sábado, 11 de abril de 2015

O POETA E O GUASCA – 6ª. parte  
MILTON MACIEL    (Figura: Alfred de Musset)
............................................ 
“Que nada, meu companheiro,
Eu sou é um grande chorão!
E a dor no meu coração
Eu berro pro mundo inteiro.
Eu confesso pra você:
Sou um Alfred de Musset!”

VI

“Outro Alfredo, meu patrão?
Também é poeta francês?
Ou quem sabe ele é talvez,
Poeta de outra nação?
Esse Alfredo Demissê
É bueno também por quê?”

“Sim, ele é francês também,
Poeta famoso e muito bom,
Mas verseja em outro tom,
Que, acho eu, não lhe convém.
Esse é um chorão como eu,
Mas nada ruim lhe aconteceu.”

A vida lhe foi mais mansa
Que a do outro Alfred poeta,
Quase uma festa completa,
Dessas que você não cansa.
Até a morte lhe sorrindo,
Pois ele morreu dormindo.

Mesmo assim foi um chorão,
Como se muito sofresse,
Sobre ele se abatesse
A desgraça, a solidão.
A causa do seu final?
Foi a bebida o seu mal.”

“Bueno, patrão, eu entendo
O que hay com certas pessoas:
Elas no fundo são boas,
Mas na vida vão sofrendo.
Sofrem mais com a realidade.
Têm mais sensibilidade.

A mesma dor que pra uns
É como um talho de facão,
Prá outros é só um beliscão,
Como as coisas mais comuns.
Estes soltam menos ais.
E aqueles... gemem demais.”

“Essa é a grande diferença
Entre Vigny e Musset.
Ora, certo está você,
Pra Musset a dor é imensa.
Musset sempre se atormenta,
E o estóico Vigny aguenta.

Deixe então eu lhe mostrar
A poesia de Musset,
Depois me diga você
O que ela lhe faz pensar.
Veja só este poema,
Gritar a dor é seu tema:

“Quel que soit le souci que ta jeunesse endure,
Laisse-la s'élargir, cette sainte blessure
Que les noirs séraphins t'ont faite au fond du cœur:
Rien ne nous rend si grands qu'une grande douleur.
Mais, pour en être atteint, ne crois pas, ô poète,
Que ta voix ici-bas doive rester muette.
Les plus désespérés sont les chants les plus beaux,
Et j'en sais d'immortels qui sont de purs sanglots. »

Deixe que eu traduza agora,
Fazendo uma adaptação,
Que agilize a compreensão
Pra quem é aqui de fora.
(Traduzir ao pé da letra
Nos leva a muita falseta):

“Seja qual for o tormento que tua juventude suporta,
Deixa-a que se alargue, essa santa ferida
Que os negros serafins te fizeram no fundo do coração:
Nada nos torna tão grandes como uma grande dor.
Mas, sendo por ela atingido, não creias, ó poeta,
Que tua voz aqui embaixo deva permanecer muda.
Os mais desesperados são os cantos mais belos,
Conheço deles imortais que são puros soluços.”


CONTINUA 2a. feira               Figura: Alfred de Musset

sexta-feira, 10 de abril de 2015

O POETA E O GUASCA - 5a. Parte  
MILTON MACIEL   (ilustração: Alfred de Vigny)

Não chorar, nem escondido,
E engolir toda sua mágoa;
Não ter olhos rasos d´água,
Se o coração foi partido.
O que é que temos aqui?
Um Alfred de Vigny?

V

Ué, meu patrão, quem é esse,
O tal de Alfredo Devinhí?
Que ele nunca veio aqui,
Não conheço, me parece...
Pelo jeito é estrangeiro,
Não tem nome brasileiro."

"E tem razão, meu amigo,
É da França e um grande poeta.
Tenho sua obra completa,
Que trago sempre comigo.
Veja só este livro aqui:
é de Alfred de Vigny.

Observe este texto aqui,
Parece você quem o fez.
Primeiro eu leio em francês,
Depois traduzo de vez:


Quand on voit ce qu'on fut sur terre et ce qu'on laisse,
Seul le silence est grand; tout le reste est faiblesse.
 (Alfred de Vigny, 1797 - 1863)

Quando vemos o que fomos na terra e o que se deixa,
Só o silêncio é grande; todo o resto é fraqueza.”

"Cuepucha, patrão, que lindo!
Bonito barbaridade...
E o que ele diz é verdade.
Não se deve andar caindo
Pelos cantos, como um fraco,
Que é mais embaixo o buraco.

Pois é: ‘O silêncio é grande
E todo o resto é fraqueza!’
Pra mim isso é fortaleza
De um macho que se garante.
Esse tal francês De Vigny
Seria mui bem-vindo aqui.”

“Pena que o homem nasceu
Há mais de duzentos anos.
Viveu sérios desenganos,
De um brabo câncer morreu.
Porém nunca se queixou,
Tudo firme ele aguentou."

H
oje, ouvindo o seu cantar
Foi dele que me lembrei.
E foi também o que achei
Por seu modo de falar:
Nós temos no pampa, aqui,
Outro Alfred de Vigny.”

“Quem me dera, meu bom patrão
Ser poeta como esse aí!
Desse Alfred de Vigny,
Só tenho a disposição.
E o senhor, na sua poesia
Tem a mesma valentia?”

“Que nada, meu companheiro,
Eu sou é um grande chorão!
E a dor no meu coração
Eu berro pro mundo inteiro.
Eu confesso pra você:
Sou um Alfred de Musset!”

CONTINUA AMANHÃ

quinta-feira, 9 de abril de 2015

O POETA E O GUASCA - Parte 4  
MILTON MACIEL
.......................
...São versos de apaixonado,
Uma beleza completa!
Por favor, quem é o poeta?”

“Bueno, poeta não tem não,
Que é verso de índio xucro.
Mas tô saindo no lucro
Se lhe agrada à compreensão,
Já que o autor desse embrulhado
É aqui este seu criado.”

IV

"Não seja modesto, amigo
Que eu conheço bem do assunto
E, com você aqui junto,
Fica mais sério o que digo.
Sou Álvaro Souza Dutra,
Doutor em Literatura."

O gaiteiro estende a mão
a do outro tomando inteira:
“Sou um guasca da fronteira
Pra lhe servir, meu patrão.
Um campeiro de boa paz,
Da fazenda, o capataz.”

“Mas me diga, por favor,
O que é que você cantava
Enquanto sua dor tocava:
Eram seus males de amor?
Se achar que sou indiscreto,
Nada diga de concreto.”

“Bueno, eu lhe peço perdão,
De normal sou reservado.
Sou um tipo mui calado,
Não mostro a minha emoção.
E quando eu cantei aquilo,
Pensei que estava solito.

Se sofro, eu sofro comigo,
A minha dor não divido.
Tento não soltar gemido
E isso eu sempre consigo.
Pode doer, que sigo em frente,
Calado, firme e silente.

O sofrimento que trago
Não logra me derrubar
E tendo que continuar,
A própria dor eu esmago.
É assim, patrão, que eu acho
Que deve sofrer um macho.”

“Meu caro amigo gaúcho
Eu estou impressionado.
Como um poeta apaixonado
Consegue se dar ao luxo:
Não expor seu sofrimento
No mais agudo lamento?

Não chorar, nem escondido,
E engolir toda sua mágoa;
Não ter olhos rasos d’água
Se o coração foi partido.
O que é que temos aqui?
Um Alfred de Vigny?”

CONTINUA AMANHÃ

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O POETA E O GUASCA - 3a. parte
MILTON MACIEL
.........................
De vanguarda, sua poesia,
Que tantos prêmios lhe dera
Parecia uma quimera
Ante aquela nostalgia.
No guasca o emocionava
A dor que comunicava.

Ansioso por conhecê-lo
Esperou que o som parasse,
Que a voz do guasca calasse
E que ele pudesse vê-lo.
Pediu que entrasse o gaúcho
No seu ambiente de luxo.

                   III

Rogou-lhe: “Traga a sanfona,
Entre que aqui está quentinho”.
O guasca entrou de mansinho,
Trazendo sua cordeona:
“Puxa, doutor da cidade,
Tá quente barbaridade!”

Tirou chapéu e casaco,
Sentindo a falta da brisa.
Quase que tira a camisa,
Já suando no sovaco.
Só não o fez por respeito,
Por se comportar direito.

O outro, todo entrouxado,
Mostrava que frio sentia,
Mas cordialmente sorria
Pra seu novo convidado:
“Você é bom acordeonista
E canta como um artista.”

“Bondade sua, meu patrão!
Sou só um guasca da campanha
Que menos toca que arranha,
Lhe dando a falsa  impressão.
E que cantar? Canto nada!
Voz de taquara rachada!”

“Não é verdade, por favor!
Você é um artista completo.
E esse seu falar direto
Me impressionou, sim senhor!
Os versos lindos, de trova,
De sua dor a maior prova,

Me deixaram extasiado
Por sua simplicidade.
Me tocaram de verdade.
São versos de apaixonado,
Uma beleza completa!
Por favor, quem é o poeta?”

“Bueno, poeta não tem não,
Que é verso de índio xucro.
Mas tô saindo no lucro
Se lhe agrada à compreensão,
Já que o autor desse embrulhado
É aqui este seu criado.”

CONTINUA AMANHÃ

terça-feira, 7 de abril de 2015

O POETA E O GUASCA – 2a. parte 
MILTON MACIEL 

Agora canta o gaiteiro
E os versos que ele entona,
Ao som de sua cordeona,
São um poema verdadeiro.
E eis que o Poeta se encanta
Com o que o gaúcho canta.

“Tirana do meu desejo,
Guria do meu encanto,
Ó deusa do meu espanto,
Quanto faz que não te vejo?!
Por falta de ti, guria,
Morro um pouco a cada dia”

“Lembra do dia da dança
Quando eu disse o meu amor?
Pois ali, sem tirar nem por,
Tu não me deste esperança!
Desde então, apaixonado,
Vivo triste, abichornado.”

“Foste embora pra cidade
Cuidar da tua carreira
Me deixaste, sorrateira.
Mas tenho dignidade:
Minha dor, desde o começo,
Só à sanfona confesso.”

O poeta ouvia, extasiado,
Aquela simplicidade!
Os seus versos de cidade
Eram um emaranhado
De construções tão complexas
Que eram soltas, desconexas.

De vanguarda, sua poesia,
Que tantos prêmios lhe dera
Parecia uma quimera
Ante aquela nostalgia.
No guasca o emocionava
A dor que comunicava.

Ansioso por conhecê-lo
Esperou que o som parasse,
Que a voz do guasca calasse
E que ele pudesse vê-lo.
Pediu que entrasse o gaúcho
No seu ambiente de luxo.

CONTINUA AMANHÃ

segunda-feira, 6 de abril de 2015

O  POETA E O GUASCA 
MILTON MACIEL 

O pampa gaúcho. Ali, na noite ao relento, um gaiteiro toca e canta seus próprios versos, sem perceber que é ouvido por um poeta carioca, hóspede da fazenda, que tirita de frio em frente à lareira da sala da casa grande. O diálogo entre esses dois homens, que comentam seus amores e desventuras, incluindo aí poetas franceses como Alfred de Vigny e Alfred de Musset, é o tema deste poema chucro campeiro, um pouco mais longo que o comum.

                 I
Em noite de lua nova
Dois homens o céu contemplam.
E enquanto as nuvens se ausentam,
Um guasca compõe sua trova.
E o fole da gaita puxa,
Em suave toada gaúcha.

Ali, exposto ao relento,
Sobre a cabeça o sereno,
O guasca acha o frio ameno
E não se importa com o vento.
No chão a tralha gaúcha:
Facão, guaiaca e garrucha.

Os dedos sobre a cordeona
O céu com miles de estrelas,
O guasca, encantado, a vê-las
Por todas se apaixona.
E pensa em sua gaúcha,
Mistura de fada e bruxa.

Ali, bem perto, na casa
Olhando pela janela
Outro homem pensa nela,
Por ela também se abrasa.
É um hóspede da cidade,
Poeta bom barbaridade!

Diz que o homem tem fardão
De uma tal de Academia,
De tão bom que é na Poesia!
Mas sofre com a situação:
Morde-lhe o frio, qual cruzeira,
Pois treme em frente à lareira.

Mesmo assim vai à vidraça,
A chamá-lo o firmamento.
E o sublime do momento
É tanto... que até o frio passa!
É quando ouve a voz chorona,
Que vem de uma cordeona.

Mal entreouve a melodia
Mas parece tão bonita,
Que sua alma fica aflita
E lhe inspira a ousadia:
Correa vidraça de lado,
Vergasta-o o ar gelado!

Mais que homem, ele é Poeta,
É a Beleza o que o inspira.
E o ar gelado que aspira
Não intimida o esteta.
Bebe a melodia triste:
“Deus, é a mais bela que existe!”

Agora canta o gaiteiro.
E os versos que ele entona,
Ao som de sua cordeona,
São um poema verdadeiro.
E eis que Poeta se encanta
Com o que o gaúcho canta.

“Tirana do meu desejo,
Guria do meu encanto,
Ó deusa do meu espanto,
Quanto faz que não te vejo?!
Por falta de ti, guria,
Morro um pouco a cada dia”

CONTINUA AMANHÃ

quarta-feira, 1 de abril de 2015

POEMA DE OUTONO   (Celebrando a estação)
MILTON MACIEL  

Tomba a folha mansamente, em seu último suspiro,
rutilante em tons de rubro, de um brilho adamantino.
Despede-se da luz, do bosque ‘inda verde, do retiro
em que viveu sua vida e onde cumpriu o seu destino.

Vezes sem conta tragou sol, regurgitando oxigênio,
como fazem sempre as folhas, milênio após milênio.
Generosa supriu flores, frutos, ramos, troncos, galhos,
Até fazer de sua árvore o mais frondoso dos carvalhos.

Mas então o inevitável: eis que seu ciclo terminou
e a folha, agora velha, foi perdendo a serventia.
Foi-se o verde, escureceu, perdeu seiva, ressecou.
E então, se desprendendo, alcançou o último dia.

Suave flutuou ao vento, tão tranquila a trajetória,
e chegou serena ao chão, encerrando sua história.
Estendeu-se feliz: era o final, missão cumprida;
Olhou pro céu, sorriu... e despediu-se desta vida.