A MORTE MORA AO LADO
MILTON MACIEL
Capítulo V do livro GUERRA DE JACQUES, de M. Maciel, Daniel e João C. Miedzinski.
Quando o bombardeio cessou por completo, os caminhões retomaram sua
marcha e se dirigiram, cada um, ao seu respectivo destino. Dentre as centenas
de prisioneiros recém-chegados a Essen, alguns grupos foram levados para campos
de trabalho, enquanto que outros partiram para descarregar sua carga humana em
campos de concentração adjacentes. Os veículos com os franceses, um total de
seis caminhões com cerca de duas centenas de trabalhadores “voluntários”,
tiveram destino diferente. Foram levados para um alojamento precário, porém melhor
que os campos de concentração. Seriam instalados num antigo galpão industrial,
nas imediações de uma das aciarias da Krupp.
Ao redor do alojamento, no amplo
terreno, Jacques pôde ver as altas cercas de arame farpado, feitas de fios
muito grossos e muito próximos uns dos outros. Havia diversas torres de vigia,
do alto das quais os guardas armados de fuzis e metralhadores ficavam o tempo
todo em vigilância, com o apoio de potentes holofotes que varriam toda a
instalação. Do lado de fora das cercas, pequenos destacamentos de soldados
revezavam-se em marcha normal. Provavelmente qualquer tentativa de fuga
resultaria em morte imediata para os incautos.
Ao chegar, os homens foram levados
para seus dormitórios coletivos, que tinham lugar para trinta camas cada um.
Deixaram sobre elas as suas trouxas, com seus escassos pertences, e foram
encaminhados para os chuveiros de água fria, onde puderam banhar-se finalmente,
o que agradou bastante a Jacques, mas não teve o mesmo efeito sobre muitos dos
franceses. Passaram então para um amplo refeitório onde devoraram, famintos que
estavam, a insossa comida alemã com a qual teriam que se acostumar dali em
diante.
– Grand
Dieu! – exclamou Luc Trintignant, indignado – Isso é lavagem de porcos!
Jacques lembrou-se do que tinha
compreendido horas atrás, conversando no caminhão com o Tenente Schadeck, e
respondeu ao francês:
– Mas nós, os porcos, vamos poder
comer o suficiente todos os dias, Luc. Agradeça. Os outros, nos campos de
concentração aqui perto, vão passar fome, ganhar migalhas até morrer. Pelo
menos a gente vai poder sobreviver. Pense nisso. Coma essa comida como se fosse
a ambrosia dos deuses, pois vai ser a diferença entre a vida e a morte para
nós. Pode ter certeza.
Luc baixou a cabeça e começou a comer lentamente, as lágrimas caindo grossas de
seus olhos sobre o prato.... Enquanto comia, Jacques se lembrava da comida que era
servida no restaurante em que trabalhava em Bruxelas. Mas , como
ele próprio dissera sempre: “guerra é guerra”.
Logo depois da magra refeição que
lhes foi servida, todos foram conduzidos para os dormitórios e se deitaram
imediatamente, pois já era muito tarde e o dia havia sido longo e extenuante.
As luzes foram apagadas e quase não houve conversa, poucos estavam inclinados a
falar alguma coisa. Finalmente começavam a tomar consciência da realidade
desesperadora da situação em que se encontravam.
Ainda no início daquele dia, eram
cidadãos livres em seus respectivos países. Tinham seus trabalhos, suas
famílias, seus amores, suas esperanças. Menos de 24 horas depois, haviam se
tornado escravos condenados ao trabalho forçado em uma terra estrangeira, sob o
jugo perigoso de soldados inimigos, expostos aos bombardeios dos aviões
aliados, que os poderiam exterminar como insetos de um momento para o
outro.
Naquela noite quase ninguém teve
sono, por maior que fosse o cansaço, Jacques percebeu. Com mais de vinte homens
a seu redor, cada um daqueles míseros prisioneiros estava se sentindo
completamente sozinho, ilhado, perdido. Não havia sequer com quem confidenciar
seu pesar. O companheiro do leito ao lado finava-se no mesmo sofrimento,
esvaía-se na mesma dor. Pela madrugada adentro ouviu-se um murmurar sem fim,
dezenas de pessoas se revirando nas camas, suspiros, gemidos e, por mais que
tentassem escondê-lo, o choro engolido de muitos daqueles homens acabou sendo
ouvido por quase todos.
Jacques também mergulhou na angústia
de sua própria situação, em tudo similar à dos franceses. Mas, ao mesmo tempo,
sabia que possuía algo que o deixava em uma posição um pouco melhor que as dos
outros. Em primeiro lugar, ele era o tradutor do grupo. Os alemães precisavam
dele para se comunicar com os franceses e com os poucos técnicos holandeses,
que tinham sido praticamente raptados da fábrica de lâmpadas em seu país. E os
prisioneiros também precisavam dele, o que o fazia naturalmente o porta-voz de
todos eles ante os nazistas. E isso significava certamente uma posição de maior
segurança para ele. E também detinha uma certa ascendência sobre eles e sobre
os próprios alemães.
Saberia se comportar como um
representante dos oprimidos, ao mesmo tempo que se esforçaria para manter a
melhor relação possível com os opressores. Naquele momento, percebia que se
representasse bem o seu papel, não só a sua situação seria privilegiada, mas,
principalmente, ele poderia de várias formas procurar minorar os seus
sofrimentos e os de seus colegas franceses e holandeses. Em segundo lugar,
tinha algo ainda mais importante, algo que nem os alemães com suas
metralhadoras, nem os aliados, com suas bombas poderiam tirar-lhe jamais.
Tinha o seu amor por Marie Louise.
Isso o fazia diferente. E forte! Sim, porque isso lhe dava uma razão enorme
para ficar vivo e voltar para casa. Ali,
imóvel em sua cama, de olhos abertos no escuro, foi sentindo sua tensão
diminuir, enquanto monologava:
Não, não
importa se eu tenho o amor dela ou não. É possível que o tenha, quem sabe. Mas
o importante é o amor que eu tenho por ela. É esse amor que me faz querer
continuar vivo e resistir a qualquer desgaste ou sacrifício.
Lembrou-se de
um trecho de um poema, sem lembrar quem era o autor:
"Para que saber se amado sou ou não,
se o que conta é somente o amor que eu sinto,
que me guia como um fio num labirinto
que extrapola a própria lógica e a razão.
É um amor imune ao Tempo que se arrasta,
É um amor que vence o Não e a Vida exorta.
“Sou amado? Sim. Talvez. Ou não. Que
importa?
Que importa, seu EU amo, isso é tudo o que me basta."
"Que importa a
distância.
Se para ter você aqui é só fechar os olhos.
Então vejo seu rosto,
vejo você inteira.
E sinto até o seu perfume”.
A lembrança e a compreensão do significado do poema o fizeram ainda mais forte:
Não, não estou só, eu tenho você aqui
comigo. Dentro de mim. Então que venha a Alemanha, que venha Essen, que venha a
Krupp e o que mais vier. Eu sobreviverei! E voltarei para você. Então nada mais
poderá nos separar. Vamos viver juntos pelo resto das nossas vidas. Eu juro!
A doce lembrança da figura serena de
Marie Louise a envolvê-lo, seus olhos de um azul intenso, seus cabelos
castanho-dourados, seu perfume de rosas, a certeza de que algum dia voltaria
para ela, infundiram-lhe uma tal serenidade, uma calma tão grande, que Jacques
foi o primeiro naquele alojamento a dormir profundamente até que o toque
estridente da corneta os despertasse a todos, às 5 horas da manhã do dia
seguinte. O primeiro dia de trabalho em seu cativeiro.
Estavam todos no refeitório, para o
café da manhã, quando ouviram o matraquear muito próximo de uma metralhadora.
Muitos chegaram a se assustar. A maior parte deles, no entanto, apenas olhou
para os lados, interrogativa. Depois do brutal batismo de fogo do bombardeio na
noite anterior, o pipocar de metralhadora parecia, de fato, muito pouco. Mas o
cozinheiro, que ajudava servir e controlar as mesas, explicou para Jacques, que
sabia ser o único a entender alemão:
– É no campo de concentração, aqui ao
lado. Mais um infeliz foi executado, com certeza. Vocês não sabem a sorte que
têm, estando aqui neste acampamento. Vocês são material de interesse de Herr Von Krupp, estão mais protegidos.
Os outros, no campo ao lado, vão morrendo pouco a pouco como insetos que são
exterminados.
– Muitos? – arriscou Jacques.
– Quase todos, intérprete. É só uma
questão de tempo. Pouco tempo, aliás. Esses aí não trabalham em coisas que
exijam muita inteligência ou formação. Fazem só trabalho braçal nas tarefas do
campo. Junto com eles tem outros que vieram apenas para serem eliminados. São
alemães dissidentes do regime, comunistas, ciganos, homossexuais e também
russos e judeus. Principalmente judeus. Todos são considerados raças
inferiores. Portanto, não se assustem com tiroteios do lado de lá da cerca. Não
são tiroteios, são fuzilamentos. Volta e meia um pobre diabo dá adeus a esta
vida e se livra do pior, que é viver ali.
– E é verdade que a comida deles é
muito pouca?
– Pouca? É quase nada, belga, rações
mínimas. É tudo pensado para debilitar os caras e economizar o dinheiro do
Reich. E a qualidade então! Vocês podem se queixar aqui da minha comida, mas
isto aqui é um restaurante de luxo perto do que dão para aqueles lá.
Quando se levantaram para sair para a
fábrica, Jacques conseguiu dar uma rápida olhada pela ampla janela do refeitório.
Lá embaixo, a cerca de setenta metros de distância do alojamento, divisou o
sinistro campo de concentração a que se referiu o cozinheiro. Este tipo de
instalação era bastante comentado na Bélgica, mas poucos conheciam o seu
funcionamento e as atrocidades que nele se perpetravam. Era constituído por
conjuntos de dezenas de barracões enormes e compridos, que pareciam ter sido
construídos apenas com tábuas, rapidamente e de forma provisória, do modo mais
precário possível.
Ficava em meio a um enorme campo
cercado por fios de arame farpado; e estava todo enlameado em razão da chuva e
da neve derretida de início de inverno. A cada 50 metros era encimado
por altas torres de observação, munidas de potentes holofotes e com guardas
armados apontando suas metralhadoras para baixo. Cada bloco parecia ter uma
dimensão suficiente para abrigar uns 150 detentos. E, ao que parecia, não
deveria haver mais de uma latrina para os detentos de cada bloco, havendo
apenas a pequena casinha instalada em uma extremidade.
Naquele local de sinistro aspecto,
grupos de homens com uniformes listrados, com números às suas costas ao invés
de nomes, marchavam lentamente, tangidos por guardas também armados de
metralhadoras, acompanhados por cães pastores alemães aparentemente nada
amistosos. Os judeus do campo eram facilmente reconhecíveis, pois portavam um
triângulo amarelo que os identificava claramente. A intenção de todo este
esquema não podia ser mais explícita! Então aqueles eram alguns dos “pobres
diabos” mencionados pelo cozinheiro. Comparado com o que havia visto no campo
ao lado, o alojamento onde estavam parecia um hotel cinco estrelas! Que Deus ajudasse seus companheiros judeus do
trem para que não os tivessem mandado para algo semelhante.
A GUERRA DE JACQUES - 408 pg. Idel, Dez 2017. Disponível nas grandes redes:
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