O QUE QUE ENTENDE MULHER DE
CAPAÇÃO DE TOURO?
MILTON MACIEL
A frase era terminal, certeira, incontestável. Com
ela liquidávamos com qualquer menina que quisesse dar opinião, fosse qual fosse
o assunto. Éramos fortes, éramos bravos, éramos machos gaúchos. Os tauras, os
baguais, os superiores!
Com essa frase magistral decretávamos que aquele
assunto em conversa extrapolava a limitada e pobre competência das mulheres:
era assunto de homem! Desde quando mulher sabia como é que um macho gaúcho capava
um touro? Sim capar, que era na verdade castrar, era um processo corriqueiro
nas fazendas, quando se removia os testículos de um bezerro para impedir que
ele crescesse como um macho inteiro, virando um touro. Emasculando-o, era ele
condenado a ser um boi apenas, mais dócil e de mais fácil engorda.
– O que que entende mulher
de capação de touro?
A frase era sempre pronunciada em voz bem alta, com
olhar de desprezo, afirmando nossa superioridade. Não deixávamos qualquer
dúvida e não dávamos margem a qualquer contestação. E as meninas acatavam,
murchavam, cumpriam seu papel de submissas. Afinal, que entendiam elas sobre o
processo de castrar um touro?
Mas nós mesmos, meninos de onze anos da primeira
série do então ginásio, animaizinhos já urbanizados, também não entendíamos nada de capação de touro! Nenhum de nós jamais havia pegado numa faca para abrir o
saco escrotal de um pobre bezerro manietado e extrair-lhe os testículos.
Incrível que, nunca, em momento algum, uma só daquelas meninas nossas colegas
tivesse contestado nossa pretensa competência no assunto. Nós éramos homens e
elas... bem, eram só mulheres. Ficava implícito que nós, como machos, devíamos
entender de capação de touro. E elas, como fêmeas, jamais seriam capazes de um
tal serviço de macho. Uma salutar reserva de mercado!
A César o que é de César, aos homens o que é dos
homens. E às mulheres? Bem, sempre haviam as bonecas. E a vassoura, o tanque, o
fogão, as fraldas e os absorventes. Parecia de bom tamanho, porque haveriam
elas de querer mais?
– Mulher tem cérebro de
galinha! As mais inteligentes, têm dois cérebros de galinha.
Assim o pai de um dos meus colegas de classe, um
médico renomado, definia a inteligência feminina. Fazia-o com laivos de
generosidade, admitindo a possibilidade da biencefalidade galinácea de algumas
mulheres, um pouquinho menos tapadas do que as outras.
Nós, os guris do ginásio da Fronteira gaúcha,
ficávamos extasiados com aquela demonstração de superioridade masculina, vinda
de um homem de cinqüenta anos, uma autoridade inconteste, um médico! E saíamos
trombeteando a frase do doutor, para alegria dos outros meninos e para
chateação de todas as meninas que encontrássemos.
Como afirmava o médico ilustre, mulheres eram seres
de inteligência limitada, os homens eram mesmo superiores intelectualmente.
Mesmo que pudessem contar com dois cérebros de galinha, as meninas mas espertas
jamais nos alcançariam.
Hoje, 2009, olhando para trás tantas décadas, mal
consigo distinguir onde toda aquela babaquice começou. O mundo mudou graças às
mulheres que ousaram mudar o mundo. Fizeram-no com determinação e coragem e sem
medir sacrifícios. Tive o prazer e o encanto de conhecer e conviver com
mulheres inteligentíssimas, verdadeiras líderes e pioneiras nos mais diversos
campos da atividade humana, da ciência à arte – a maior parte dos quais
pertencia até então à tal ‘salutar reserva de mercado’ masculina.
E sabe o que? Nenhuma
delas entendia de capação de touro. Muito menos eu, graças a Deus!
Então fui forçado e me perguntar e a investigar: Como
é que nós, meninos, podíamos ser tão babacas? E como é que elas, meninas,
podiam ser tão tontinhas?
Ora, hoje é fácil responder: Machismo! Exatamente por
causa do machismo, esse filho degenerado de gênio hirsuto, esse aleijão brotado
do ventre da revolução agrícola do Neolítico.
Sim, agora é muito fácil entender o que aconteceu
comigo e com meus coleguinhas de ginásio, entender que nada disso começou ali
na nossa infância, mas veio de muito antes. Desde a mais tenra infância, diriam
muitos. Desde o berçário, garantiriam outros. As pessoas mais ousadas
afirmariam: desde o ventre da mãe.
Mas todos estariam erradas. A força devastadora que
nos ensinou que as mulheres eram inferiores era velha de mais de 10 000 anos.
Era uma força ARQUETÍPICA! Uma força solidamente
implantada, ao longo de milênios de sociedade patriarcal machista, no
inconsciente de cada um e no de todos nós – o Inconsciente Coletivo.
Como não sermos todos nós, meninos e meninas,
atingidos e esmagados por esse rolo compressor? Nós, machos, tínhamos que ser
fortes, bravos, brigões, exibicionistas, egoístas, brilhantes e autoritários.
Elas, as femeazinhas, tinham que se acomodar a seus papéis submissos, lunares
de Grandes Mães, coquetes de Afrodites. Ou seja, estávamos condenados a sermos perpetuamente
infelizes nos nossos relacionamentos. Todos nós. E até hoje!
Porque esta parte, que chamo de Machismo Oculto,
escondido no mais recôndito do nosso inconsciente... bem essa parte pouco mudou:
arquétipos não se transmutam em apenas poucas décadas de transformação social.
Uma luta con-
(Pequeno excerto do capítulo O MACHISMO OCULTO, do livro A BELA MORDE A FERA - Ellen Snortland e Milton Maciel, IDEL, 2009)
A foto ilustra como as coisas mudaram, sinal dos tempos: Aqui vemos o flagrante de uma MULHER (está é uma zootecnista) CASTRANDO UM BEZERRO. Agora mulher entende até de capação de touro: LÁ SE FOI O NOSSO GRANDE ARGUMENTO!
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