É POSSÍVEL ENSINAR ALGUÉM A ESCREVER BEM?
MILTON MACIEL
Muitos apregoam aos quatro ventos que não, abrindo exceção somente
para os casos em que se usa um caderno de caligrafia, para melhorar a letra
cursiva desse alguém. Como é óbvio que nossa intenção aqui é bem outra, nada
tendo a ver com letra cursiva, vou dar minha resposta:
É possível, SIM!
Você só não pode ensinar, a rigor, uma pessoa a escrever melhor, porque melhor é superlativo de
bom e você não ensina alguém a escrever mais
bom, ensina a escrever mais bem. Mas
esta construção fica imperfeita, porque implica em que essa pessoa já escreve
bem e você a ensina a escrever mais bem ainda.
Voltemos, portanto, ao conceito inicial: escrever bem. Cujo oposto óbvio é escrever mal. E a primeira pergunta que
coloco aqui é seguinte:
Alguém pode escrever bem, sem estudar a arte e a técnica da escrita?
Minha resposta é SIM, um acachapante sim.
Muitas pessoas possuem esse dom inato e, via de regra porque
intensas leitoras – donas, portanto, de um alentado vocabulário e de um
conhecimento quase intuitivo de gramática prática – são capazes de escrever
corretamente. Se conseguem completar esse dom mais básico com uma capacidade de
observação/imaginação prodigiosas, podem chegar também ao cerne mesmo do ato de
escrever, que é a concepção da IDEIA original sobre a qual vão escrever bem.
Estas são as pessoas qualificadas como “diamantes em bruto”. Se chegarem a ser
lapidadas, por esforço próprio de estudo ou com a ajuda de outros, viram gênios
da literatura.
Só que tem uma coisa: os “diamantes em bruto” são exceção absoluta,
não são a regra geral. O engraçado é que, de um modo geral, quase todos os
principiantes se sentem diamantes previamente polidos, gênios em potencial, que
aqueles cretinos dos revisores, editoradores e editores não sabem reconhecer,
iluminados que não precisam aprender e praticar nada sobre as técnicas de sua
profissão, as quais, obviamente, já nasceram sabendo!
Futebol e música
Para entender melhor esse processo de lapidação a que me
refiro, proponho fazer uma pequena digressão pelos campos do futebol e da música.
Comecemos, para arrasar, logo pelo rei do futebol: Pelé, o gênio da bola. Todos
tendem a achar que Pelé foi um caso único no mundo, um prodígio, porque... nasceu pronto! Bem poucos sabem que o menino
Gasolina, 15 anos, moleque de recados dos jogadores adultos do Santos F. C.,
deu um duro danado nos treinamentos, tornando-se em pouco tempo o mais aplicado
de todos, aquele que continuava em campo quando todos já tinham ido para casa e
ficava sozinho no estádio apagado, treinando dribles e batidas de faltas, sob a
escassa luz esparsa da noite da cidade, apoiada ocasionalmente pela
benevolência da lua cheia.
Seu pai, Dondinho, que havia sido um bom jogador
profissional de futebol, reconheceu muito cedo o talento extraordinário do
filho. E, por isso mesmo, não deixava o moleque ficar usando seu dom só nas inúmeras
peladas com os outros moleques, onde ele se divertia e se destacava. O pai
obrigava o filho criança a fazer contínuos treinamentos e Pelé adulto relembra o
quanto detestava isso. E que chegava mesmo a chorar, especialmente quando o pai
levou mais de um ano forçando-o a treinar horas por dia, todos os dias, no
corredor de casa, a chutar com o pé esquerdo até não aguentar mais de dor. Até
que um dia, finalmente, o menino conseguiu fazê-lo sempre; e tão bem quanto fazia
com o pé direito intuitivamente.
O maior talento inato foi também aquele que treinou MUITO MAIS
do que os outros. O diamante em bruto foi lapidado à perfeição, até a mais
ínfima das suas facetas. Esse é Pelé!
Pense agora em músicos, mais especificamente em COMPOSITORES.
Lembre-se de vários deles, populares e eruditos. Traga-os de volta à sua tela
mental, veja-os apresentando-se ao público. São diversos, mas a esta altura sua
memória deverá ter detectado algo que todos eles têm em comum. Viu?
Pois é, com raríssimas exceções, quando você os relembra em
suas apresentações, o que eles têm em comum é um INSTRUMENTO nas mãos. João Gilberto,
Toquinho, Chico e Caetano têm um violão; Tom Jobim, Taiguara, Guilherme Arantes
e Heitor Villa-Lobos, um piano.
Qualquer um deles poderia ter composto assobiando ou
cantando, acompanhando-se com uma caixa de fósforos. Mas... você acha que
teriam chegado tão longe quanto chegaram?
Caetano diz, no final de sua “Tigresa”:
“... E eu
corri pro violão, num lamento,
E a manhã
nasceu azul...
Como é bom
poder tocar um instrumento.”
Pois é, o
domínio do instrumento é a TÉCNICA, sejam os dedos no violão, sejam os dedos e
os pés no piano, sejam os pés, as pernas, as mãos e a cabeça no futebol. Eles
precisam ser capazes de obedecer com perfeição aquilo que a mente do artista da
música ou da bola quer expressar.
Um pianista
clássico ensaia em média 8 horas por dia. Uma bailarina também. Um jogador de
futebol idem.
Vai daí a primeira
recomendação: Você quer ser um grande escritor? Pois bem, ensaie 8 horas por
dia. Como?! Escrever oito horas por dia?!!
Não, eu usei
o verbo ensaiar! E o principal
trabalho do escritor não é escrever. É LER.
Ler como um
leitor e ler como um escritor. E ler sobre os segredos da sua profissão. Ler e
estudar os processos de escrita. E escrever aplicando o que você absorve por
osmose ao ler bons colegas; e o que você absorve por esforço, ao estudar as
técnicas da nossa arte maior.
José
Saramago, prêmio Nobel,
– Escrevo
todos os dias.
–
Fantástico! Quantas páginas? – perguntou a moça, antegozando a resposta sobre as
dezenas de páginas que o gênio lavraria num único dia.
– Uma. Ou duas,
no máximo.
– Só!!! –
escandalizou-se a moça – E o resto do tempo, o que o senhor faz, então?
– O resto
todo do dia, eu LEIO. Senão, como é que eu seria um bom escritor?
Já Stephen
King recomenda uma rotina diária mínima de seis horas de trabalho. Escrevendo o
tempo necessário para gerar 10 páginas. E o resto do tempo todo dedicado à
leitura. Todo santo dia! Leitura de, pelo menos, 80 livros por ano.
Faça aí suas
contas:
Escrevendo
uma única página por dia (10 minutos a meia hora, no máximo), todos os dias, dá
mais de 360 páginas para revisar, editorar e publicar como um livro. Ou seja,
um a dois livros POR ANO!
Escrevendo
10 páginas por dia (1 hora e meia a 5 horas – in extremis!), dá mais de 3600 páginas por ano. Um livro de 300
páginas POR MÊS! Ou, folgadamente, um livrão com algo como 900 páginas para
você ir cortando na revisão e publicar com 600 páginas no fim, a la Stephen King. Isso a cada TRES
MESES.
Logo,
ESCREVER não é a parte difícil da profissão de escritor. ESCREVER BEM é que é. Porque tempo você tem de sobra para ser um Saramago.
Mas, como no
piano ou na flauta, só precisamos aprender COMO se toca o instrumento. Mais: como
se toca BEM o instrumento. E isso é perfeitamente possível. LEVA ANOS, é bem
verdade. Muitos, se você só faz exercícios e toca só de vez em quando. Muito
menos, se você toca todo santo dia por paixão, horas a fio, e aprende um monte
de músicas novas por puro prazer, puro deleite.
Para ser um
bom escritor, você tem que fazer exatamente a mesma coisa: tocar o seu teclado
ou caneta todos os dias, horas a fio, por puro deleite, puro prazer. Então
escrever não cansa, não desanima, não satura. Pelo contrário, entusiasma, anima,
você tem que se obrigar a parar porque é hora de comer, porque é hora de
dormir, porque é hora de trabalhar em outra coisa ou lugar, se tal ainda for o
seu caso.
E o resto do
tempo você LÊ. Por puro prazer, por puro deleite, por duro – e delicioso –
aprendizado. É como aprender músicas novas no piano.
(Adaptado de
“A ARTE E A TECNICA DO ROMANCE” – Milton Maciel, IDEL, 2017, 280 pg)
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