MILTON MACIEL
Eu a vejo
passar, miúda, delgada, levemente curvada para a frente. Os cabelos grisalhos
bem curtos, a comissura dos lábios riscando a curva para baixo, perfeita
tradução do que foi sua vida até hoje. Mas a pequena guerreira é estóica, não
se queixa. Com algum esforço, até sorri. É compreensiva, solidária, tolerante.
É uma trabalhadora respeitada na fábrica onde se esfalfa diariamente, atendendo
aos caprichos de uma máquina extrusora temperamental e incansável.
Um dia eu vi
suas fotos de mocinha, mostradas por uma vizinha, e a achei linda, delicada.
Talvez tenha sido isso sua desgraça maior, pois atraiu para ela um escroque da
pior espécie, com quem acabou casando. O indivíduo três vezes fez-lhe filhos, três
vezes a abandonou; e, enquanto esteve com ela, acumulou amantes e dívidas em
proporções idênticas. Quanto àquelas, a guerreira não pôde fazer nada. Mas
quanto a estas, as dívidas dele, ela pagou-as todas, até o último tostão.
Inclusive as de jogo. Afinal, alguém tinha que ter vergonha na cara na família.
Digo alguém e digo na família, porque os filhos, ao crescerem, não foram muito
melhores do que o pai. Dois homens e uma mulher, difícil saber quem aprontou e
apronta mais. A menina deixou-lhe um neto nos braços quando tinha 17 anos.
Porque tinha pressa de se mandar dali, para fazer outro filho noutra cidade,
que soube trazer para sobrecarregar a mãe mais uma vez. Partiu por aí de novo
e, pela jurisprudência formada, possivelmente breve esteja de volta com mais um
bendito fruto do seu ventre.
Os filhos caíram
no mundo, cada qual mais perdido que o outro, não quiseram saber de estudos,
mas ao menos trabalham um pouco ali, outro pouco acolá e vão sobrevivendo
graças à ajuda que a mãe manda todo os meses para complementar-lhes os ganhos
irregulares.
A pequena
guerreira murchou nas mãos do marido cafajeste. Amou-o demais, amou-o tanto que
ele acabou por prestar-lhe o pior dos serviços: estilhaçou-a por dentro em mil
pedaços irreconciliáveis. Quando ele partiu pela quarta e última vez, para
viver com uma menina bem jovem, a guerreira fechou-se para os homens, fechou-se
para o amor e nunca mais se envolveu com ninguém. Obviamente, o cafajeste-mor
sempre conseguiu escapulir com artimanhas mil e nunca deu pensão para os três
filhos.
A guerreira trabalha
o dia todo na indústria, à noite faz peças na máquina de costura para uma
confecção do bairro e, nos fins-de-semana – parte no sábado, parte no domingo –
faz horas-extra na fábrica.
Uma tarde eu a
vi voltando do trabalho, sua carinha miúda fechada, seu olhos passeando tristes
pelo chão, seus pensamentos certamente tomados por filhos e netos, por suas
obrigações e tarefas domésticas, pelas costuras a fazer, os ombros pequenos
arqueados sob o peso de sua enorme retidão, de sua firmeza de caráter, de sua
bondade sem limites, sob o peso da sobrecarga cruel com que vida esteve sempre
buscando esmagá-la. Mas a guerreira não se rende, segue estóica e nobre, do trabalho
na rua para o trabalho na casa, para o trabalho da casa, para as mazelas dos
descendentes, filhos e netos, todos eles dependentes do seu esforço ingente, que
nunca pode parar.
Estou em frente
à banca de revistas quando ela passa. O dono da banca, um carcamano quarentão, comenta
com outro freguês, com uma grosseria cavalar:
– Olha a
coroazinha ali. Até que ainda dava um bom caldo, mas eu é que não dou nada por
ela; ainda mais numa cama.
O outro cliente sorri
malicioso. O homem da banca ri bem alto. A mulher aperta o passo, percebo pela
leve crispação em seu rosto, que ela ouviu as palavras maldosas. Acompanho-a
com o olhar o tempo suficiente para ver que seus olhos têm agora um reflexo
novo, de lágrimas tímidas e fugazes. Como aquele animal ousa impor-lhe de graça
mais um sofrimento assim?! Com que direito?!
Furioso eu volto
ao balcão de caixa e jogo com força ali as quatro revistas e o jornal que comprei
e paguei. Digo apenas uma coisa, mas com tal fúria na voz, que o homem não
pergunta o porquê e apressa-se em fazer o que exijo, com cara de assustado:
– Meu dinheiro
de volta! Já!
Saio indignado
daquela banca, para nunca mais por os pés ali dentro.
Deus! Aquela é a
última das mulheres de quem uma cavalgadura daquelas pode falar aquele ridículo
“eu não dou nada por ela”! Justamente uma pessoa tão especial como aquela, que
vale por mil donos de banca e por um milhão de banqueiros agiotas. Uma
guerreira de verdade, uma brasileira sacrificada, uma brasileira heróica, uma
mulher de fibra infinita, na beira dos seus sessenta anos de vida estafante e
desalentadora.
Sempre honesta e
de caráter! Quantos podem dizer isso de si mesmos, durante décadas a fio?
Fico vendo a
guerreira se afastar, com seu passo miúdo e constante. Vejo ali uma mulher que
é a representação mais fiel das mulheres que se arrebentam em suas jornadas
duplas e triplas de trabalho neste país desengonçado. Uma brasileira...
Ninguém “dá nada
por ela”...
E, no entanto,
ali vai uma criatura invulgar, da qual eu sinto o maior orgulho, justamente por
ela ser uma brasileira comum do povo, uma generosa e sacrificada brasileira que
arrasta sua condição feminina de mulher, de mãe, de mãe/pai e de avó/mãe, de
pessoa menosprezada por homens (e mulheres) imbecis, incapazes de ver que ali
dentro da guerreira é que marcha o presente e o futuro deste país ainda
iletrado e ainda pobre. E que este país só não é pior por causa de suas
guerreiras anônimas e honestas, de suas trabalhadeiras trabalhadoras, de suas
guerreiras amorosas, que não desistem nunca!
Sinto um aperto
no peito e tento evitar que a comoção me leve às lágrimas quando penso na
imensa importância dessa mulher pela qual os outros “não dão nada”. Ela, que é
Mestre, Magna Cum Laudae, na dura
Universidade da Vida e é a mim que aquele imbecil da banca chama de Doutor!
Que país é este
que não reconhece a nobreza do seu povo?
Que o carcamano
não dê nada por um banqueiro, um deputado, um ministro do Supremo, tudo bem.
Agora, pela Pequena Guerreira? Inadmissível! Imperdoável!
Miami,
12/09/2013
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