terça-feira, 28 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 6 - ESCREVER SUSPENSE
MILTON MACIEL

Primeiro vamos recapitular algo que escrevi antes sobre diferenças entre suspense e mistério, para deixar as coisas bem claras. Em Mistério eu trabalho com o intelecto do leitor, estimulo-o basicamente a descobrir “quem fez isso”. Há um mistério e ser resolvido pela capacidade intelectual do leitor, que emparelha (e tenta se antecipar) com quem deve solucionar o mistério, que é o protagonista. Mas veja que eu falei: “quem FEZ isso”. Ou seja, via de regra, a coisa já foi feita.

Em suspense, a coisa ainda não foi feita. Mas está em vias de ser feita ou de acontecer. Então o que eu tenho que fazer é dar informações a meu leitor para que ele saiba de antemão o que pode vir a acontecer. Coisa que meus protagonistas ainda não sabem! Eu preciso fazer também que meu leitor não queira que a coisa aconteça. Que sofra de antemão com meu protagonista, que é a grande vítima potencial do mal que pode acontecer e que tem que ser evitado a qualquer custo. Para isso preciso fazer meu leitor gostar dos meus protagonistas, identificar-se com eles.

Vamos pegar por exemplo o caso clássico da explosão de uma bomba. O antagonista armou a bomba para explodir em 10 minutos. Há um monte de gente no lugar e ninguém sabe que a bomba está escondida ali, pronta para detonar automaticamente em mais x minutos. Minha protagonista descobre que pode existir uma bomba. Mas não sabe se ela existe de verdade, onde está, qual a sua potência e quando explode.

Mas meu leitor sabe de antemão tudo isso. Ele sabe que a bomba existe, sabe o dano que ela pode causar, sabe onde ela está e eu ainda faça a crueldade de mostrar os números digitais escorrendo em contagem decrescente. Quatro minutos para a bomba explodir e o pessoal contando piadas ao redor da mesa. A bomba está em baixo da mesa! Três minutos para explodir e ninguém dá bola quando a protagonista chega apavorada e diz que foi informada que existe uma bomba no salão. Dois minutos para o bum e, para aumentar a tensão, eu faço duas menininhas inocentes entrar debaixo da mesa, brincando de esconder. Pior, são as filhas da protagonista que eu fiz os leitores amarem de paixão, porque é uma criatura admirável.

Eu escrevo: 15:29. Os leitores já sabem que a bomba vai explodir às 15:30 exatamente. Agora as menininhas brincam com um cachorrinho que apareceu em baixo da mesa. O antagonista, que é um terrorista louco e quer se explodir junto com todos, impede a protagonista de se aproximar da mesa, quando ela está a três passos de saber onde está a bomba e descobrir onde suas filhas se meteram.

15:29:50. De nada adiantaria a protagonista achar a bomba ali no pé da mesa, ao lado de suas crianças. Ela não saberia como e nem teria tempo para desativá-la. Esse é o momento de máxima agonia para o leitor, suspense máximo. Meu Deus, qual o milagre que pode acontecer para salvar minha protagonista e suas menininhas, as únicas pessoas pelas quais o leitor sofre e se preocupa, por causa de quem cresce sempre o suspense? Os outros no salão são meramente figurantes para o leitor, embora possam ser velhinhas do asilo ou crianças da escola.

Se fossem só deputados, possivelmente os leitores estariam torcendo agora a favor do vilão. Mas o problema é que, no meio desses políticos, estão nossa amada protagonista e suas crianças inocentes. E elas, junto com o antagonista, estão exatamente ao lado da bomba, no epicentro da explosão. Possivelmente a tragédia seja tão grande que elas morram e os deputados lá das pontas escapem só com as perucas chamuscadas. E os leitores, indignados, nunca mais leem nenhum livro meu.

15:29:59. O fim! Mas, na hora H, o cachorrinho, seguindo o milenar instinto, levanta a patinha e faz xixi no pé da mesa. Bem no ponto onde está escondido o detonador. Molhado, ele não funciona. A santa mijadinha salvou a humanidade. A festa se prolonga até ás 18 horas, todo mundo vai embora contente, as velhinhas, as crianças e os deputados se salvam, a protagonista fica desmoralizada, o terrorista mais ainda. Nossa heroína fracassada vai para casa com suas filhas, decidida a deixar de bancar a detetive, voltará humildemente a dar aulas de física quântica na universidade.

19:30. O terrorista, mudando de opinião e de fé, volta escondido para o salão de festas e, entrando em baixo da mesa, começa a desarmar calmamente sua preciosa bomba para rearmá-la no Congresso. Agora ele sonha converter-se em ídolo popular, ser reconhecido como herói nacional e  salvador da pátria. A última coisa que ele nota é aquele estranho cheiro de xixi. A água acabou enfim de evaporar. Buuuummmm! O salão vazio, a grande casa de festas vazia, o quarteirão vazio, desaparecem no ar.

Nossa heroína é reabilitada, todos pedem perdão a ela, até o maridão reaparece e pede para voltar. Mais por cima do que nunca, ela perdoa só o povo.

Nosso vilão, coitado, morreu em vão, não conseguiu levar ninguém com ele para o inferno, justo quando o potencial para isso era máximo, com todas aquelas centenas de deputados em cena. Maldito cachorro mijão!

Agora, deixando o lado engraçado da história de lado, vamos usar o exemplo para concluir:

Suspense é ANTECIPAÇÃO DA AÇÃO. Assim que a ação acontece, acabou o suspense. No nosso exemplo, houve suspense crescente até que o leitor se convenceu que a bomba não ia mais explodir. Bendito cachorrinho, pensarão muitos. Maldito cachorro mijão! – pensarão os mais politizados. Mas o fato é que ACABOU O SUSPENSE.

Mas COMEÇOU O MISTÉRIO:
Quem montou a bomba naquele lugar? Quem a detonou. Por quê?  Está vendo: “Quem fez isso?”

(Continua) - Na foto, o grande diretor Alfred Hitchcock, o Mestre do Suspense.

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