MILTON MACIEL
Pois é, tudo acaba por ter um motivo na vida. Como a mudança do Cosme, por exemplo, que
deixou, meio que na corrida, aquele cortiço onde ele morava no Braz. Bem isso
foi há muito tempo, lá pelos idos de 1957. Mas até hoje todo mundo sabe por que
razão o Negão mudou tão depressa. Nunca foi mistério, pois ele mesmo é que
contava:
– Mudei por causa do idioma italiano, meu camará. Diacho de língua
mais enrolada de gringo!...
Cosme era um bom mulato baiano, que apareceu aqui em São Paulo
fugindo de alguma coisa ou de alguém lá da sua terra. Uns diziam que foi coisa
de conta de bar, outros que de jogo, houve quem jurasse que era coisa de mulher
embarrigada, mas a voz mais corrente afirmava que o baiano, de fogo, tinha se
enfiado num navio de linha pra se esconder de um marido enraivecido por excesso
de dor de corno. Quando acordou da bebedeira, já estava em alto mar. Aí fez um
acordo com o imediato, que quebrou o galho com o capitão e Cosme passou a
viagem toda fazendo dinheiro para eles três, usando um baralho novo do
comandante, que o Negão soube marcar com perfeição.
Cosme era o nome, Negão era o apelido, sabe-se lá por que razão, já
que como mulato ele até que era desbotado demais. Vai ver foi coisa de mulher
também, que mulher gosta de botar apelido grudento...
No final da viagem, Cosme foi ficando por Santos mesmo, usando suas
velhas habilidades no baralho e nos dados. Até que dava para viver melhor do
que em Salvador, naquelas redondezas do porto. Quer dizer, dava para ganhar
melhor, porque viver mesmo... ah, não tinha lugar para isso melhor que sua
Cidade da Bahia. Mas em Santos ele era figura nova, não era figurinha carimbada
e conhecida, como em sua terra natal. Ali era muito mais fácil arranjar
freguesia nova para depenar, tanto marinheiros de todas as bandeiras, como
estivadores e gente do povo em geral.
Mas o que encantou Cosme foi a chegada de um navio trazendo uma leva
de imigrantes italianos. Fez amizade de carteado com um grupo deles, jogo é
jogo, carta é carta e pôquer é pôquer, isso em qualquer idioma. Entre goles de
cachaça e de vinho, baforadas de cigarro e charuto mata-rato, todos se
entendiam. E o Negão ia deixando os fregueses ganharem algum, para ganharem
confiança junto com esse algum. Depois, passava o rodo e garantia a féria. Mas,
simpático e alegre como ninguém, mesmo assim fazia amizades, aprendia algumas
escassas palavras do idioma dos gringos, ensinava muitas mais do seu, quase que
só palavrão e coisa que não prestava.
E foi nessa arribação dos italianos, quando chegou a hora de eles subirem
para São Paulo, que Cosme resolveu arriscar também. Afinal, o freguês tem
sempre razão. Pois aqueles camaradas insistiam no convite, que fosse Cosme com
eles para o Braz, que tinham onde ficar, que tinham trabalho garantido, que ele
era como um irmão pra todos, que podia ser um guia para eles em São Paulo. Bem,
tirando o fato que ele não conhecia São Paulo nem um pouquinho mais do que os
italianos, o resto lhe pareceu razoável. Estava ali no bem bom, o grupo de
carteado era grande, a turma divertida, sabia perder, garantia sua vida mansa.
Então o Negão arribou também. E por isso passou a viver naquele
cortiço no Braz. Os italianos logo pegaram no batente, verdade que vinham de
serviço pré-contratado com um patrício rico deles, que tinha várias fábricas
ali no bairro e estava precisando de operários e operárias. De operárias, ainda
mais, que o negócio do tal comendador era mais coisa de tecidos: fiação,
tecelagem, ou coisa que o valha.
E as italianinhas, seu cumpadi! Ah, mas cada pedaço de mulher! O
Negão ficava babando, mas era acima de tudo um profissional competente, cioso
de que não se come a carne onde se ganha o pão. Nunca tentou se insinuar com
nenhuma das mulheres das famílias dos seus parceiros-fregueses, não ia ser
louco de estragar uma mamata garantida daquelas. Ainda mais agora que todos
estavam empregados e ganhando o suficiente para se tornarem mais ousados nas
apostas do carteado. Era o progresso tão sonhado por todos eles, maior ainda
para Cosme, que nem tinha sonhado com nada.
Verdade, verdade, não se pode dizer que o Negão não sonhasse.
Sonhava, sim. Mas não com dinheiro ou conforto. Cosme não era ambicioso, era
frugal nos seus hábitos, mais fingia do que bebia, comia com moderação,
economizava e ia juntando o dinheirinho que os gringos faziam questão de dar
para ele mais de uma vez por semana, naquelas noitadas de jogo divertidas. Os
italianos já tinham entendido que Cosme era profissional, que ele jogava para
ganhar, mas tinham se acostumado demais com o Negão. Numa noite em que ele se
encoxou todo com uma cabrocha nos fundos dum restaurante, quando ela saía, e não
pôde comparecer ao carteado, o jogo, mal começou, acabou. A italianada ficou
sem graça, jururu, desanimada sem o mulato alegre e farrista que era a alma da
noitada.
Mas Cosme sonhava, sim. E sonhava com uma mulher. Com uma italiana.
Que calhava de ser a mulher do Gennaro, um dos companheiros mais chegados que
ele tinha ali no grupo do carteado. A italianinha era novinha, tinha 22 anos e
era uma beldade, uma deusa de fechar o comércio, uma verdadeira Miss Itália, no pensamento oculto de Cosme. Tudo nela era nos conformes, nos
trinques, da bunda aos peitos, da cara às pernas. E Cosme na maior cerimônia,
Dona Gina pra cá, Madame Gina pra lá, no maior respeitê.
De dia, com a italianada toda trabalhando, ficavam poucos no
cortiço. Cosme era um deles, afinal ele só trabalhava de noite, com o baralho e
com os dados. Dona Gina era uma das poucas mulheres jovens que não trabalhavam
na fábrica. O marido era muito ciumento, não queria que os outros homens, os brasiliano em especial, ficassem de olho
na sua mulheraça. Abriu o jogo com o Cosme e pediu que ele ajudasse, que já que
ficava no cortiço, ficasse de olho em Dona Gina. Não que Gennaro desconfiasse
dela, mas queria que Cosme pudesse intervir caso algum mascalzone, algum maledeto
de um brasiliano visse a se passar
com sua sposina.
E assim o Negão foi erigido anjo da guarda da Miss Itália, com o
beneplácito do maridão ciumento, que até lhe escorregou uma nota graúda para
firmar o acordo. Só que a jovem Gina passava o dia ajudando as outras mulheres
, geralmente bem mais velhas, que ficavam no cortiço lavando roupas e cuidando
da criançada. Quase não conversava com Cosme, até porque ela não conseguia
aprender o português. No que estavam quites: não havia cristo que botasse o
idioma italiano na cabeça dura do Negão.
Mas um dia... Ah, um dia as coisas mudaram de repente! Dona Gina tinha
entrado no banho e a torneira do chuveiro se soltou. Um jato de água saltava
forte do cano e Gina não sabia o que fazer. Vestiu uma coisa qualquer por cima
do corpo molhado e saiu correndo atrás de socorro.
Ora, o socorro vinha passando por ali: o Cosme, que retornava do bar
com o seu joguinho do bicho fechadinho na mão. Levava a maior fé que aquele
seria o seu dia de sorte: vai dar pavão
na cabeça, centena e milhar! Quando ouviu os pedidos aflitos de Dona Gina,
o mulato parou à porta do aposento dela e de Gennaro. Aí ele pirou!
A italianinha estava a bem dizer seminua, uma coisa que parecia um
lençol colado no corpo todo molhado, os cabelos lindos escorrendo água pelos
caracóis; e ela com uma pressa danada, chamando por ele:
–
Vieni con me! Vieni con me!
Cosme estremeceu. Ai, meu
Senhor do Bonfim é hoje! É hoje que eu faço uma loucura! Por um instante
ainda pensou em Gennaro, poço de ciúme. Mas aí olhou para aquela deusa que o
chamava lá do alto da escada, insistente, apressada:
– Anda, vá. Vieni con me!
Vieni con me!
Aí ele subiu correndo, dois em dois degraus, já sentido o calorão
subindo nas partes baixas. Quando passavam pela porta do quarto e o Negão viu a
cama de casal feitinha, limpinha, colcha branquinha, não perdeu tempo. Pegou a
italianinha de jeito, empurrou para dentro, arrancou o lençol do corpo dela e
embolou na cama com Miss Itália. Era, sim, o seu dia sorte!
Quer dizer, era pra ser...
No instante seguinte a italiana virou bicho. Começou a berrar uma
torrente de palavras naquele diacho de língua enrolada de gringa, levantou,
enfiou um vestido, puxou Cosme pelo braço, fazendo-o levantar e passou a lhe
desferir uma série de bofetadas na cara. Depois rodeou o baiano por trás,
passou-lhe a mão por debaixo da bunda e, agarrando aquela bola enorme que
morava na frente, torceu-a com força e foi empurrando o homem, que se retorcia
de dor, escada abaixo.
Quando estavam no meio da escada, a moça deu-lhe um empurrão com
toda força e fez Cosme levantar voo. Ao aterrissar, o Negão já estava cercado
por um bando de mulheres velhas e crianças que tinham acudido ao berreiro da
italianinha. Uma velha lhe deu uma vassourada, outra bateu na cabeça dele com
um pano de chão todo molhado, xingos mil. Na porta, quando conseguiu sair,
Cosme deu de cara com Seu Pafúncio, um português velho aposentado que morava no
cortiço também. Tentou se explicar, afinal o velho era um homem:
– Foi ela, eu juro! Foi ela que me convidou, estava com pressa, toda
molhadinha, me fazendo sinal pra entrar, depois pra subir com ela pro quarto,
repetindo sem parar:
– Vem me comer! Vem me comer! Anda, vai, vem me comer!
Aí o Seu Pafúncio fez sinal para a mulherada toda parar, inclusive a
furiosíssima Gina.
– Pera aí, ó gajas! Trata-se de um mal entendido. Esse ignorante
aqui não sabe nada de italiano, está-se vendo. Dona Gina, o que foi que a
senhora gritou para ele várias vezes?
As outras italianas traduziram a pergunta do português. Miss Itália
respondeu:
– Ma che cosa?! Bene...
Vieni con me! Vieni con me! Questo: Vieni con me!
Aí foi a vez de toda a mulherada, o português e as crianças caírem
na gargalhada, o que deixou a italiana e o baiano perplexos. Ali estavam
brasileiras, portuguesas e italianas que já falavam português há muito tempo.
Todas entenderam a baita confusão feita pelo Negão.
Seu Pafúncio enfim explicou para o brasileiro:
– Ó estrupício, na língua deles “Vieni
con me” quer dizer VEM COMIGO. Não quer dizer VEM ME COMER, seu pedaço
d’asno!
Enquanto isso as italianas velhas, sufocando a custo as gargalhas,
explicavam para a Miss Itália o que o baiano tinha entendido. O que foi o
suficiente para que a raiva da moça se transformasse instantaneamen-te em
vergonha. Ma come! Então os brasiliano tutti iam pensar que ela tinha convidado um homem pra “comer” ela?
Assim, de repente, na casa dela? Ah, mas quando o Gennaro ficasse sabendo
disso!...
Pois é, foi ai que o Seu Pafúncio, pensando justamente no Gennaro, terminou de oficiar como anjo da guarda, correu com Cosme
até o quarto do baiano e o ajudou a fazer e carregar as duas malas. Em coisa de
mais quinze minutos o homem se escafedeu do Braz, em duas horas de São Paulo,
em mais um dia já estava seguro, de volta à sua Salvador.
E é isso. Como dizia sempre o Cosme, depois dessa presepada paulistana:
– Diacho de língua mais complicada, sô! Diacho de língua mais
enrolada de gringo!...
Sem dúvida. E você? Quer aprender italiano?
– Bene... Vieni con me!
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