FOME DE AMOR
MILTON MACIEL

Quando entrou em casa, a esposa já dormia. O menino também, ao lado dela. Ela pegava o trem às 4 da manhã, mas antes levava o menino para deixar na casa da tia; e ia para o trabalho. Só ela estava sustentando a casa, com o escasso salário de auxiliar de produção. Tempos duros para todos, com tantas contas pra pagar, de repente o desemprego dele...
Abriu a geladeira com esperança que algo houvesse para ele comer. Havia! Uma omelete: pelo tamanho, com dois ovos. Além disso, ali dentro só a garrafa de água. E a embalagem de leite, a um copo do fim. Ignorou-a. Nem ele, nem a esposa tocavam no leite, era só para o menino. Com a comida também. Comiam o que sobrava depois que serviam a criança. Mas até isso andava racionado agora. Possivelmente o menino também estava passando alguma fome, menos do que ele, mas...
Pegou o prato com a omelete, colocou-o sobre a mesa, apanhou os talheres. Enfim ia comer alguma coisa! Pegou a garrafa de água também e um copo. Ia comer bem devagar, tomando um monte de água junto, assim enganava o estômago. Quando empunhou o garfo e a faca, o menino entrou na cozinha.
– Acordado a esta hora, filho?
O menino de 4 anos pulou-lhe no colo, passou-lhe os braços ao redor do pescoço, num abraço apertado. Esfregou a pequena testa na dele, era o seu jeito especial de beijar. Ficou agarrado ao pai.
– Sem sono, pai.
O hálito era inconfundível. Os olhinhos do menino na omelete confirmavam: fome! A criança acordara por causa da fome. Então o pai lhe falou:
– Olha, filhinho, o que o papai guardou pra você.
– Mas não é o seu jantar, pai?
– Não, eu já comi até demais. Sua mãe fez um monte de omelete, eu comi o que agüentei, guardei isso aqui pra você. Você quer?
O menino se desprendeu do pai e apanhou o garfo, passando a comer com sofreguidão, ajudado pelo dedinho da outra mão. Seu olhar agora era só felicidade.
O pai o olhava enternecido. Sua própria fome tinha passado. Seu olhar era também, nesse momento, só felicidade.
– Coma tudo, meu bem, não deixe nada, mamãe não ia gostar.
O garoto obedeceu contente. Limpou o prato. Perguntou ao pai se podia lamber o fundo. Claro que podia, ali só entre eles não era coisa feia. O menino lambeu o prato até não haver mais gosto de nada. Depois voltou para o colo do pai e passou-lhe os braços ao redor do pescoço de novo. Adormeceu em pouco tempo.
O pai levou-o para a caminha, ao lado da cama de casal, cuidando de não fazer barulho algum. Voltou à cozinha e bebeu vários copos de água, lavou prato e talheres. Amanhã haveria de arranjar o que comer. Voltou para o quarto. Por hoje estava contente, seu menino tinha fome, não podia dormir por causa dela, mas agora ressonava bonito na caminha dele. Olhou a criança longamente, estava feliz pelo menino, não sentia sua própria fome. Agora era dormir para evitar que ela voltasse a importuná-lo.
Olhou a esposa que dormia. Tão boa, tão jovem, tão sacrificada... Não dizia um aí, não o recriminava por nada, fazia o possível e o impossível pelo menino. Era uma dádiva de Deus, no meio de sua pobreza. Tomou-lhe a mão do braço descoberto e beijou-a com suavidade, para não acordá-la. Ficou um tempo com aquela mão querida na sua, depois adormeceu.
A esposa, acordada pelo beijo, continuou quietinha, fazendo que dormia. Quando constatou que o marido tinha adormecido, levantou e, pé ante pé, esgueirou-se até a cozinha. Sim, ele tinha comido toda a omelete e tinha já lavado o prato e os talheres. Voltou a enfiar-se na cama, ainda tinha mais umas poucas horas para dormir. Antes apoiou-se no cotovelo e ficou contemplando o marido que dormia. Homem bom estava ali, tivera muita sorte no casamento. Não bebia, não jogava, bom pai, carinhoso, bem-humorado; era trabalhador como só, fazia bicos, o que arranjasse. Agora estava numa maré de azar, coitado, há muitos dias que não conseguia nada, nem bicos.
Ainda bem que ela tinha o seu emprego e podia almoçar na firma. Era do seu almoço que ela escamoteava uma parte num saco plástico e trazia para casa, para dar ao filho. Mas aquela noite ainda tinha três ovos em casa. Fez um para o menino, dois para deixar na geladeira para o marido. Não comeu nada, disse para o menino que estava sem fome, comia demais naquela firma.
Precisava dormir. Procurou com cuidado os lábios do marido adormecido para roçar-lhe um beijo aggradecido. Sentiu o hálito inconfundível. Não, ele não havia comido a omelete. Olhou para a caminha e compreendeu: o safadinho devorou tudo. Seus olhos se encheram de lágrimas, ao contemplar aquele homem maravilhoso que Deus tinha colocado a seu lado na vida. Uma lágrima caiu, quente, no rosto dele, acordou-o. Ele abriu os olhos e fitou encantado aquele par de olhos tão queridos, que o contemplavam com tanto amor.
Os olhos amados pararam de lacrimejar.Um enorme sorriso apareceu simultaneamente em cada uma das faces. Ficaram um longo tempo se olhando, encantados. Seis anos de casamento e de lutas, mas o amor deles continuava imenso, na verdade aumentava ainda mais nos momentos difíceis. Sorriram, riram, abraçaram-se, não precisavam dizer nada: estavam completamente felizes, absurdamente felizes. Abraçaram-se outra vez. Reconheceram: Sim, eram mais felizes do que quase todos os outros que agora dormiam de barriga cheia. Eles tinha fome, sim, e daí? Os outros tinham, quase todos, uma fome pior, que eles não tinham: FOME DE AMOR! Adormeceram abraçados. Agradecidos. Amanhã seria outro dia. Ao lado, o menino ressonava contente. Barriguinha cheia. Três ovos!
É verdade que o amor não anche barriga, mas enche um coração. Fiquei emocionada. Abraço grande escritor! :-)
ResponderExcluirMuito obrigado, guerreira xue
ExcluirVocê vai gostar!
ResponderExcluirEu chorei... quer dizer... algumas lágrimas molharam minha face.
Mas eu sou suspeito...
Lágrimas molham minha face a todo momento:
Basta um conto,
uma poesia,
uma notícia sobre maldade com criança na Globo News...
Até um desenho animado pode fazer lágrimas molharem minha face!
Muito obrigado, lustato. Consta que isso é coisa de canceriano ou de quem tem ascendente em câncer.
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