirão aproximou-se e passou-lhe o braço direito ao redor do pescoço, aplicando-lhe um golpe mortal, apoiando sua mão esquerda em concha sobre a nuca do adversário e dando a entender que poderia quebrar-lhe o pescoço ou sufocá-lo  a qualquer instante. E se ergueu, fazendo outro levantar também, com o pescoço apertado, a lhe tirar a respiração.

Só então João percebeu que todos os outros índios tinham parado de lutar. Estavam todos olhando,  atônitos, para a rápida luta que ele travara com o líder tamoio. Quatro guaianases estavam desacordados no chão e mais quatro estavam firmemente presos entre os braços de três ou quatro guerreiros inimigos. Mas estavam todos, os conscientes, literalmente paralisados. O português pensou então, agradecido, em como fora bom ter aprendido a luta e o pugilato romanos em sua Vouzlea natal.

Então Ramalho aproveitou o momento e falou a todos, em tupi, surpreendendo os demais tamoios igualmente:

– Amigo de vocês agora é meu prisioneiro. Eu venci ele na luta limpa. Vou levar comigo para Inhapuambuçu e vou comer ele com os meus amigos lá. Vocês podem levar os meus amigos que vocês venceram, mas eu vou levar o chefe de vocês. E vou querer comer ele hoje mesmo! 

O líder, que já havia recuperado a consciência, reconhecendo sua derrota, exclamou horrorizado:

– Não, hoje não! Não pode comer eu sem festa, grande festa, eu filho de cacique! Peró tem que ter honra, tem que convidar gente de outras tribos tupiniquins, não pode comer eu sem grande homenagem.

Os demais tamoios começaram por ficar com cara de espanto cada vez maior, sem saber o que fazer. Soltaram os guaianases que tinham presos entre seus braços. Levariam muitos prisioneiros, mas perderiam o filho do cacique. E a ira do cacique contra eles seria terrível: Como iam poder  justificar que, tendo vencido facilmente os guaianases, tivesse perdido o seu líder justamente para um peró desclassificado, um único peró?! Por que tinham deixado o seu filho ficar sozinho e não foram em sua defesa?

Jamari soltou-se dos que o aprisionavam e foi explicar o impasse a João Ramalho. Então o português falou algo a Jamari que o fez arregalar os olhos com enorme brilho. E ele falou para todos os tamoios, enquanto João Ramalho sujeitava firmemente o filho do chefe deles num verdadeiro torniquete, o braço fechado ao redor do seu pescoço:
CONTINUA

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