PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 3 – INDÍCIOS NÃO-VERBAIS – 3ª. parte
MILTON MACIEL (Esta série oferece contribuições à técnica de quem quer escrever ficção)
MOSTRE, NÃO CONTE
Você pode
ficar confuso com essa história de “Mostre, não conte”. Porque, a rigor, tudo é contar. Eu sou obrigado a contar ao meu leitor aquilo que eu
quero que ele saiba e, principalmente, que ele imagine. Porque, afinal, eu não
tenho uma câmera cinematográfica, para mostrar
– e só mostrar – para ele.
Já o contar
é que é o grande problema para o cinema e a TV. Eu filmo uma cena mostrando uma rua de um bairro popular,
numa noite de chuva, passeando com a câmera ao longo das fachadas das lojas e
das paredes desbotadas e pichadas. Mas eu não tenho como dizer ao meu espectador que aquela é a rua onde o personagem X
viveu sua infância e que ele está ali num retorno nostálgico, em busca de uma
antiga namorada. Eu não posso abrir a cena com uma narração ou um texto. Essa
informação não entra pela câmera em seu passeio, vai ter que ser colocada em
cena através de algum diálogo ou monólogo em voz alta nesta cena. Ou isso
acabou de ser feito na cena anterior.
Já num livro
eu posso abrir a cena com a narrativa, contando a localização exata no espaço e
no tempo, o narrador sabendo da história, do passado e do que se passa agora na
cabeça do personagem principal. Mas, em compensação, eu vou ter que me virar e trabalhar
muito se eu quiser dar muita informação sobre as tais fachadas das lojas, os
grafitis desbotados sobre as paredes, as portas, as vitrines, os automóveis, a
iluminação, os transeuntes, os clientes dos bares, a cara do tempo, a chuva ou
neblina.
No filme
isso é fácil demais. A câmera é especializada em mostrar. Ela desliza no trilho
e nos informa instantaneamente sobre aquilo que o escritor vai ter que suar
para dar uma ideia limitada, sem cansar ou desinteressar o leitor com descrição
em excesso, uma das coisas mais chatas da literatura.
Para nós que,
escrevemos ficção para leitura, contar é muito fácil, mostrar é mais difícil.
Exatamente o contrário do acontece com o roteirista, para quem mostrar é muito fácil
e contar é mais difícil.
Porém, é justamente
no talento para mostrar que se
concentra a maior ou menor qualidade do escritor de ficção. Exatamente porque
mostrar, para nós, é mais difícil. E, quanto mais bem você souber mostrar, mais
bem-sucedido você será ao contar sua história.
Veja, num
nível muito mais rudimentar, o caso do bom piadista. Além de ter uma memória
afiada para desfiar um alentado repertório, o que mais agrada aos seus ouvintes
é sua capacidade de representar, de dramatizar a piada, de puxar a risada no
momento certo e culminante. Ele é um artista de teatro. Ele mostra, não conta.
Por outro lado, você conhece certamente um bom punhado de contadores de piada
absolutamente sem graça. Eles são sem graça, não a piada! Eles contam a anedota, não mostram. Você não
conta uma piada, você mostra uma piada,
se quiser ser bem-sucedido na empreitada.
Da mesma
forma, você já deve ter ouvido um pianista sem talento tocando um prelúdio de
Chopin. Parece um mecânico martelando a lataria do seu carro. Depois você ouve
um virtuose que não toca, interpreta
a mesma peça, e você é capaz até de levitar. Tocar é contar, interpretar é
mostrar. Interpretar transmite emoção em altas doses.
Mas atenção:
isso não quer dizer que, em ficção, você não deve contar, só deve mostrar. Nada
disso! Você vai ter que aprender a usar os dois recursos e dosá-los
tecnicamente de acordo com a importância da cena e com o ritmo que você quer
imprimir a ela. Contar acelera, mostrar ralenta. Contar sumariza, mostrar
dramatiza. Contar é objetivo, mostrar é subjetivo. Contar é de fora para
dentro, mostrar é de dentro para fora.
Contar vem
pronto e acabado da cabeça do narrador (que é o escritor, afinal) para a do
leitor. E isso às vezes é não só conveniente, como altamente necessário. Mostrar
é falar com o leitor de dentro da cabeça do personagem, mobilizar
seus cinco sentidos, seus pensamentos, suas emoções. E fazê-los passar para a
cabeça do leitor com liberalidade, deixando-o com certa liberdade para imaginar,
para criar, para supor possíveis desdobramentos nas páginas seguintes. Esse é o
verdadeiro jogo da ficção. Um jogo sutil entre contar e mostrar, em que, no fundo,
tudo é contar.
Mas isso depende
de como você conta: contou
sintético, foi objetivo, é contar propriamente dito. Contou dramatizando, foi
subjetivo, transmitiu emoção e pensamento, inclui o leitor no bolo – aí é
mostrar. Ou seja, é contar e contar. Só que tudo depende de como você conta.
Porque você
não tem uma câmara na mão para mostrar. Você vai ter que mostrar com
palavras, nossas unidades benditas de trabalho. As palavras e a sua
mestria, como autor, em alocá-las e combiná-las é que vão construir a sua tomada
de cena: luzes, câmera, ação!
CONTINUA
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