PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 4
– INDÍCIOS NÃO-VERBAIS – 4ª. parte
MILTON MACIEL (Esta série oferece
contribuições à técnica de quem quer escrever ficção)
Agora vamos,
finalmente, dar atenção ao assunto proposto no título, os indícios não-verbais. Eu
não poderia chegar a ele sem passar pelas etapas anteriores, principalmente sem
ressaltar a diferença entre contar e
mostrar.
Não-verbal é
tudo o que não tem a ver com o que é dito, verbalizado, diretamente, seja pelo narrador,
seja pelos personagens. Se eu escrevo:
“Escondeu-se
nos arbustos, com receio de ser percebido”, eu estou contando.
Mas se eu
escrever:
“Dois
minutos? Três? Quanto tempo levariam para perceber sua presença? Deus, se eles me pegam aqui, estou
liquidado! Contraiu-se de bruços entre os arbustos, ofegante, um suor frio escorrendo
da testa, uma estátua de sal”, então eu estou mostrando.
E aqui nem
tudo o que eu escrevo tem apenas denotação direta. As conotações, analogias, comparações,
metáforas ou metonímias que são usadas num texto assim transformam a narrativa
de um simples contar em um intenso mostrar.
A narrativa
linear do contar: “Escondeu-se nos
arbustos, com receio de ser notado” não passa ao leitor a intensidade
dramática da situação e da condição em que o personagem se encontra. “Escondeu-se entre os arbustos”. Sim, e
daí? “Com receio de ser notado”. Ah,
não quer ser visto. Sim, e daí? – outra vez. Não que ser notado porque vai dar
um susto, vai fazer uma brincadeira, vai espiar as meninas no banho – vai se
divertir, enfim. Eu vou ter que expor que o personagem enfrenta uma situação de
risco com pelo menos mais uma frase da narrativa direta.
Veja agora a
outra construção:
“Dois minutos? Três? Quanto tempo levariam
para perceber sua presença” transmite a ideia de tempo, de urgência. Começa
a desenhar a situação de risco, que se completa na frase seguinte. Mas nesta o personagem ponto de vista (PPV), o narrador,
deixa de ser o onisciente em terceira
pessoa e passa a ser o próprio protagonista
da cena, que narra em primeira pessoa:
“Deus, se ele me pegam aqui, estou
liquidado!” Nesse momento o leitor entra na pele do personagem e passa a
viver sua tensão, que só se intensifica a seguir.
E, a partir daqui,
temos uma série de indícios não-verbais que informam o leitor sobre a situação do
protagonista: “Contraiu-se de bruços”
mostra um esforço muscular para ocupar menos espaço, esconder-se ainda mais,
conota tensão extrema. Mas você não diz
que ele está tenso, não verbaliza. “Ofegante” pode acentuar
ainda mais o medo, mas é dúbio, pois pode ser também consequência de o
personagem ter corrido antes. “Um suor
frio escorrendo da testa”, no entanto, é inequívoco. Aqui a palavra-chave é
o adjetivo frio. Suor frio é sintoma de
medo. E a expressão “suor frio” resgata e qualifica assim o “ofegante”.
Mas você não diz que ele está com medo, não
verbaliza. “Uma estátua de sal”,
metáfora que traz à mente a imagem bíblica da mulher de Lot, arremata de forma
contundente a narrativa, mostrando o personagem rigidamente paralisado, tal sua
tensão, tal o seu medo. Mas você não diz que ele está com tanto medo que fica paralisado.
Não verbaliza.
Isso tudo são
indícios
não-verbais.
Eu poderia
estragar a força deste texto substituindo a metáfora implícita “uma estátua de
sal” por uma comparação: “Ficou
paralisado como uma estátua de sal”. Isto é uma comparação, está ali a
palavra como para fazê-lo. Veja que a
construção perde força e, ao mesmo tempo, você rouba o leitor da delícia de
fazer ele mesmo a metáfora viver dentro de sua mente, sua memória (mulher de
Lot) e sua imaginação.
Veja agora
trechos da construção que usei no nosso Romance “A Guerra de Jacques”, que mostrei na parte 2 desta série sobre Indícios Não-verbais:
“... preferiu descer para a adega, no
subterrâneo. Os sapatos soaram pesados na escada de madeira, o odor de cerveja
e serragem inundaram-lhe o nariz e a luz mortiça consolou sua vista dolorida.
Deu alguns passos irresolutos e, de repente, jogou-se sentado sobre a serragem
no chão, em um vão entre barris de chope. Fechou os olhos, segurou a cabeça
pela fronte com as duas mãos e deixou-se enfim desabar. Estava só, poderia
chorar, a dor que fazia cabeça e peito doerem tanto exigia isso. Mas não!
Estava com raiva demais para poder chorar. Gemeu, encolhendo-se e viu-se
novamente como uma criança na escola quando as outras...”
Aqui uso um recurso forte para trazer
o leitor para dentro da situação do personagem, para mostrar: Exploro os sentidos físicos!
Audição (o som dos sapatos na escada), olfato (cheiro de cerveja e serragem),
visão (luz mortiça). Pronto, o leitor está dentro da adega agora, sua
imaginação lhe traz inevitavelmente o cheiro de cerveja, quiçá até mesmo o de
serragem, que provavelmente lhe é menos comum no dia-a-dia). Você não se detém
para pensar nisso enquanto está lendo ali, na corrida, seguindo atento a
narrativa; mas você ouviu, sim, um ruído de sapatos numa escada de madeira, o
SEU som de sapatos na madeira, sua particular experiência de ruídos desse tipo,
que você já ouviu na vida real e nos filmes.
Essa é a essência mesma do
trabalho do escritor de ficção: combinar palavras de tal forma que o leitor
embarque em sua viagem, viva as emoções da cena e dos personagens, à sua própria
maneira – porque não pode ser de outra maneira, simplesmente.
Cada um de nós, ao ler em menos
de um segundo(!) a menção aos passos dos sapatos na escada íngreme de madeira,
formou automaticamente sua imagem, viu a escada, ouviu os passos. Só que viu a
SUA escada, íngreme dentro do seu conceito subjetivo ou memorizado de íngreme;
e ouviu os passos DA SUA MANEIRA. Mas viu, ouviu e até cheirou o ar impregnado
de aromas de cerveja e serragem – mas os SEUS aromas mentais de serragem e
cerveja.
Por coisas assim é que MOSTRAR é
tão importante. É levar ao máximo nossa cumplicidade com nossa leitora, com
nosso leitor, nossos grandes parceiros nessa jornada gloriosa da literatura de
ficção.
Veja agora este outro trecho:
“...De repente um salto, pôs-se
em pé! Deu um chute num barril pequeno, que rolou pelo piso até estatelar-se na
parede em frente. Burocratazinho sem
vergonha! Maldito! Desgraçado! Os
passos no porão o levavam errático como uma fera enjaulada. Eu fiz
tudo por este país – a cabeça latejava! – Corri todos os perigos, ajudei as transmissões clandestinas, enganei a
Gestapo, nunca traí um companheiro! Deu um tremendo murro no ar,
extravasando a fúria: Fui prisioneiro e escravo na Krupp. “Chamem o
belga, o belga traduz”, os alemães diziam, os franceses diziam, os prisioneiros
holandeses. O Belga! Eu era...”
O salto, o chute no barril, traduzem raiva.
Não preciso dizer isso, não verbalizo.
“A cabeça latejava” traduz dor. Não digo isso, não verbalizo, deixo como
metáfora para o leitor terminar a construção dentro de sua própria mente.
Deu um murro tremendo no ar, extravasando a fúria. De propósito usei esta construção
no artigo, para poder comparar agora com a que deixei no livro:
Deu um tremendo murro no ar: “Fui prisioneiro e escravo na Krupp, etc... Quer dizer, não disse para o
meu leitor que aquele gesto era para extravasar a fúria, porque é óbvio que o
leitor é inteligente e perspicaz o suficiente para saber isso. Mas ele vai ter
o prazer de chegar a essa conclusão por si mesmo, de forma automática. Essa é a
tal parceria com o leitor a que me refiro. E a que Ernest Hemingway se refere
em sua Teoria do Iceberg,
quando insiste que o autor não pode encher o leitor de descrições e pormenores
nos mínimos detalhes, como se este fosse um incapaz sem imaginação. Concordo com
Hemingway e uma das formas mais brilhantes de fazer isso na pratica é usar – de
forma ocasional e bem calculada, sem exageros – os indícios não-verbais.
Para concluir, mais um trecho:
“... O ronco de um caminhão na rua, lá em cima, estremeceu a adega,
inundou o seu silêncio, calou o ruído ensurdecedor das forjas, das calandras,
das esteiras, dos altos fornos, das bombas dos aliados caindo em Essen
diariamente, do fragor mortal da parede do hospital desabando sobre seu corpo,
soterrando-o em meio à neve. Ele afrouxou as pernas sobre os joelhos, ficou um
só instante assim e então jogou-se de bruços no chão...”
Aqui o leitor sabe, porque já leu
nos capítulos anteriores, que o protagonista passou por todas essas
experiências e ouviu todos esses ruídos, que agora assombram sua mente na adega,
quando foi prisioneiro na Alemanha. Forjas, calandras, esteiras, altos-fornos,
bombas, desmoronamento. Todos esses sons, bem descritos nos capítulos já lidos,
voltam instantaneamente à cabeça do leitor, que reconstrói de forma automática,
em sua própria mente, tudo o
que se passa na mente atormentada do personagem naquele instante. E eu não
preciso dizer nada disso, não preciso verbalizar, meu esperto leitor já sabe de
tudo, lembrou de tudo, reviveu tudo, todas as emoções! Intensamente. E numa
fração de segundo! FIM
Adaptado de "A ARTE E A TÉCNICA DO ROMANCE" - Milton Maciel, IDEL, 2017)
A frase de Hemingway acima: "Sempre faça sóbrio o que você disse que faria bêbado. Isso vai lhe ensinar a manter sua boca fechada"