MILTON MACIEL
O pampa gaúcho. Ali, na noite ao relento, um gaiteiro toca e canta seus próprios versos, sem perceber que é ouvido por um poeta carioca, hóspede da fazenda, que tirita de frio em frente à lareira da sala da casa grande. O diálogo entre esses dois homens, que comentam seus amores e desventuras, incluindo aí poetas franceses como Alfred de Vigny e Alfred de Musset, é o tema deste poema chucro campeiro, um pouco mais longo que o comum.
I
Em noite de lua nova
Dois homens o céu contemplam.
E enquanto as nuvens se ausentam,
Um guasca compõe sua trova.
E o fole da gaita puxa,
Em suave toada gaúcha.
Ali, exposto ao relento,
Sobre a cabeça o sereno,
O guasca acha o frio ameno
E não se importa com o vento.
No chão a tralha gaúcha:
Facão, guaiaca e garrucha.
Os dedos sobre a cordeona
O céu com miles de estrelas,
O guasca, encantado, a vê-las
Por todas se apaixona.
E pensa em sua gaúcha,
Mistura de fada e bruxa.
Ali, bem perto, na casa
Olhando pela janela
Outro homem pensa nela,
Por ela também se abrasa.
É um hóspede da cidade,
Poeta bom barbaridade!
Diz que o homem tem fardão
De uma tal de Academia,
De tão bom que é na Poesia!
Mas sofre com a situação:
Morde-lhe o frio, qual cruzeira,
Pois treme em frente à lareira.
Mesmo assim vai à vidraça,
A chamá-lo o firmamento.
E o sublime do momento
É tanto... que até o frio passa!
É quando ouve a voz chorona,
Que vem de uma cordeona.
Mal entreouve a melodia
Mas parece tão bonita,
Que sua alma fica aflita
E lhe inspira a ousadia:
Correa vidraça de lado,
Vergasta-o o ar gelado!
Mais que homem, ele é Poeta,
É a Beleza o que o inspira.
E o ar gelado que aspira
Não intimida o esteta.
Bebe a melodia triste:
“Deus, é a mais bela que existe!”
Agora canta o gaiteiro.
E os versos que ele entona,
Ao som de sua cordeona,
São um poema verdadeiro.
E eis que Poeta se encanta
Com o que o gaúcho canta.
“Tirana do meu desejo,
Guria do meu encanto,
Ó deusa do meu espanto,
Quanto faz que não te vejo?!
Por falta de ti, guria,
Morro um pouco a cada dia”
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