domingo, 19 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 1 – INDÍCIOS NÃO-VERBAIS
MILTON MACIEL (Esta série vai oferecer contribuições à técnica de quem quer escrever ficção – romance, novela e conto)

O tema dos Indícios Não-verbais não é quase mencionado nos manuais e cursos de escrita criativa e não é quase percebido pelo escritor iniciante ou pelo antigo mais desatento. Aplicando o princípio do “mostrar, não dizer(que, por favor, não é universal e nem é um axioma!), nós podemos usar muito sinais indiretos para comunicar o que queremos ao leitor, sem precisarmos dizer isso diretamente.

Vejamos um exemplo, tirado de um romance de 360 páginas (o décimo que publico, décimo-sexto contando também aqueles em que sou ghost writer), que estou terminando este mês e que vai se chamar “A Guerra de Jacques”. O protagonista chegou com 3 meses de vida à Bélgica, trazido da Polônia; ali cresceu falando francês e flamengo, foi herói da Resistencia belga, foi levado prisioneiro para a Alemanha e forçado a trabalhar como escravo na indústria metalúrgica. Finda a 2ª. Guerra e de volta a seu país, casa-se, abre seu negócio e pede sua naturalização como cidadão belga, aos 24 anos de idade.

E, por razões meramente burocráticas, a naturalização lhe é negada!

Preciso transmitir para meu leitor a decepção, a revolta, a raiva, a angústia, o sofrimento, o desespero pelos quais o protagonista passa. E que o levarão à epifania do livro, quando ele amadurece sua decisão final: “Se este país não me quer, eu também não quero este país!” E troca a Bélgica pelo Brasil.

Eu posso fazer isso escrevendo deste jeito a cena que sucede a chegada da má notícia:

Jacques sentiu uma profunda revolta. Toda uma vida vivida nesse país, apenas os primeiros três meses fora dele, uma luta dedicada na Resistência, um período de sofrimento atroz como prisioneiro e escravo. E era assim que esse país lhe retribuía? Negava-lhe uma assinatura num simples pedaço de papel! Papel que faria toda a diferença para ele, pois ninguém mais poderia chamá-lo polaco sujo!”

Veja que, escrevendo desta forma, eu estou apenas DIZENDO, como narrador onisciente e na terceira pessoa, o que está acontecendo com meu protagonista. EU, narrador, SEI o que ELE sente. E DIGO isso a meu leitor. Não estou mostrando nada, entrego o fato consumado, não deixo o leitor entrar mais fundamente na pele do meu protagonista num momento crucial de sua vida, justo na grande crise que precede a epifania.

Num momento desses eu preciso ser mais técnico. E, paradoxalmente, mais emocional. Preciso saber fazer meu leitor VIVER as emoções do protagonista, SENTIR sua revolta e sua raiva, chorar as mesmas lágrimas, gritar os mesmos ou piores palavrões, sentir ímpetos assassinos de estripar o burocrata, mesmo que o protagonista não sinta. Então nesse ponto eu devo trazer a voz para a primeira pessoa. Eu, autor, não estou mais vendo de fora, confortavelmente, o sofrimento do herói, que EU sei que vai passar. Eu tenho que estar dentro dele, sentir tudo o que ele sente, assumir sua identidade, SER ELE, sofrer o que ele sofre, chegar à mesma epifania pelo mesmo caminho doloroso.
E, principalmente, cumprir meu contrato de parceria e fidelidade com meu leitor e minha leitora. O protagonista sente, eu sinto, o leitor sente! Quando, juntos os três, depois de um desgaste emocional fabuloso, nós chegamos à grande transformação que é a epifania, vamos compartilhar a sensação de superação, a certeza da mudança, o triunfo da coragem. Fechamos o livro no fim do capítulo com uma euforia que é autêntica, se choramos as lágrimas secam em riso, respiramos fundo de novo, a dor no peito desaparece e encaramos o capítulo seguinte, o primeiro do clímax, com um entusiasmo renovado. A vitória do herói é a vitória do leitor!


Vamos ver amanhã, na continuação, como é que eu resolvo essa situação toda do capítulo 37. E o que são e como se usa os tais Indícios Não-verbais. Interrompo neste ponto de propósito, para lhe dar tempo de se exercitar: Procure você também MOSTRAR essa cena para o seu leitor, encarnando COM ELE o protagonista. Escreva, porque não há, em princípio, razão alguma para você não poder chegar a uma solução ainda melhor do que a minha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário