MILTON MACIEL
Norteville, 15 de
Janeiro de 2048. Caramba, hoje acordei esquisito. O dia todo com uma saudade, uma
nostalgia de infância que não tem pé nem cabeça. Minha mente teima em voltar ao
início do século, lá pelos anos 2017, 2018, quando eu era um molequinho de 7
anos e ainda existiam aqueles monstros de ferro que engoliam oceanos de petróleo
e rodavam sobre rodas de borracha sobre o solo, engolfando-se em congestionamentos
monstruosos. Algo que hoje só podemos ver em documentários de época.
Aliás, o
mais inconcebível é que esses veículos trogloditas tinham que ser manobrados
por um ser humano (insano, não é?), o que resultava em incontáveis erros e
acidentes fatais. Naquele tempo, é claro, ainda não existia o TAUA, o trânsito
aéreo urbano automatizado.
Lembro que eu, como
toda criança, tinha um daqueles negócios esquisitos da época, um tal de “telefone
celular”, que a gente usava para se comunicar lendo, escrevendo e até falando.
Sei que vocês vão ter dificuldade de entender do que estou tratando, mas emitam
o verbete “telefone celular” e logo vão aparecer em suas mentes todos os
multimodais dessa tema, inclusive vocês vão poder ter a exata experiência de
usar um desses artefatos primitivos em suas mentes, basta seguir as instruções.
É claro que vocês vão morrer de rir da tecnologia e da extrema dificuldade de
inserir letras com as pontas dos dedos, como nosso avós faziam então.
No multimodal de
imagens móveis, vocês vão inclusive ver como nossos antepassados passavam horas
a fio magnetizados em massa às telas dessas carroças eletrônicas, dificultando a
comunicação direta entre eles. Aliás, se alguém quiser ver algumas dessas peças
fisicamente, aviso que podem encontrar e, pagando a taxa, inclusive pegar nas
mãos e manipular alguns desses raros exemplares.
No Museu de Sambaqui,
na seção Eletrônicos, há dois aparelhos da antiga marca Samsung. Você pode ir
com um amigo ao museu e vocês podem passar pela experiência incrível de
conversar através dessas máquinas rudimentares, tendo porém o cuidado de encostá-las
nas orelhas antes. Depois vocês podem se dar o prazer indescritível de escrever
usando as pontas dos dedos, é impagável. Bem, na verdade você vai ter que pagar,
sim, mas vale a pena mesmo, custa 135 Yuans.
Naquele tempo
Norteville ainda não existia e eu vivia na parte que chamavam então de
Joinville. Com o tempo, como todos sabem, essa parte foi se alastrando e se
fundindo com outras em expansão ainda mais acelerada, como Araquari, Barra
Velha, Barra do Sul, Garuva, Schroeder, Guaramirim e Jaraguá. Até mesmo São
Francisco, que antes era uma ilha, com o atual bairro Mega Aterro virou parte
da grande conurbação de Norteville, onde contamos agora com uma população de 3
600 000 habitantes.
A administração desse
complexo, por incrível que pareça, é dezenas de vezes mais fácil, eficiente e honesta do
que no tempo da antiga Joinville. O nosso governo central, em Shangai, nos dá
extrema autonomia de gestão.
E nosso Administrador Geral para a América do Sul,
o benemérito Zhang Jiao, que prefere manter seu corpo nas Ilhas Virgens
Brasileiras (antigas Britânicas), nos visita sempre, pelo menos uma vez por
mês, por projeção iônica transversa. Inclusive essa sua projeção costuma devorar sempre dúzias
e dúzias de bananas ouro, que considera “um verdadeiro néctar dos deuses”.
Ah, esqueci de dizer:
quando vocês forem usar o tal de telefone celular dos antigos, para conversar
entre si, não esqueçam de anular momentaneamente o emissor do lobo frontal do
cérebro, senão vocês vão estar conversando da forma normal, pela telepatia orgânica.
Não, vocês precisam escutar a voz do outro entrando pelo tímpano do ouvido, uma
experiência hilária e inesquecível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário