MILTON MACIEL
Vol I: JOÃO RAMALHO, cap. 1
VAI, JOÃO, VAI CONQUISTAR O
BRASIL!
VOUZELA,
Portugal, 1512:
– Não vais, não
vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não
vais! Eu não to permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não se
fala mais nisso!
Catarina de
Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Aquele
filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa, se ela deixasse, iria meter os
pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais parecidos aqueles! Não havia dois mais
parecidos em Portugal, não podia haver! Tinha-se-lhes que trazer de rédea
curta.
O marido, o
velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o
passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a
correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se
importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conhecia-se todos.
João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio
– seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos
arredores todos de Vouzela.
Já temendo por
isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao
avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa
família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora,
essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o
da própria futura sogra, de respeitável cara feia também, não era exatamente o
sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A penúltima
coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última, é que
fosse com Catarina Fernandes.
Mas acabou tendo
que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não
havia cristo que pudesse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de seis
meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama
com as célebres pontadas no coração, tão fortes que, às vezes, ela chegava a se
enganar de lado, acusando-as do lado direito do peito. Queixava-se em altos
brados, para que toda a vizinhança pudesse ouvir:
– Ai, que me morro!
Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto de
segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!
E redobrava os
gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo
era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e
gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina,
acabava sempre ficando na dúvida: E se dessa vez fosse verdade? E se a mulher
morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma
primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.
Quando a pressão
do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho
capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não
sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E
quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena,
sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto
queria para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe,
em Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida.
A vida de casado
não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que
quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A
esposa era uma cópia fiel de Catarina Balbode. Sempre de cara fechada,
sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em
todos. E mandona! Mandona como a Catarina velha! Que desastre, onde fora
amarrar seu burro!
Na cama era uma
verdadeira negação. Não no sentido de que se negasse. Mas não
participava de nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de
desejo que, nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi
parando de procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez
por outra causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o
filho por esse motivo:
– Me sais um
frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação me saíste, ó gajo incapaz!
Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer. Aí, as pontadas!
Num dia de
sábado, em que as duas mulheres foram cedo para a missa das seis, pai e filho
tiveram um conversa decisiva.
– Meu pai,
dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos?
Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais. Decidi:
vou-me embora de Vouzela!
– Ah, pois que
estás certo, meu filho. Teu pai te compreende e te diz: vai-te logo enquanto é
tempo. Se ficares tempo demais, como eu fiquei, acabas te acostumando e nunca
mais consegues te libertar.
– Ora, meu pai, cá
me vejo eu surpreso! Não pensei que me apoiasses nisso. Achei que considerarias
loucura minha.
– Loucura será
se, podendo partir, ficares. Aproveita que és jovem e forte, já vais fazer
dezenove anos e já tens essa barba ramalhuda, toda crespa e esparramada. Ela te faz parecer mais velho do que és,
ajuda a impor respeito à tua figura.
– Isso é verdade, meu pai. Há uns gajos, lá na
Quinta, que, para diferenciar-me de meu pai, porque somos os dois João Maldonado,
estão a chamar-me de João Ramalhudo. E uma cachopinha, filha do tanoeiro, a
quem ando dando uns apertos lá no meio das oliveiras, chama-me agora Joãozinho
Ramalho.
– Ora, ora, isso
é divertido, mas até que te vai bem. João Ramalhudo. Ou João Ramalho, fica até
melhor. Um nome novo para uma vida nova! Não está mal, não está mal. Mas
dize-me tu, como e quando pretendes partir?
– Espero meu
aniversário de dezenove anos, no mês que vem. E aí vou-me a pretexto de que
consegui um grande emprego em Lisboa. Meu amigo Pedro Farias irá apresentar uma
carta de um tio seu, que vive na capital, propondo-nos trabalho com uma paga
muito elevada. É mentira, é claro. Mas a carta é verdadeira, já a recebemos
pelo mensageiro. De qualquer forma, é na casa desse tio de Pedro Farias que
iremos ficar nos primeiros tempos. Até que eu possa embarcar como grumete num
navio que parta para as novas terras que Pedro Álvares Cabral descobriu para
nós, as terras onde há o pau vermelho que vale como ouro para os que tingem
tecidos, o pau-brasil.
– Ah, com que
então estás de olho nas riquezas da nova colônia, hein, malandrote! Pois fazes
muito bem, tivesse eu tua idade e coragem, ia-me embora para essas terras de
futuro também. Mas dize-me, como te vais arranjar em Lisboa? Com que dinheiro
vais viver e comer, até que arranjes lugar num navio?
– Ah, meu pai,
andei escondendo algumas moedas de Catarina, vou vender meu cavalo e os arreios
e me arranjo com isso. Não preciso comer todos os dias, estou bem forte e
lustroso, posso agüentar um pouco de fome, a causa é nobre.
– Não, não! Não
criei filho meu para passar fome. Fica tranquilo, teu pai te ajudará. Tenho
também muitas moedas e outros valores, que venho escondendo da Catarina tua mãe
também, desde muito tempo. Sabes, sempre alimentei a esperança de que um dia eu
teria coragem de dizer adeus a essa tua mãe e aventurar-me pelo mundo. Para
isso fui ocultando algumas posses. Mas o tempo pegou-me, a saúde das juntas
também, enferrujei de corpo e de alma. Mas agora, ao saber da tua aventura, tu
me enches de novo ânimo e entusiasmo. Já estou velho demais para escapar-me
daqui, mas viverei a tua empreitada como se fosse minha. E esse dinheiro que
guardei para minha fuga do cativeiro, dou-to todo a ti.
– Meu pai,
quanta generosidade! Vais me fazer um grande bem. Mas não é justo que gastes
todo teu patrimônio comigo. Dá-me menos, haverei eu de arranjar-me, já ia
fazê-lo com uns poucos trocados mesmo.
– És um bom
menino, meu João Ramalho. Sempre foste muito amigo de teu pai. Pois agora é a
hora de teu pai mostrar que é teu grande amigo. Vamo-nos à casa, enquanto
aquelas duas carolas bigodudas não chegam. Vou abrir um bom vinho, que tenho
escondido também, e vou mostrar-te – ou melhor, já vou dar-te – o dinheiro que
vai garantir o sucesso de tua aventura. Vem, vamo-nos já.
Dois meses
tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João filho. Ou João
Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que
era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo
com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e
arreganhada!
Pois agora
Catarina-mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de
terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a
gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:
– Ah, mais tu
não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te
consideras um homem capaz de desobedecer teu pai?
– Mas meu pai nunca que me disse para eu
não partir para Lisboa! Ele sabe que é uma oportunidade de ouro para mim.
– Ora, não disse
porque é um frouxo igual a ti! Vocês são dois gajos que não têm coragem de
nada. E, muito menos, terão coragem de me desobedecer. João, ó João, onde
estás, infeliz? Onde estás que não vens dar uns tabefes na cara desse teu
ramalhudo de meia-tigela. E olha que, se
tu não dás, acabo-os dando eu mesma, sim senhor!
E Catarina mãe
arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na
cabeça do filho, que se retirou rindo. Passou por Catarina-esposa, que assistia
a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e
ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.
João voltou-se
para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de
fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo,
sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho:
– Até nunca
mais, sua rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus
bigodes!
Minutos depois
estava com o pai e com Pedro Farias na bodega de Aristides Manco. O pai já
tinha trazido mais cedo a pequena trouxa do filho, sem que as Catarinas o
tivessem percebido. Pedro Farias já estava com a sua também. A despedida foi
rápida e cheia de emoção, mas os dois Joãos souberam disfarçá-la. Dando um
longo e apertado abraço no filho, João Vieira de Maldonado despediu-se com
lágrimas fugazes nos olhos e falou-lhe, quase ao ouvido:
– Vai, meu
filho. Sei que nunca mais meus olhos haverão de te ver. Mas tu hás de desbravar
as novas terras para ti. Vai, cumpre teu destino, conquista esses Brasis e
faz-te um homem rico e importante. Eu sei que tu podes, tu hás de triunfar!
No minuto final,
ainda tirou do dedo seu anel de família e o colocou no dedo do filho. Depois, dando-lhe
um puxão na barba arrepiada, falou pela última vez:
– Vai-te, João
Ramalho, vai conquistar o Brasil!
E, dando as
costas aos dois rapazes, afundou-se para a parte de trás da bodega, onde podia
chorar sem ser percebido pelos outros homens.
João Maldonado
filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na
carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da
viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima,
surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois
consigo mesma:
– Adeus, João
Ramalho, vai com Deus.
Tinha lágrimas
nos olhos e apoiava as duas mãos sobre o ventre. Ali dentro, em segredo,
começava a crescer o primeiro dos inúmeros descendentes de João Ramalho – o
único do Velho Mundo.
Era o ano da
graça de 1512.
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