sexta-feira, 19 de janeiro de 2018


A MORTE MORA AO LADO
MILTON MACIEL
Capítulo V do livro  GUERRA DE JACQUES, de M. Maciel, Daniel e João C. Miedzinski.

          Quando o bombardeio cessou por completo, os caminhões retomaram sua marcha e se dirigiram, cada um, ao seu respectivo destino. Dentre as centenas de prisioneiros recém-chegados a Essen, alguns grupos foram levados para campos de trabalho, enquanto que outros partiram para descarregar sua carga humana em campos de concentração adjacentes. Os veículos com os franceses, um total de seis caminhões com cerca de duas centenas de trabalhadores “voluntários”, tiveram destino diferente. Foram levados para um alojamento precário, porém melhor que os campos de concentração. Seriam instalados num antigo galpão industrial, nas imediações de uma das aciarias da Krupp.
           Ao redor do alojamento, no amplo terreno, Jacques pôde ver as altas cercas de arame farpado, feitas de fios muito grossos e muito próximos uns dos outros. Havia diversas torres de vigia, do alto das quais os guardas armados de fuzis e metralhadores ficavam o tempo todo em vigilância, com o apoio de potentes holofotes que varriam toda a instalação. Do lado de fora das cercas, pequenos destacamentos de soldados revezavam-se em marcha normal. Provavelmente qualquer tentativa de fuga resultaria em morte imediata para os incautos.            
         Ao chegar, os homens foram levados para seus dormitórios coletivos, que tinham lugar para trinta camas cada um. Deixaram sobre elas as suas trouxas, com seus escassos pertences, e foram encaminhados para os chuveiros de água fria, onde puderam banhar-se finalmente, o que agradou bastante a Jacques, mas não teve o mesmo efeito sobre muitos dos franceses. Passaram então para um amplo refeitório onde devoraram, famintos que estavam, a insossa comida alemã com a qual teriam que se acostumar dali em diante.

         – Grand Dieu! – exclamou Luc Trintignant, indignado – Isso é lavagem de porcos!
          Jacques lembrou-se do que tinha compreendido horas atrás, conversando no caminhão com o Tenente Schadeck, e respondeu ao francês:
          – Mas nós, os porcos, vamos poder comer o suficiente todos os dias, Luc. Agradeça. Os outros, nos campos de concentração aqui perto, vão passar fome, ganhar migalhas até morrer. Pelo menos a gente vai poder sobreviver. Pense nisso. Coma essa comida como se fosse a ambrosia dos deuses, pois vai ser a diferença entre a vida e a morte para nós. Pode ter certeza.
           Luc baixou a cabeça e começou a comer lentamente, as lágrimas caindo grossas de seus olhos sobre o prato.... Enquanto comia, Jacques se lembrava da comida que era servida no restaurante em que trabalhava em Bruxelas. Mas, como ele próprio dissera sempre: “guerra é guerra”.

          Logo depois da magra refeição que lhes foi servida, todos foram conduzidos para os dormitórios e se deitaram imediatamente, pois já era muito tarde e o dia havia sido longo e extenuante. As luzes foram apagadas e quase não houve conversa, poucos estavam inclinados a falar alguma coisa. Finalmente começavam a tomar consciência da realidade desesperadora da situação em que se encontravam. 
         Ainda no início daquele dia, eram cidadãos livres em seus respectivos países. Tinham seus trabalhos, suas famílias, seus amores, suas esperanças. Menos de 24 horas depois, haviam se tornado escravos condenados ao trabalho forçado em uma terra estrangeira, sob o jugo perigoso de soldados inimigos, expostos aos bombardeios dos aviões aliados, que os poderiam exterminar como insetos de um momento para o outro.   
           Naquela noite quase ninguém teve sono, por maior que fosse o cansaço, Jacques percebeu. Com mais de vinte homens a seu redor, cada um daqueles míseros prisioneiros estava se sentindo completamente sozinho, ilhado, perdido. Não havia sequer com quem confidenciar seu pesar. O companheiro do leito ao lado finava-se no mesmo sofrimento, esvaía-se na mesma dor. Pela madrugada adentro ouviu-se um murmurar sem fim, dezenas de pessoas se revirando nas camas, suspiros, gemidos e, por mais que tentassem escondê-lo, o choro engolido de muitos daqueles homens acabou sendo ouvido por quase todos.  

          Jacques também mergulhou na angústia de sua própria situação, em tudo similar à dos franceses. Mas, ao mesmo tempo, sabia que possuía algo que o deixava em uma posição um pouco melhor que as dos outros. Em primeiro lugar, ele era o tradutor do grupo. Os alemães precisavam dele para se comunicar com os franceses e com os poucos técnicos holandeses, que tinham sido praticamente raptados da fábrica de lâmpadas em seu país. E os prisioneiros também precisavam dele, o que o fazia naturalmente o porta-voz de todos eles ante os nazistas. E isso significava certamente uma posição de maior segurança para ele. E também detinha uma certa ascendência sobre eles e sobre os próprios alemães.
          Saberia se comportar como um representante dos oprimidos, ao mesmo tempo que se esforçaria para manter a melhor relação possível com os opressores. Naquele momento, percebia que se representasse bem o seu papel, não só a sua situação seria privilegiada, mas, principalmente, ele poderia de várias formas procurar minorar os seus sofrimentos e os de seus colegas franceses e holandeses. Em segundo lugar, tinha algo ainda mais importante, algo que nem os alemães com suas metralhadoras, nem os aliados, com suas bombas poderiam tirar-lhe jamais.

          Tinha o seu amor por Marie Louise. Isso o fazia diferente. E forte! Sim, porque isso lhe dava uma razão enorme para ficar vivo e voltar para casa.  Ali, imóvel em sua cama, de olhos abertos no escuro, foi sentindo sua tensão diminuir, enquanto monologava: 

Não, não importa se eu tenho o amor dela ou não. É possível que o tenha, quem sabe. Mas o importante é o amor que eu tenho por ela. É esse amor que me faz querer continuar vivo e resistir a qualquer desgaste ou sacrifício

Lembrou-se de um trecho de um poema, sem lembrar quem era o autor:

"Para que saber se amado sou ou não,
se o que conta é somente o amor que eu sinto,
que me guia como um fio num labirinto
que extrapola a própria lógica e a razão.

É um amor imune ao Tempo que se arrasta,
É um amor que vence o Não e a Vida exorta.           
“Sou amado? Sim. Talvez. Ou não. Que importa? 
Que importa, seu EU amo, isso é tudo o que me basta." 

"Que importa a distância. 
Se para ter você aqui é só fechar os olhos. 
Então vejo seu rosto, vejo você inteira. 
E sinto até o seu perfume”.

A lembrança e a compreensão do significado do poema o fizeram ainda mais forte:
Não, não estou só, eu tenho você aqui comigo. Dentro de mim. Então que venha a Alemanha, que venha Essen, que venha a Krupp e o que mais vier. Eu sobreviverei! E voltarei para você. Então nada mais poderá nos separar. Vamos viver juntos pelo resto das nossas vidas. Eu juro!

          A doce lembrança da figura serena de Marie Louise a envolvê-lo, seus olhos de um azul intenso, seus cabelos castanho-dourados, seu perfume de rosas, a certeza de que algum dia voltaria para ela, infundiram-lhe uma tal serenidade, uma calma tão grande, que Jacques foi o primeiro naquele alojamento a dormir profundamente até que o toque estridente da corneta os despertasse a todos, às 5 horas da manhã do dia seguinte. O primeiro dia de trabalho em seu cativeiro.
          Estavam todos no refeitório, para o café da manhã, quando ouviram o matraquear muito próximo de uma metralhadora. Muitos chegaram a se assustar. A maior parte deles, no entanto, apenas olhou para os lados, interrogativa. Depois do brutal batismo de fogo do bombardeio na noite anterior, o pipocar de metralhadora parecia, de fato, muito pouco. Mas o cozinheiro, que ajudava servir e controlar as mesas, explicou para Jacques, que sabia ser o único a entender alemão:
          – É no campo de concentração, aqui ao lado. Mais um infeliz foi executado, com certeza. Vocês não sabem a sorte que têm, estando aqui neste acampamento. Vocês são material de interesse de Herr Von Krupp, estão mais protegidos. Os outros, no campo ao lado, vão morrendo pouco a pouco como insetos que são exterminados.
          – Muitos? – arriscou Jacques.
       – Quase todos, intérprete. É só uma questão de tempo. Pouco tempo, aliás. Esses aí não trabalham em coisas que exijam muita inteligência ou formação. Fazem só trabalho braçal nas tarefas do campo. Junto com eles tem outros que vieram apenas para serem eliminados. São alemães dissidentes do regime, comunistas, ciganos, homossexuais e também russos e judeus. Principalmente judeus. Todos são considerados raças inferiores. Portanto, não se assustem com tiroteios do lado de lá da cerca. Não são tiroteios, são fuzilamentos. Volta e meia um pobre diabo dá adeus a esta vida e se livra do pior, que é viver ali.
          – E é verdade que a comida deles é muito pouca?
     – Pouca? É quase nada, belga, rações mínimas. É tudo pensado para debilitar os caras e economizar o dinheiro do Reich. E a qualidade então! Vocês podem se queixar aqui da minha comida, mas isto aqui é um restaurante de luxo perto do que dão para aqueles lá.
          Quando se levantaram para sair para a fábrica, Jacques conseguiu dar uma rápida olhada pela ampla janela do refeitório. Lá embaixo, a cerca de setenta metros de distância do alojamento, divisou o sinistro campo de concentração a que se referiu o cozinheiro. Este tipo de instalação era bastante comentado na Bélgica, mas poucos conheciam o seu funcionamento e as atrocidades que nele se perpetravam. Era constituído por conjuntos de dezenas de barracões enormes e compridos, que pareciam ter sido construídos apenas com tábuas, rapidamente e de forma provisória, do modo mais precário possível.
          Ficava em meio a um enorme campo cercado por fios de arame farpado; e estava todo enlameado em razão da chuva e da neve derretida de início de inverno. A cada 50 metros era encimado por altas torres de observação, munidas de potentes holofotes e com guardas armados apontando suas metralhadoras para baixo. Cada bloco parecia ter uma dimensão suficiente para abrigar uns 150 detentos. E, ao que parecia, não deveria haver mais de uma latrina para os detentos de cada bloco, havendo apenas a pequena casinha instalada em uma extremidade.

          Naquele local de sinistro aspecto, grupos de homens com uniformes listrados, com números às suas costas ao invés de nomes, marchavam lentamente, tangidos por guardas também armados de metralhadoras, acompanhados por cães pastores alemães aparentemente nada amistosos. Os judeus do campo eram facilmente reconhecíveis, pois portavam um triângulo amarelo que os identificava claramente. A intenção de todo este esquema não podia ser mais explícita! Então aqueles eram alguns dos “pobres diabos” mencionados pelo cozinheiro. Comparado com o que havia visto no campo ao lado, o alojamento onde estavam parecia um hotel cinco estrelas!  Que Deus ajudasse seus companheiros judeus do trem para que não os tivessem mandado para algo semelhante.

A GUERRA DE JACQUES - 408 pg. Idel, Dez 2017. Disponível nas grandes redes:
Amazon - Americanas - SosPresentes - Cultura 

Nenhum comentário:

Postar um comentário