PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 2
– INDÍCIOS NÃO-VERBAIS – 2ª. parte
MILTON MACIEL (Esta série oferece
contribuições à técnica de quem quer escrever ficção
Na primeira
parte deste tema eu fiz uma descrição da situação em que se encontrava meu
protagonista, cujo pedido de naturalização havia sido negado pelo governo belga.
E disse como poderia construir a passagem:
Eu posso fazer
isso escrevendo deste jeito a cena que sucede a chegada da má notícia:
“Jacques sentiu uma profunda revolta. Toda
uma vida vivida nesse país, apenas os primeiros três meses fora dele, uma luta
dedicada na Resistência, um período de sofrimento atroz como prisioneiro e
escravo. E era assim que esse país lhe retribuía? Negava-lhe uma assinatura num
simples pedaço de papel! Papel que faria toda a diferença para ele, pois ninguém
mais poderia chamá-lo polaco sujo!”
Isso é dizer. Vamos agora misturar o dizer com
o mostrar e ver onde chegamos nesse
capítulo:
Às 3 da
tarde daquele outono, a luz no grande salão do Bistrot des Amis pareceu forte demais para Jacques, ofuscava-lhe os
olhos, fazia-lhe doer ainda mais a cabeça. Sobravam-lhe quase 3 horas até abrir
as portas do negócio, por isso preferiu descer para a adega, no subterrâneo. Os
sapatos soaram pesados na escada íngreme de madeira, o odor de cerveja e
serragem inundou-lhe o nariz, a luz mortiça consolou sua vista dolorida. Deu
alguns passos irresolutos e de repente jogou-se sentado sobre a serragem no
chão, num vão entre barris de chope.
Fechou os
olhos, segurou a cabeça na fronte com as duas mãos e deixou-se enfim desabar.
Estava só, poderia chorar, a dor que fazia cabeça e peito doerem tanto exigia
isso. Mas não! Estava com raiva demais para poder chorar.
– Meu Deus, meu Deus! – gemeu,
encolhendo-se. Jean-Luc e Tristan gritavam no pátio da escola:
– Polaco
sujo! Polaco sujo! – as outras crianças, de 8 anos como ele, riam e debochavam também.
– Não sou
polonês. Eu sou belga!
– O polaco
sujo fugiu da Polônia. É polaco!
– Mas eu só tinha
3 meses. Sou tão belga como vocês. Não sei falar polonês. Sempre vivi aqui.
– Mentira,
Polaco é sempre polaco. Estrangeiro. Miserável, mineiro sujo de carvão.
– Ele diz
que não é polonês, Jean-Luc. Vai ver é judeu, como quase todos os polacos.
– Mentira!
Meus papeis dizem eu era alemão lá, minha mãe é alemã.
– Pior: é polaco
sujo e é alemão desgraçado, que invadiu nosso país na Primeira Guerra.
– Polaco!
Judeu! Alemão! – berrou Tristan no seu ouvido.
Jacques
poderia ter chorado. Era a vontade que sentia. Mas não! A raiva era demais para
chorar. De repente saltou em cima dos dois meninos e os três se engalfinharam
no chão. Ganharam uma semana de suspensão os três.
Agora Jacques
tinha 24 anos, rolava as pernas sobre a serragem do chão e as vozes dos meninos
enchiam-lhe os tímpanos, como sempre fizeram, ano após anos de sua vida
infantil e adulta.
Um salto, em
pé! Um chute num barril pequeno, que rolou pelo piso até estatelar-se manso na
parede em frente:
– Burocratazinho
filha da puta! Maldito! Desgraçado!
Os passos
agora o levavam errático com uma fera enjaulada, para lá e para cá:
Eu fiz tudo por esse país – a cabeça
latejava! – Corri todos os perigos,
ajudei as transmissões clandestinas, enganei a Gestapo, nunca traí um companheiro!
Deu um tremendo
murro no ar, extravasando a fúria:
Prisioneiro e escravo na Krupp. “Chamem o
belga, o belga traduz”, os alemães diziam, os prisioneiros franceses diziam, os
prisioneiros holandeses diziam. O Belga!
Eu era o belga, o único belga num pavilhão com mais de 200 operários estrangeiros
escravizados na Alemanha. E eu adorava que me chamassem de belga, porque belga
eu me senti a vida inteira. Eu tinha orgulho de ser belga.
O ronco de
um caminhão na rua, lá em cima, inundou o seu silêncio, calou o ruído
ensurdecedor das forjas, das calandras, das esteiras, dos altos fornos, das
bombas dos aliados caindo em Essen diariamente, da parede do hospital onde ele
estava desabando sobre seu corpo e soterrando-o em meio à neve.
Jacques
afrouxou as pernas sobre os joelhos, ficou um só instante assim e então
jogou-se de bruços no chão. Enfim a explosão inevitável chegou. E ele chorou
pela primeira vez desde que, três dias atrás, recebeu a terrível notícia:
cidadania belga negada em caráter definitivo!
O choro
convulsivo dominou todo o seu corpo por muito tempo. A dor mudou no peito, na
garganta, nos olhos, intensificando-se primeiro. Depois, bem aos poucos,
arrefeceu, o cansaço chegou dominador e total, uma lassidão dolorosa tomou
conta de todos os seus músculos.
E, com isso,
a necessária distensão chegou a seus pensamentos. E, com ela, uma lucidez que não
lhe fora possível ter até então.
Jacques
sentou outra vez e começou a respirar mais forte, superando a sensação de dor
no peito. Mas, muito mais, superando a sensação de vergonha, derrota, revolta, frustração,
de ódio que havia engolido durante todas as horas daqueles três dias infernais.
Levantou, firmou-se
nas pernas. Uma nova ideia, muito clara, cresceu até dominar toda a sua mente.
E ele disse, em voz alta, decidida, ostentando uma serenidade que lhe pareceu
totalmente despropositada:
– Belga não sou. Polaco sujo também não. Pois
bem, se este país não me quer, então eu é que não quero mais este país.
Enxugou de
vez os olhos, caminhou calmamente em direção à escada e falou outra vez,
dirigindo-se aos barris de chope e cerveja, seus interlocutores e testemunhas
dos momentos finais de sua agonia:
– Nunca fui polonês no meu coração. Sempre
fui belga, mas belga nunca serei. Então serei cidadão de outro país, que eu
queira e que me queira.
Momentos
depois, o homem que reentrou no salão de seu Bistrot era outro. Havia afundado
no porão da adega com olhos de desespero, com alma de revolta, era um homem
magoado e perdido. Mas agora aquele par de olhos tinha um brilho estranho, os
passos tinham a força da certeza, eram do andar firme de um homem apaziguado e
renascido.
FIM desse
trabalho. Você viu a enorme diferença entre contar e mostrar. Contar SINTETIZA.
Mostrar DRAMATIZA. Quando eu preciso acelerar o passo da história, eu conto simplesmente. Quando a cena é mais
importante, eu me detenho nela e mostro.
Posso trocar um parágrafo sintético por duas, três páginas inteiras ou mais.
Ainda vamos
voltar a este tema, para, enfim, desenvolver mais o tópico dos indícios
não-verbais.
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