segunda-feira, 13 de março de 2017

A INTENTONA DE 35  (conto de humor)  
MILTON MACIEL

No terceiro copo de chope, eu já sou um cara espontâneo. No quinto, fico sincero pra burro. No sexto, ousado. Assim, depois de uns... (bom, sei lá quantos, não lembro mais, com aquela comida árabe toda, aqueles charutos de repolho) lasquei direto pro Maguito:

– Tô louco pra pegá tua irmã! Muito gostosa!

O Maguito já devia ter passado dos dez, porque ele respondeu na lata:

– Eu também! Mas essa sociedade decadente inventou essa porra de incesto...

– Tô doido pra dá uns amassos nela.

– Taí, tu tem bom gosto! Já que eu não posso, eu te ajudo.

Dei um beijo no Maguito e gritei pro garçom:

– Mais charuto de repolho. E o meu maior amigo aqui não paga nada hoje.

E o Maguito:

– Salta mais chope também. O meu cunhado aqui não quer que eu pague nada hoje.

E aí ele me segredou:

– A Sílvia tá fácil, fácil, na comemoração do coroa. E como lá só tem velho mesmo, se a gente vai, você se dá bem.

– Que papo é esse de comemoração do coroa.

– Ah, é um barato do nosso avô. Hoje é 27 de novembro. E todo 27 de novembro, ele junta um monte de caco velho que nem ele e comemoram o aniversário de uma tal de Intentona.

– Intentona? Mas quem é essa Intentona? É uma velha da patota deles?

– Não pode ser. Porque eles falam que é a Intentona de 35. O velho tem pra mais de 80 anos. Pode ser uma pilantra de 35 anos, que dá mole pros velhos e arranca uma grana deles. Se bem que, no caso do meu avô, quem dá mole é ele mesmo. Dura é que ele não vai dar.

E o Maguito se afogou com o chope, de tanto que riu do velho. Aí eu mandei ver:

– Pô, vamo logo pra essa tal de comemoração, to doidão pra pegá tua irmãzinha.

Paguei e a gente errou a saída, saímos foi no pátio dos fundos do restaurante. Lá tinha uma moto com a chave no contato. A gente montou e saiu a toda. Na porta do restaurante tive a impressão de ver o nosso garçom correndo desesperado. Mas acho que foi coisa do chope.

Porra, o Maguito dirige moto mal pra burro! Ou vai ver que foi o chope! Afinal a gente chegou no tal clube não chegou? Tá certo que antes a gente entrou numas vielas bem pau da Rocinha, uns caras lá mandaram chumbo na gente, o maior barato, a gente caiu na gargalhada, porque os panacas atiravam mal pá caralho,  não acertaram um único teco na gente! Afinal, o tal clube ficava em São Cristóvão, não sei o que o Maguito foi fazer na Rocinha, se a gente saiu do Catete.

Mas o que importa é que nós chegamos lá. Aí o Maguito perguntou onde eu ia estacionar o meu carro. Arrepiei:

– Pô, é mesmo cara, a gente foi no meu carro, de onde saiu essa moto?!

Bom filosofia numa hora dessas não adianta nada, a gente já estava no tal clube, o negócio era entrar logo, porque eu tinha dois problemas agora: Um: eu tava louco pra encontrar a irmã do Maguito e dar uns amassos nela; Dois: aquela idéia de misturar chope com comida de boteco árabe e um monte de charuto de repolho tava me causando uma rebordosa no baixo ventre. Avisei o Maguito:

– Vai desentocando a gata pra mim, eu tenho que achar um banheiro antes, emergência!

Mas nessa hora a Silvinha apareceu, toda bronzeadinha, com um vestidinho branco que acabava meio palmo abaixo da calcinha (era branca também!). Aí eu pirei. Dane-se o banheiro, pra que um homem tem força de vontade?

A Silvinha agarrou o Maguito pelo braço e disse:

– Você atrasado como sempre! E ainda traz um amigo junto. Oi, Heleno! Olha, entrem de fininho, o negócio do velho já começou tem um tempão, eu aguentei o que deu, tive que ficar até o fim do discurso do vovô. Você sabe como é horrível, todo ano a mesma coisa, A tal da Intentona de 35. Agora fiz sinal pro coroa que tinha que ir no banheiro. Mas vocês entrem de fininho, por favor. Se o velho saca que vocês não estavam na hora do discurso dele, vai ser o diabo! Olha, tem uma porta lateral pequena, com uma cortina, entrem meio abaixados por ali, sai no meio do auditório. Mas não façam barulho, pelo amor de Deus!

Eu estava hipnotizado pela boquinha da Silvia. As coxas bronzeadinhas... aaah. Pô, não saquei onde era a tal porta lateral. O Maguito muito menos. Mas ele me deu um empurrão e disse:

– Vamos, vamos, onde tiver uma cortina a gente entra.

A gente deu umas três voltas e nada de cortina. Lá dentro já estavam lascando um velho hino, pelo som devia vir de um daqueles discos de 78 rotações que o velho tinha, era uma chiadeira só. Por fim encontramos uma cortina, até que grande pra burro e nos enfiamos meio abaixados. Saímos no meio do palco!

A velharada toda se agitou. Era um monte de coroas com fardas militares antigas.

 Pensei: Ih, fedeu! Mas o coroa do Maguito até que foi legal:

– Isso são horas de chegar, meninos?!  Mas nós não podemos reclamar, afinal é lindo ver que a juventude de hoje ainda sabe respeitar e prestigiar os verdadeiros heróis como meu pai, o terceiro-sargento Argimiro Saldanha.

– Viva Argimiro Saldanha! – gritaram todos os velhos.

Perguntei baixinho pro Maguito:

– Quem foi esse cara?

– O pai do meu avô. Minha mãe disse que o velho era doidão. Quando era apresentado para as pessoas, dizia que era um herói, que tinha levado tiro durante um tal de levante. Foi um tiro na bunda. E aí, pra provar, ele arriava as calças e a cueca e mostrava a cicatriz na bunda mole e murcha. O vovô tem o maior orgulho desse seu pai herói.

– Pô, velho muito doidão... Devia cheirar umas carreiras pesadas, não?...

– Sei lá. Mas olha: o coroa está chamando a gente pro meio do palco. Vamos lá.

No centro do palco havia uma coisa coberta com a bandeira do Brasil. O velho falou:

– Este ano vamos deixar que os jovens tenham o privilégio de abrir nosso relicário. Por favor, rapazes, vocês que representam o futuro heróico desta pátria amada:

E, com um só puxão, arrancou a bandeira de cima do... do CAIXÃO DE DEFUNTO!

Puta cagaço, quase me borro! Não, é verdade, a essa altura a coisa tava braba lá por baixo, minha barriga fazia barulho de cano d’água e eu comecei a suar frio. Um caixão de defunto!

O velho pegou minha mão, botou numa parte da tampa e disse:

– Você, meu jovem, vai ter a honra de abrir nosso esquife de 2016. Vamos homenagear nosso soldado desconhecido.

Na verdade ele é que abriu aquela tampa. Dentro tinha um cara morto, com farda do exército, um monte de coisa parecendo sangue na tal farda. Minha revolução intestina piorou muito. Mas o Maguito me deu um puxão e cochichou no meu ouvido:

– Se acalma, cagão! Eles fazem isso todo ano, é um MANEQUIM!

Olhei bem e senti que o sangue me voltava às faces. Mas algo continuava indócil mais embaixo. Caramba, eu tinha que correr para um banheiro já!

Com o tal esquife aberto, o velho comandou:

– Agora o momento culminante de nossa festividade. Todos em pé no auditório, vamos nos preparar para fazer um minuto de silêncio em homenagem a todos os valentes militares mortos pela Intentona Comunista de 35.

Eu fiquei impressionado e cochichei pro Maguito:

– Pô, essa Intentona era comunista é? E ela matou uns soldados?

– Comunistona. Irada! Matou  uma porrada de milico, cara. Daqui um pouco eles vão ler a lista, mais de 20, todo ano eles leem.

– Intentona! Que nome. Acho que deve ser apelido. E eu pensando que era amiga do teu coroa, que ele andava de cacho com ela...

– Não, eles falam mal dela pra burro. Era inimiga deles. Acho que chamam de intentona por que devia ser uma baita gordona. Só não lembro como é que ela matou tanto homem sozinha.

– Ora, mano, só pode ter sido uma bomba! Vai ver ela era gente do Bin Laden.

Um olhar severo do avô nos impôs silêncio. E o velho me colocou um calhamaço de folhas na mão:

– Esta ano, nosso jovem visitante aqui vai receber a grande honra de ler a nossa lista de heróis mortos pela Intentona de 35¸ esse bárbaro atentado contra o quartel, levado a efeito pelos comunistas aqui no Rio de Janeiro, naquela trágica noite de 27 de Novembro de 1935. E agora, por favor, todos quietos, chegou nossa hora mais solene: um minuto de silêncio em homenagem aos nossos heróis mortos pela Intentona Comunista de 1935!...

E o silêncio começou. Eu estava pasmo. A tal Intentona não era uma mulher gordona terrorista, era um atentado de uns malucos contra um quartel. Tinham matado uns carinhas e...E tinha sido em mil NOVECENTOS e trinta e cinco! Caramba, mas que idade tinham aqueles matusalens ali, então?!

O pior é que, assim que acabasse o tal minuto de silêncio, eu ia ter que ler um monte de nomes com biografias. E eu estava tremendo. Cara, a coisa na minha barriga estava demais! A pressão aumentando, aumentando, aumentando. Até que de repente, no meio do maior silêncio daquelas dezenas de pessoas, a pressão encontrou o caminho da liberdade. É, foi por lá mesmo, que outro caminho existe?  Eu arregalei os olhos, me apertei todo, mas não deu pra segurar. De repente, saiu um barulhão de canhonaço das minhas entranhas, em revolta contra charutos de repolho e comida árabe com chope:

– Brrrruuummmmmmm!... – em pleno minuto de silêncio.

O Maguito caiu na maior gargalhada, se dobrava de tanto rir. A Silvinha, que tinha voltado e estava bem na fila da frente do auditório, fez a mesma coisa. Os velhos do auditório até que tentaram segurar a gargalhada, era falta de respeito com o manequim no caixão, mas... Também não deu, a gargalhada foi geral. E crescente, cada vez mais alta.

O avô do Maguito ficou vermelho, furioso, apoplético! Parecia que ia ter uma coisa. Nunca um desrespeito tão grande tinha acontecido numa cerimônia solene como essa, em seus mais de 85 anos. O velho passou a mão numa espada velha, dentro da bainha, e veio pra cima de mim, ia me desancar com bainha e tudo.

Mas mal deu dois passos e teve que recuar apavorado. O CHEIRO, camarada! O cheiro ali no meio daquele palco tava um horror. Eu também tava apavorado. Mas muito mais apavorado fiquei quando o tal manequim deu um pulo de dentro do caixão e deitou a correr para o auditório.  A coisa tava braba demais, nem manequim aguentava! Mas aí, quando o manequim sentou e começou a se abanar, conversando com os velhos da frente, é que eu vi que aquilo não era manequim coisa nenhuma, era um daqueles caras mesmo, se fingindo de morto.

A essa altura o Maguito tomou coragem, entrou na nuvem do cogumelo atômico de repolho e me agarrou pelo braço:

– Vamos se mandar, cara, que a coisa vai feder é pro teu lado já, já. A velharada vai te esfolar vivo assim que a tua proteção abaixar. 

Não precisei de outro incentivo, saímos os dois correndo pra frente, ali em algum lugar a gente tinha deixado uma moto. Moto? Onde? E alguém lembrava? Pobre do garçom! O jeito foi sair correndo dali também, que as primeiras cabeças brancas começavam a apontar na porta do clube. Pegamos o primeiro ônibus que passava e nos mandamos. A Salvação!

Bem, só em parte. Depois de uns dois quilômetros eu tive outro acesso de liberdade em estado gasoso e os caras nos botaram pra fora do ônibus a tapa. Desceram junto todos eles, com cara de desespero. Escondidos, a gente viu que, depois de uns dez minutos o motorista, heroicamente, entrou e fez sinal pro pessoal: barra limpa!  Entraram todos e foram embora, maldizendo este seu pobre narrador aqui.

A Silvinha? Tá de gozação comigo cara? Até hoje, toda vez que eu não consigo me esconder dela, ela me olha e cai na maior gargalhada. E logo comenta com quem estiver perto dela. Maior vexame cara! Quem manda ser um ignorante em História  do Brasil?

Nenhum comentário:

Postar um comentário