A PEQUENA PROSTITUTA
MILTON MACIEL
Av. Robert Kennedy, a beira-mar da praia de Ponta
Verde, Maceió – 1999. O último de meus quatro anos em Alagoas, onde assumi uma
Secretaria de Agricultura. Paro meu carro num sinal. Uma mãozinha pequena bate no
vidro, do meu lado.
Dou esmolas por princípio, sempre tenho notas no
carro para isso (Desde 2011 faço isso aqui em Miami também, onde – sinal dos novos tempos
– não é mais incomum encontrar pedintes nos sinais: os homeless, os desempregados e os veteranos de guerra, geralmente com
sérios problemas mentais).
É uma menina pequena, franzina. Ela bate no vidro e
me faz um sinal que decodifico como sendo para eu parar: a mãozinha aberta,
mostrando todos os dedos estendidos. Baixo o vidro, dou-lhe uma nota de 2
reais. Ela faz sinal com a cabeça que não. Então escuto a frase que vai mudar minha vida para sempre:
– Tio, me
queira. Por favor! To com fome... Eu cobro só CINCO.
Então a brutalidade da compreensão me entra mente adentro:
a mãozinha espalmada mostrava o preço do programa: cinco reais! Cinco reais
para vender seu corpinho que, vim a saber pouco depois, tinha só DEZ anos de vida!
Fecho-lhe então a pequena mão, agora com uma nota de
dez dentro, e lhe digo, disfarçando o nó na garganta:
– Se você está com fome, vá comer. E levanto o vidro,
restaurando o ar condicionado, para que ela entenda que não quero o programa.
O sinal abre enfim e eu a observo pelos dois
retrovisores. Ela corre, pula, grita algo para o rapaz que atendia na barraca
de praia ao lado do sinal. Meu espírito de escritor me faz parar bruscamente.
Desço, falo com o guarda ali perto, peço-lhe cinco minutos de carro mal
estacionado, é uma emergência. Ele concede.
Sento na barraca seguinte à da menina, meio escondido
por uma coluna de madeira. Observo-a. Vejo que ela pede comida e refrigerante,
vejo-a comer avidamente, desesperadamente. É verdade que estava com fome! Mas
noto algo estranho também. Ela tem uma bolsa sobre o colo e, a cada vez que o
rapaz atendente lhe volta as costas, ela joga algo, que parece com a comida que
tem no prato, dentro da bolsa.
Prato esvaziado, garrafa também, a menina dá ao rapaz
a nota de dez e espera pelo troco. Sai outra vez pulando, agora num pé só, como
uma criança. Mas volta ao “ponto”. Param outros carros no sinal, ela anda pelo
calçadão junto a eles, bate nos vidros outra vez. O terceiro carro que ela
aborda, com sua mãozinha espalmada, abre-lhe a porta de trás. E ela entra, vai
mais uma vez fazer seu trabalho humilhante, desesperado, sofrido, cruel.
Vou ao guarda, excedi em muito meus cinco minutos,
explico-lhe francamente o que quero. Ele me dá uma força, diz para eu ir em
frente. Então vou à barraca onde a garota comeu e converso com o rapaz.
Peço-lhe que me informe sobre a menina. Por sorte ele havia prestado atenção
quando ela me abordou e lembrava bem de mim, foi solícito.
Assim fiquei sabendo que a criança tinha só dez anos
e que se “virava” naquele sinal umas três vezes por semana. Então perguntei ao
moço se ele havia notado que ela jogava comida na bolsa sobre o colo, enquanto
comia. Ele fez sinal que sim. Apresentei-lhe minha brilhante conclusão:
– Ela leva comida para comer mais tarde, não é? Só não
sei por que o faz escondida.
– Mais tarde o
que, seu moço! Eu me viro de costas a toda hora porque ela tem vergonha, faço
que não vejo. Mas ela leva comida é pros IRMÃOZINHOS dela. Tem mais quatro em
casa e só ela é que garante a bóia pra todos. A mãe é variada, lesa das idéias,
num sabe? Some no mundo e as crianças... Vixe!
Eu não podia saber, mas naquele momento estavam
nascendo meus romances sobre prostituição infantil. No livro “A Espera e a
Noivinha”, coloquei as mesmas palavras da menina de Maceió na boca de outra
criança da mesma idade, Ritinha, com a cena ambientada na cidade de Barbalha,
no Ceará, localidade que conheci quando, consultor do SEBRAE no Nordeste, dei
consultoria a engenhos de açúcar em várias áreas rurais da região.
Nunca mais soube da menina, embora tenha passado a
prestar muita atenção àquele sinal da Ponta Verde. Por alguma razão, ela mudou de
‘ponto’. Pouco depois acabou meu mandato e voltei para o Sul, desta vez não
para São Paulo, mas para Santa Catarina. E foi ali, na praia da Enseada, em São
Francisco do Sul, e em Joinville, que nasceram meus livros sobre a saga das
meninas prostitutas em Sergipe, Alagoas, Ceará e nos garimpos do Pará. Dentro
do gaúcho da fronteira que retornava ao Sul, vinha inteiro o Nordeste, que
aprendi a respeitar e amar profundamente.
Mas eu estava inteiramente impregnado, indelevelmente
marcado por uma mãozinha espalmada, sinalizando um preço absurdo em todos os
sentidos. E por uma vozinha suave, tímida, quase sussurrada, inesquecível, que
me disse:
– Tio, me
queira. Por favor! To com fome... Eu cobro só CINCO.
Bendita hora em que eu aprendi, anos antes, que devia
dar esmolas! (MM)
Miami, Fev 10 2012
E nada se faz para mudar este quadro. Estão matando a infância. Que dizer dos estrupros de indefesos; mais comum do que se pensa? Todos se fingem de cegos!
ResponderExcluirHoje 11 /02/2020 parece que a situação só piorou, com um aumento muito grande da prostituição infantil e nossos políticos a fazer vista grossa
ResponderExcluirHoje 11 /02/2020 parece que a situação só piorou, com um aumento muito grande da prostituição infantil e nossos políticos a fazer vista grossa
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