MILTON MACIEL
Fim da 15a. parte:
A subida da serra
No dia seguinte, muito cedo, partiram os doze jovens para a
longa caminhada. Primeiramente, um grande trajeto quase ao nível do mar,
cruzando mangues, rios e riachos, ora vadeando-os nos trechos que davam pé, ora
nadando nos trechos mais profundos e largos.
16a. parte:
Chegaram, horas
depois, a um ponto onde estava escondida uma canoa, escavada em um enorme tronco de árvore. Colocaram-na num canal mais largo, entraram todos, cada um
tomou de um remo e começaram a remar em perfeita sincronia, no que eram
atrapalhados por João Ramalho, que jamais havia feito isso na vida.
Como João já
sabia ser hábito dos indígenas, ao invés de ficarem incomodados, os rapazes
apenas riam muito e caçoavam da imperícia do peró. Os guaianases eram um povo
extremamente alegre, de bem com a vida, não tinham nem de longe o mau humor
típico de quase todos os europeus. O português se sentiu na obrigação de fazer
um esforço sobre-humano e insistiu que era sua obrigação remar tanto quanto os
outros. Mas Jamari colocou as coisas no lugar:
– Agora não.
João ainda não sabe e, querendo ajudar, atrapalha. João homem bom. Não rema
agora, deixa nós tudo remar. Lá em cima, em Piratiniga, Jamari promete que
ensina João, nós sai os dois no rio pra remar. Mas agora só olha tudo, vê
paisagem, aprende caminho. Caminho muito comprido, nós leva quatro dia pra
chegar a Inhapuambuçu.
– Com a breca!
Quatro dias, tudo isso? Mas não é logo ali no topo da serra?
– Não é, João.
Depois que chega no alto, tem muito o que andar. Vai, ao mesmo tempo, pra onde
o sol se deita e vai pra direção ao contrário do que nós está agora.
– Ora, mas por que
uma coisa dessas, homem?
– Porque nós não
pode subir aqui, perto de Guatano. A serra muito grande que nós vê agora é
Paranã Piak aba. Paranã é mar, João já sabe; Piak é ver, aba é lugar. Fala tudo
junto, fica Paranapiacaba, lugar de ver o mar. Ver o mar lá de cima, quando
chega na beira da serra, é isso. Mas serra de Paranapiacaba tem parede muito
alta, muito de pé, os outros peró chama ela de Muralha Verde. Eu entendi que
muralha é uma paliçada muito alta, só que feita de pedra.
– Sim, tu tens
razão, parece-me insânia querer trepar por estas serras alcantiladas, é mesmo
uma muralha imensa e intransponível, não tem como passar.
– Como passar
tem. Nós tem um caminho, que todos chamam o
caminho dos guaianases. E também o
caminho dos tupiniquins. É pra onde
nós tá indo agora. Nós vamos encontrar o Cui-pai-ta-ã do rio Ururaí.
– Cupaitaã, dize
tu? O que é isso?
– Nós chama
assim tudo que é caminho que é um rio que desce de montanha e vai pro mar. Mais
lá adiante nós vai entrar nesse rio Cuipaitaã, que os peró que passou por aqui
chamam de Cubatão. Rio Cubatão. Aí nós sobe por ele e vai dar no rio Ururaí. E
vai subindo sempre por ele, até que chega lá no alto da serra de Paranapiacaba.
É um caminho longo, mas dá pra subir, não é como a Muralha Verde. Mas nós sobe
tudo a pé, não pode usar canoa.
– Ah, agora te
entendo, amigo Jamari. O que nós vamos é fazer um contorno, vamos andar em
direção oposta à que precisamos, por que essa é a única maneira segura de subir
essa serra maluca.
– Isso, João. Nós rema mais um pouco, depois
deixa canoa e faz o resto da viagem a pé, porque começa a subida, até chegar na
Piaçaguera lá de cima.
– Piaçaguera? E o que é lá essa coisa?
– É um desses rio que desce da serra e onde tem
lugar pra guardar canoas. É que ali nós para pra descansar. E dorme. Segue
viagem amanhã.
– Ah, pois então
já sei que vou gostar muito dessa tua Piaçaguera, ó Jamari. Mas dize-me aqui,
quando é que nós vamos comer? Confesso-te que já estou a sentir uma fome do
cão.
– E o que é
isso, cão?
– Ah, é um bicho
que não existe por aqui, pelo jeito. Assim com há muitos dos de vocês que não
temos na Europa. O cão é um animal que ajuda muito o homem, é manso e vive nas
casas com a gente. E é um grande amigo e um grande guardador das casas de seus
donos.
– E é muito
grande?
– Não, pelo
normal é mais ou menos como a capivara que você me mostrou há pouco.
– E como é que
tem uma fome tão grande, se não é um bicho grande?
– Ora pois,
Jamari, nem eu sei porque falam assim. Mas é comum que digam que uma pessoa com
muita fome está com uma fome de cão. E eu estou mesmo.
Jamari fez um
sinal aos companheiros e todos remaram em direção à margem. Desceram, levando
arcos e flechas e entraram pela vegetação, não muito alta naquele ponto, que
João Ramalho via que estava já deixando de ser a típica de um manguezal. Sem
dúvida o canal que percorriam agora era, verdadeiramente, um rio.
Os índios não levaram
nem um quarto de hora para voltar. Traziam, flechados, dois peixes bem grandes,
uma ave de médio porte e um monte de frutas silvestres. Carregavam também
muitos gravetos secos e, usando dois deles, rapidamente começaram a friccionar
e assoprar sobre eles. Em pouco tempo, levantaram uma pequena chama, que se
propagou pelas palhas e gravetos finos. Então atearam fogo à lenha maior e
começaram a limpar e a assar os animais que capturaram. Enquanto esperavam,
comiam as frutas.
Pouco depois já
estavam todos comendo os peixes e a carne da ave estranha, que João achou que
sabia muito melhor do que uma galinha.
Fome saciada,
João Ramalho deu de cismar:
Sim senhor, que maravilha, que fartura! Que terra
abençoada. Há comida por todos os lugares, um indivíduo que saiba usar arco e
flecha nunca vai passar fome nesta terra. Come do bom e do melhor. E essas
frutas, então!
Encantou-se em
especial com uns coquinhos de cor amarelo-ouro, de especial sabor doce e ácido
ao mesmo tempo. Perguntou a Jamari o que era aquilo.
– Butiá. Muito
bom, não é?
João concordou
com a cabeça, rindo contente, o que foi suficiente para que outro rapaz lhe
estendesse uma nova rama com dezenas de frutinhos, que o português chupou um
por um até o final, agradecido.
Ao todo a parada
durou cerca de uma hora para João e já pularam todos na canoa outra vez. As
remadas precisas, cadenciadas, rítmicas como que cronometradas, voltaram a soar
na água mansa do rio. Por causa dessa completa sincronia e da força combinada
de onze jovens guerreiros, a canoa avançava com uma velocidade que para João parecia
quase inacreditável.
Talvez algo como
duas horas depois da refeição, Jamari falou:
– Agora hora de
deixar canoa. Rio fica muito raso e com muita pedra no fundo, vai começar a
subida. Nós sobe agora andando por dentro do rio.
– Por dentro?
Mas dá pé?
– Ora, mais uns
passos daqui e João vai ver que a gente caminha dentro do rio e a água só bate
no joelho. Por isso não pode mais usar canoa. Nós esconde ele bem escondida
agora.
– Mas... Dize-me
uma coisa, Jamari: como é que vocês sabem onde deixaram uma canoa tão bem
escondida assim. Pois sé tudo igual, só árvores, arbustos, ramos, pra tudo que
é lado, tudo igual.
– Tudo igual pra
João. Índio sabe reconhecer muito bem as diferenças. Nunca se perde nem perde o
que escondeu.
–Notável,
notável. Queira Deus que um dia em possa saber reconhecer essas diferenças
também.
– Vai saber,
João,. Vai saber. João agora é índio, vai aprender tudo, até a remar direito,
sem atrapalhar os outros.
E caiu na
gargalhada, no que foi secundado pelos outros. Inclusive João Ramalho. Que
estava feliz, bem alimentado e ansioso para começar logo a subida. Ao fim dela,
não importa o quanto tivesse que andar depois pelo planalto, uma indiazinha
bonita e sensual estaria de braços abertos à sua espera. E essa era agora a
grande motivação de sua vida: Potira!
CONTINUA
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