terça-feira, 31 de dezembro de 2013

ESSE DESCONHECIDO JOÃO RAMALHO
MILTON MACIEL

A imensa maioria dos brasileiros não sabe o quanto deve ao português João Ramalho. Aliás, à bem da verdade, nem sabe que existiu esse João Ramalho, que naufragou nas costas brasileiras em 1512, aos 19 anos de idade. Passando a viver com e como os índios tupis, teve 48 filhos com inúmeras índias e com eles formou uma milícia armada de arcabuzes. Esse foi o primeiro ‘exército’ brasileiro regular com armas de fogo.

João Ramalho fundou Santo André da Borda do Campo, ajudou Martin Afonso de Souza a fundar São Vicente e o padre Manoel da Nobre a fundar São Paulo. Dois anos depois, quando esta novel vila de São Paulo de Piratininga estava a ponto de ser arrasada pelos tapuias (a confederação dos tamoios), foi justamente o exército de João Ramalho, com a ajuda dos índios de seu sogro, o chefe tupi Tibiriçá, que salvou São Paulo.

Sem a garantia de João Ramalho, teria sido difícil a fundação de São Paulo. E, sem ele,  ela teria sido completamente destruída pelos tamoios, logo depois. No entanto, a capital paulista não rende a esse seu criador e defensor o devido tributo. Ignorância e ingratidão somadas. A estátua na foto acima está erigida em Santo André.

Por isso, resolvi resgatar a memória desse português notável em todos os sentidos, colocando-o como personagem central do primeiro volume de minha nova trilogia “DE FRANÇA E BRASIL”. O que, convenhamos, além de permitir a criação de uma boa novela histórica, facilita enchê-la de muito humor e de muita picardia, bem ao meu gosto. João Ramalho andava nu como todos os índios e índias. E estas tinham um verdadeiro fascínio pelo peladão da barba preta, todas queiram deitar com ele na rede ou nos matos. Costumo fizer que ele foi o primeiro ‘Piroga de Ouro’ da história do Brasil (Ah, e antes que seja eu mal entendido, traduzo: piroga era o nome daquela canoa indígena comprida,  escavada em um único tronco de árvore).

Os franceses Nicolas Durand de Villegaignon (pronuncia-se Vileguenhôn) e Binot de Goneville, o holandês Maurício de Nassau e o brasileiro Salvador de Sá e Benevides são as figuras centrais dos outros dois volumes, com a história deslocando-se de São Paulo para Iperoig, com José de Anchieta e daí para a baia de Guanabara, com os tamoios, Mem e Estácio de Sá e o francês Villegaignon. Depois ela vai para a França, Luanda (Angola), Recife e Olinda, voltando ao final para o Rio de Janeiro.

A saga, que acompanha os primeiros movimentos do Gigante em seu berço esplêndido, começa em 1493 em Portugal e termina em 1712, no Rio de Janeiro, com um flashback misterioso a 1403, nas águas da baia de Babitonga, em Santa Catarina, com o francês Goneville.


Tal qual minha primeira novela histórica, “O CERCO”, sobre a invasão dos hunos à Gália em 451 A.D., “DE FRANÇA E BRASIL” foi concebida como um roteiro para cinema desde o começo. E, tal qual “O CERCO”, que nasceu todo, capítulo a capítulo, com suas 400 páginas, no blog MILTON MACIEL ESCRITOR, também “DE FRANÇA E BRASIL” passará a animar as páginas do blog com suas histórias épicas e divertidas, no alvorecer de 2014.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DE FRANÇA E BRASIL  
MILTON  MACIEL 
Vol I: JOÃO RAMALHO, cap. 1
VAI, JOÃO, VAI CONQUISTAR O BRASIL!

VOUZELA, Portugal, 1512:
– Não vais, não vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não vais! Eu não to permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não se fala mais nisso!

Catarina de Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Aquele filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa, se ela deixasse, iria meter os pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais parecidos aqueles! Não havia dois mais parecidos em Portugal, não podia haver! Tinha-se-lhes que trazer de rédea curta.

O marido, o velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conhecia-se todos. João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio – seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos arredores todos de Vouzela.

Já temendo por isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora, essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o da própria futura sogra, de respeitável cara feia também, não era exatamente o sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A penúltima coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última, é que fosse com Catarina Fernandes.

Mas acabou tendo que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não havia cristo que pudesse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de seis meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama com as célebres pontadas no coração, tão fortes que, às vezes, ela chegava a se enganar de lado, acusando-as do lado direito do peito. Queixava-se em altos brados, para que toda a vizinhança pudesse ouvir:

– Ai, que me morro! Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto de segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!

E redobrava os gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina, acabava sempre ficando na dúvida: E se dessa vez fosse verdade? E se a mulher morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.

Quando a pressão do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena, sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto queria para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe, em Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida.

A vida de casado não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A esposa era uma cópia fiel de Catarina Balbode. Sempre de cara fechada, sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em todos. E mandona! Mandona como a Catarina velha! Que desastre, onde fora amarrar seu burro!

Na cama era uma verdadeira negação. Não no sentido de que se negasse. Mas não participava de nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de desejo que, nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi parando de procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez por outra causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o filho por esse motivo:

– Me sais um frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação me saíste, ó gajo incapaz! Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer. Aí, as pontadas!

Num dia de sábado, em que as duas mulheres foram cedo para a missa das seis, pai e filho tiveram um conversa decisiva.

– Meu pai, dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos? Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais. Decidi: vou-me embora de Vouzela!

– Ah, pois que estás certo, meu filho. Teu pai te compreende e te diz: vai-te logo enquanto é tempo. Se ficares tempo demais, como eu fiquei, acabas te acostumando e nunca mais consegues te libertar.

– Ora, meu pai, cá me vejo eu surpreso! Não pensei que me apoiasses nisso. Achei que considerarias loucura minha.

– Loucura será se, podendo partir, ficares. Aproveita que és jovem e forte, já vais fazer dezenove anos e já tens essa barba ramalhuda, toda crespa e esparramada.  Ela te faz parecer mais velho do que és, ajuda a impor respeito à tua figura.

 – Isso é verdade, meu pai. Há uns gajos, lá na Quinta, que, para diferenciar-me de meu pai, porque somos os dois João Maldonado, estão a chamar-me de João Ramalhudo. E uma cachopinha, filha do tanoeiro, a quem ando dando uns apertos lá no meio das oliveiras, chama-me agora Joãozinho Ramalho.

– Ora, ora, isso é divertido, mas até que te vai bem. João Ramalhudo. Ou João Ramalho, fica até melhor. Um nome novo para uma vida nova! Não está mal, não está mal. Mas dize-me tu, como e quando pretendes partir?

– Espero meu aniversário de dezenove anos, no mês que vem. E aí vou-me a pretexto de que consegui um grande emprego em Lisboa. Meu amigo Pedro Farias irá apresentar uma carta de um tio seu, que vive na capital, propondo-nos trabalho com uma paga muito elevada. É mentira, é claro. Mas a carta é verdadeira, já a recebemos pelo mensageiro. De qualquer forma, é na casa desse tio de Pedro Farias que iremos ficar nos primeiros tempos. Até que eu possa embarcar como grumete num navio que parta para as novas terras que Pedro Álvares Cabral descobriu para nós, as terras onde há o pau vermelho que vale como ouro para os que tingem tecidos, o pau-brasil.

– Ah, com que então estás de olho nas riquezas da nova colônia, hein, malandrote! Pois fazes muito bem, tivesse eu tua idade e coragem, ia-me embora para essas terras de futuro também. Mas dize-me, como te vais arranjar em Lisboa? Com que dinheiro vais viver e comer, até que arranjes lugar num navio?

– Ah, meu pai, andei escondendo algumas moedas de Catarina, vou vender meu cavalo e os arreios e me arranjo com isso. Não preciso comer todos os dias, estou bem forte e lustroso, posso agüentar um pouco de fome, a causa é nobre.

– Não, não! Não criei filho meu para passar fome. Fica tranquilo, teu pai te ajudará. Tenho também muitas moedas e outros valores, que venho escondendo da Catarina tua mãe também, desde muito tempo. Sabes, sempre alimentei a esperança de que um dia eu teria coragem de dizer adeus a essa tua mãe e aventurar-me pelo mundo. Para isso fui ocultando algumas posses. Mas o tempo pegou-me, a saúde das juntas também, enferrujei de corpo e de alma. Mas agora, ao saber da tua aventura, tu me enches de novo ânimo e entusiasmo. Já estou velho demais para escapar-me daqui, mas viverei a tua empreitada como se fosse minha. E esse dinheiro que guardei para minha fuga do cativeiro, dou-to todo a ti.

– Meu pai, quanta generosidade! Vais me fazer um grande bem. Mas não é justo que gastes todo teu patrimônio comigo. Dá-me menos, haverei eu de arranjar-me, já ia fazê-lo com uns poucos trocados mesmo.

– És um bom menino, meu João Ramalho. Sempre foste muito amigo de teu pai. Pois agora é a hora de teu pai mostrar que é teu grande amigo. Vamo-nos à casa, enquanto aquelas duas carolas bigodudas não chegam. Vou abrir um bom vinho, que tenho escondido também, e vou mostrar-te – ou melhor, já vou dar-te – o dinheiro que vai garantir o sucesso de tua aventura. Vem, vamo-nos já.

Dois meses tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João filho. Ou João Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e arreganhada!

Pois agora Catarina-mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:

– Ah, mais tu não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te consideras um homem capaz de desobedecer teu pai?

– Mas meu pai nunca que me disse para eu não partir para Lisboa! Ele sabe que é uma oportunidade de ouro para mim.

– Ora, não disse porque é um frouxo igual a ti! Vocês são dois gajos que não têm coragem de nada. E, muito menos, terão coragem de me desobedecer. João, ó João, onde estás, infeliz? Onde estás que não vens dar uns tabefes na cara desse teu ramalhudo de meia-tigela.  E olha que, se tu não dás, acabo-os dando eu mesma, sim senhor!

E Catarina mãe arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na cabeça do filho, que se retirou rindo. Passou por Catarina-esposa, que assistia a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.

João voltou-se para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo, sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho:

– Até nunca mais, sua rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus bigodes!

Minutos depois estava com o pai e com Pedro Farias na bodega de Aristides Manco. O pai já tinha trazido mais cedo a pequena trouxa do filho, sem que as Catarinas o tivessem percebido. Pedro Farias já estava com a sua também. A despedida foi rápida e cheia de emoção, mas os dois Joãos souberam disfarçá-la. Dando um longo e apertado abraço no filho, João Vieira de Maldonado despediu-se com lágrimas fugazes nos olhos e falou-lhe, quase ao ouvido:

– Vai, meu filho. Sei que nunca mais meus olhos haverão de te ver. Mas tu hás de desbravar as novas terras para ti. Vai, cumpre teu destino, conquista esses Brasis e faz-te um homem rico e importante. Eu sei que tu podes, tu hás de triunfar!

No minuto final, ainda tirou do dedo seu anel de família e o colocou no dedo do filho. Depois, dando-lhe um puxão na barba arrepiada, falou pela última vez:

– Vai-te, João Ramalho, vai conquistar o Brasil!

E, dando as costas aos dois rapazes, afundou-se para a parte de trás da bodega, onde podia chorar sem ser percebido pelos outros homens.

João Maldonado filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima, surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois consigo mesma:

– Adeus, João Ramalho, vai com Deus.

Tinha lágrimas nos olhos e apoiava as duas mãos sobre o ventre. Ali dentro, em segredo, começava a crescer o primeiro dos inúmeros descendentes de João Ramalho – o único do Velho Mundo.


Era o ano da graça de 1512.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

CHAPEUZINHO VERMELHO E O LOBO MAU REVISITADOS
(Leitura para adultos)
MILTON MACIEL


A história de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau acabou ficando muito mal contada. Compreende-se: como foi preciso adaptá-la para as crianças, mistér foi retirar dela todos os elementos mais cruentos.

Uma revisão se impõe para a leitura adulta, no entanto, que restabeleça a justiça e traga a verdadeira história do lobo mau. A realidade é que esse tarado de fato comeu a vovozinha, mas só porque ela deu mole e ele estava num atraso de dar gosto, não encarava uma loba há meses. A velha também, há anos só na saudade do falecido, já meio esquecida da doce arte, as teias de aranha grassando abundantes, quando viu aquele lobão enorme deitando nela olhares de lobo mau, não teve dúvida: Vem cá garotão! E rolou o maior agito entre os dois. Sexo selvagem no duro, literalmente.

Só não foi ainda mais sensacional porque, no terceiro repeteco, a chata da netinha chegou, com um ridículo cestinho de doces e uma garrafinha de suco de uva. Nessa hora a velha e o lobo já estavam na terceira garrafa de vodca. Aí o lobo escafedeu-se para baixo da cama, a vovozona se recompôs e a Chapeuzinho (assim chamada porque a mãe a usava para aumentar o faturamento familiar pedindo esmolas nos sinais da cidade, correndo um chapeuzinho vermelho entre os motoristas) proferiu as hoje tão famosas perguntas:

 – Pra que essas orelhas tão grandes? Pra que esses olhos tão grandes? Pra que esses dentes tão grandes? Uma chata, uma abestada!

A velha, cheia de vodca, emputeceu! Começou a xingar Chapeuzinho aos berros, afinal os olhos e as orelhas eram da avó mesma, a velha era feia pra burro, pô!

Já os dentes eram de fato enormes, mas estavam no copo ao lado da cama, o lobo ficou com medo e exigiu que a vovó tirasse a dentadura quando começaram a rolar os primeiros beijos de língua.

Chapeuzinho ficou assustada com os gritos histéricos da velha e começou a chorar. Aí o lobo saiu de baixo da cama, com dó da menina, e resolveu consolá-la. A velha era tão feia que o lobo, perto dela, parecia um cordeirinho. Por isso a menina não se assustou com o lobo. Este então a levou para a varanda na frente da casa, sentou na cadeira de balanço da vovó, botou a menina no colo e começou a fazer carinho para acalmá-la. Foi quando passou por ali o caçador.

A garota já tinha uns dezesseis anos e era escolada dos sinais da cidade. Quando viu o caçador, que na verdade era o segundo dos cinco ex-maridos da vovozona, pensou logo em armar pra cima do lobo, pra tirar alguma vantagem. Saltou do colo e correu para o caçador, dando a entender que o lobo estava abusando dela. Aí o caçador se indignou e passou fogo no coitado do lobo.

Aqui é necessário comentar duas coisas. A primeira é que o caçador já vinha todo manguaçado da floresta, bebera todas na birosca dos Três Porquinhos. Por isso, sorte do lobo apavorado, errou todos os dois tiros que desferiu. Todos não, o segundo atingiu em cheio o copo com a dentadura da velha, estilhaçou os dentes, foi um estrago, a velha está desdentada até hoje.

A segunda é que a ira do caçador nada tinha a ver com a pretensa acusação de pedofilia que a mau caráter da Chapeuzinho insinuara contra o coitado do Lobo (que de Mau só tinha o sobrenome, corruptela de pronúncia, por parte daqueles caipiras rastaqüeras do lugar, do ilustre nome da família germânica de que ele descendia, os Maals de Nüremberg).

O furor do caçador veio de sua paixão incontida pelo Lobo, pelo qual há muito nutria um cego e não-correspondido amor. Em resumo, os tiros saíram do cano da carabina impulsionados por uma mistura de cachaça, rejeição, ciúmes do Lobo com Chapeuzinho e dor de corno.

Quanto ao Lobo Maals, teve que se esconder. Não por causa do caçador que, sóbrio, era uma moça em todos os sentidos. Nem por causa do pretenso caso de pedofilia, pois os moradores conheciam de sobra o bom caráter do Lobo e o caráter duvidoso de Chapeuzinho. O problema do Lobo foi a Vovó. A velha deu para persegui-lo, faminta, na base do quero mais, quero mais, desesperada. Aí ele teve que sumir por uns tempos. Deram-lhe guarida os Três Porquinhos, no imóvel que tinham na beira da cidade, à entrada da floresta, onde exploravam o lenocínio, o jogo de azar e a venda de bebidas alcoólicas e armas de fogo. Mas isso já é história para outro conto.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

NÃO  VOU LHE DESEJAR FELIZ ANO NOVO. Você não precisa.
MILTON MACIEL

Não vou lhe desejar boas festas, feliz Natal, próspero Ano Novo e outros que tais. Você não precisa.

Até porque TODOS já lhe desejaram isso tudo. Como fazem sempre todos os anos. Só que esse pessoal todo, ou fez isso só da boca pra fora, ou é muito fraquinho em desejar coisas boas para os outros. Porque, convenhamos, você ouve esses votos e desejos provavelmente há décadas. Aí passa Natal, entra novo ano e... E os votos do pessoal não simplesmente não funcionam!

Como sei de antemão que eu não vou conseguir ajudar você com os meus votos furados, então deixo de fazê-lo. Um a menos para encher sua caixa postal. Não é que eu não deseje que você se dê bem. Só que sei que, a menos que eu bote a mão no bolso e lhe escorregue uma grana preta, ou a menos que eu lhe dedique dezenas de horas de solidariedade e verdadeira AMIZADE, o que eu vou falar ou escrever são apenas palavras, nada mais que palavras.
 (Legenda da foto:: Eu quero que você gaste um monte, para provar que você ama sua família)
Palavras que todo mundo fala, boa parte das pessoas até que com sinceridade. Bem, pelo menos quando se dirigem a certas e determinadas outras pessoas. Para todas as demais existe Mastercard e elas que se virem!

Agora, convenhamos, você ler num anúncio que a Coca Cola ou o Banco Itaú lhe desejam um Feliz Natal é, no mínimo, risível. A Coca Cola deve estar desejando que você tenha BOAS FESTAS, ou seja, beba com sua turma um caminhão de refrigerantes e cervejas do grupo. Já o Itaú está mais para desejar a você um próspero Ano Novo, que é o jeito de ele poder continuar com o canudinho na sua jugular, sugando uma considerável parte dos reais que você ganha – já que assim você vai poder continuar pagando para ele os juros de cartão de crédito e cheque especial e ‘serviços’ bancários.

O pessoal se embala todo com as palavras das mensagens de fim de ano. Harmonia, bondade, fraternidade, paz aos de boa vontade – seja lá isso o que for – mas continua sendo tudo um palavrório que veste uma tradição. De um lado esse tom natalino mais espiritualizado, do outro o desejo de ter resolvidos os problemas financeiros no ano entrante. 

No fim, o tal feliz Natal e próspero Ano Novo acabam se resumindo em uma grande Saturnália, que é a origem real dos festejos natalinos. Jesus Cristo passa a nascer no 25 de Dezembro, para substituir as festas pagãs do Sol Invicto, do solstício de inverno, do deus persa Mitra e do deus romano Saturno. Uma enorme Saturnália, da qual nasceu nada menos que o nosso carnaval!

E aí vamos mesmo para a Saturnália: nos esbaldamos nas compras, a ponto de congestionar horrivelmente as cidades grandes. Indústria comércio e bancos faturam como nunca. Os saturnalistas, de um modo geral, torram o décimo terceiro e se endividam um pouco mais, senão no natal, já em Janeiro, que entra pesado com suas cargas tributárias e vencimentos de contas. E aí vem a saturnália pesada das comilanças e bebelanças (ah, a Coca Cola!) de Natal: mesa farta e cara, se der com algum produto importado, pega bem. E trocamos presentes porque TEMOS que trocar, é a LEI!

E a saturnália segue firme até estourar no grande rega-bofes da festa de Ano Novo.

O que fazer? Nós fomos manipulados dentro desse sistema, aprendemos isso tudo desde criancinhas, levamos isso tudo adiante quando adultos.

Mas agora, deixando isso tudo de lado, vamos de novo ao assunto dos votos. Não vou desejar Boas Festas porque sei, que a menos que você esteja muito, muito pobre, vão acontecer os rega-bofes, toneladas e toneladas de comida cara vão virar excrementos dali a horas, pobre companhia de esgotos sobrecarregada!

Quanto ao feliz 2014, esse mesmo é que eu não vou desejar. Por que? Maldade? Não, INUTILIDADE! Meu desejo não tem o poder de fazer o seu 2014 feliz ou, ao menos, melhor. Porque só uma pessoa tem essa potencialidade: VOCÊ!

Claro eu sei que fica bonito eu lhe desejar um grande 2014, assim como você diz desejar para mim. Mas, cá entre nós, que ninguém nos ouça: a  gente, que já é adulto, sabe muito bem que isso é só uma formalidade ditada por uma norma mercantilista de ocasião. Assim com a temos no dias das mães e dos namorados. Atenção, pessoal: agora você tem que comprar presente, tem que falar palavras bonitas, tem que consumir. É a LEI!

Depois você pode voltar ao seu normal. O mundo não ficou melhor por causa dos seus votos, só teria melhorado se você, de sua parte, tivesse mudado muito, muito, para melhor, nesses curtos dias. E se isso acontecesse também comigo e com todos os outros. E agente sabe que não mudou tanto assim!

Em 1º. de Janeiro políticos corruptos vão continuar roubando, pastores desonestos vão continuar enganando seus dizimistas, padres pedófilos vão continuar assediando seus meninos. Homofóbicos,  estupradores e homens agressores continuarão imolando e matando suas vítimas inocentes.

Então eu vou desejar o que eu posso desejar no máximo para você. Não que eu acredite que esse meu desejo vai ajudar em alguma coisa. Mas, mesmo assim, aí vai ele:

Desejo que você saiba DESEJAR. Desejar o certo, o correto, o ético, o melhor para você como ser humano integrado a uma sociedade. Desejo que você saiba desejar. E que, sabendo desejar, saiba COMO desejar. E sabendo como desejar, saiba como TRABALHAR para converter seu desejo em REALIDADE. Sim, porque não há saída mágica: é preciso TRABALHO E ESFORÇO. Sucesso é meramente conseqüência desses dois, não nos iludamos.

Então veja só que fórmula maravilhosa, toda ela dependendo apenas de você e, não, dos meus votos vazios:

Deseje bem, deseje o certo, trabalhe duro e firme para converter esse seu desejo em realidade ao longo do próximo e dos demais anos, tantos quantos forem necessários.

Se você tiver uma boa Saturnália, tudo bem, sinal que a grana deu para atender o costume, para comprar os presentes e os rangos, para obedecer fielmente a LEI. Depois você volta para a dieta e se vira pra pagar os juros.

Por isso tudo, eu me eximo de lhe desejar as tais boas festas e o tal próspero ano novo. Como disse, todo mundo já encheu você de tanto falar essas coisas, até mesmo uma pá daqueles hipócritas que o que querem mesmo é ver a sua caveira.

Eu não chego a lhe desejar, por ser inócuo, mais acho que ficaria contente de saber que você soube desejar o certo, o exeqüível, o realizável. E se deu bem trabalhando firme para realizar esse desejo, usando sua determinação, sua força de vontade, seu caráter, seus talentos.

Ou seja, FAÇA VOCÊ FELIZ SEU 2014! E parabéns por isso!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O MELHOR DO NATAL MODERNO  
MILTON MACIEL  

Do Natal de hoje em dia,
A coisa mais maravilhosa:
No vinte e cinco terminam
As musiquinhas nas lojas!!!

Dois meses de Gingle Bells
E de harpa paraguaia!
Chegue logo, vinte e cinco,
Antes que a orelha me caia.

Pra você que é solteiro
E passa o Natal sozinho:
Caso beber não dirija,
Nem cante a mulher do vizinho.

Pra você que é casado,
Mas não tem filhos, rapaz:
Peça pra Papai Noel
Lhe ensinar como é que faz.

Pra você que tem amantes:
É muito presente pra dar!
Pois termine um pouco antes
Do Natal... pra economizar.

Pra você que tem crianças
Mas com os filhos não sai
Não pense que um bom presente
Limpa a barra de um mau pai.

Pra você que é pai ausente
Que não sabe dar carinho,
No futuro, o seu Natal
Será o de um velho sozinho.

Num Natal mercantilizado.
É bom recordar um exemplo:
Lembrar que o aniversariante
Quebrou o mercado do Templo.
E que era, esse mercadão,
O Shopping Center de então.

domingo, 22 de dezembro de 2013

UM MILAGRE DE NATAL  
MILTON MACIEL   

Lita e Carmen Lúcia eram mãe e filha. Lita, a mãe.  43 e 18 anos. O marido e pai deixara as duas há mais de 10 anos. Nunca mais deu notícias. Viviam da mão para a boca, numa pobreza de Jó, numa minúscula casinha alugada na periferia. Lita costurava para pequenas confecções e ateliês, Carmen Lúcia arranjava as costuras, buscava os tecidos, levava as peças prontas, o resto do tempo ajudava a mãe. Eram sós no mundo, nenhum parente em São Paulo, nada.

Uma manhã, quando voltava para casa com tecidos, Carmen Lúcia viu um rapaz com uma mochila bem no fundo do ônibus quase vazio. Ele tentava esconder que chorava. Carmen Lúcia era boa demais para ver aquilo e não fazer nada. Foi sentar ao lado do moço. Ao poucos conseguiu extrair dele sua história: Otávio. Estudava, pagava seus estudos e a pensão, o dinheiro que ganhava como garçom não dava para tudo. Acabava de ser mandado embora da pensão. A faculdade era muito cara, mas ele disse que preferia viver na rua a parar os estudos.

Quando chegaram ao ponto mais próximo à casinha delas, Carmen Lúcia fez o jovem descer com ela e levou-o até à mãe. Naquele mesmo dia o rapaz começou a morar com elas. Ele estudava de manhã e de tarde, trabalhava à noite todos os dias, sem descanso algum. Elas também não tinham descanso. Um dia, cinco meses depois, o rapaz chegou radiante: tinha conseguido transferência para uma faculdade em outra cidade, onde teria bolsa de estudos integral. Despediu-se, escreveram-se umas poucas cartas e, meses depois, quando elas tiveram que mudar de casa, perderam todo o contato.

A custo, Carmen Lúcia completou o colegial. Depois, não pôde seguir os estudos. O trabalho era muito, a paga era pouca, entravam madrugada adentro. O aluguel subiu muito, a paga diminuiu ainda mais, precisaram trabalhar ainda mais. Tiverem que mudar várias vezes de casa, sempre para mais longe. Os anos passando, Lita não agüentou.

Seu coração fraquejou, foi internada às pressas  em um hospital público distante. Carmen Lúcia ficou com todo o fardo sozinha. O dia tinha só 24 horas, ela dormia só 3. Mas conseguia ir levando a vida, com a mãe sempre internada. Precisava transplante, estava na fila, muita a necessidade de cirurgia, pouca a esperança de consegui-la. A morte também esperava e, na fila dela, Lita tinha uma posição muito mais próxima.

Carmen Lúcia só podia visitar a mãe uma vez por semana. Hospital muito longe, condução muito cara, mais caro ainda um dia quase inteiro sem trabalhar, sem ganhar. Sorriam-se as duas. Tentavam enganar uma à outra, como se pudessem ter esperança. Não tinham.

Um dia, era 24, VÉSPERA DE NATAL, a filha chegou e não encontrou a mãe na enfermaria. Entrou em pânico, mal conseguia respirar: o pior?!... Da última vez Lita estava tão fraca!...

Mas Lita estava viva. E estava na UTI. E estava bem, garantiu-lhe a enfermeira da UTI. E tinha um coração novo! Carmen Lúcia mal podia acreditar. Um milagre! Mas como? Milagres não acontecem com gente como elas, há muito desaprendera de acreditar neles.  Aí quis saber de tudo, a enfermeira chamou sua chefe, as duas tentaram explicar, em meio à excitação total da filha:

O hospital tinha mudanças importantes, um novo subdiretor assumira na semana passada, parece que vinha com as costas quentes, com mais poderes. Decidia as coisas muito rápido, arranjava recursos, remanejava todos os setores, um fenômeno!

– Veja o caso de sua mãe, por exemplo. Nem bem conversou com ela, o homem saiu da enfermaria feito um azougue, mandou fazer os preparativos para a cirurgia enquanto ele ia pessoalmente atrás de um coração. E, inacreditável, poucas horas depois tinha arranjado um. Sua mãe foi operada imediatamente. Por ele mesmo, que é cirurgião cardíaco. Ele vem várias vezes por dia ver a paciente. E agora que ela já pode, eles conversam e riem que nem velhos amigos, você não pode fazer ideia.

Carmen Lúcia recebeu permissão para entrar na UTI. Sua mãe não estava entubada. Estava recostada, podia falar normalmente. Recebeu a filha com um sorriso de júbilo. Carmen Lúcia se aproximou exultante, mas com medo de provocar uma emoção muito forte na mãe, tão violenta como a que estava sentindo.  Falou com cuidado, quase sussurrando:

– Mãe!... Mãe, um milagre, mãe! Um milagre...

– Foi ELE, minha filha. Ele! Com a graça de Deus, ele me encontrou aqui, jogada naquela enfermaria. Foi ele, filha.

– Ele, quem, mãe? Ele quem?

Lita limitou-se a apontar o homem alto, de jaleco branco, que olhava sorridente da porta de entrada. O novo subdiretor, o cirurgião, o MILAGRE!

Carmen Lúcia voltou-se para ver e, apesar da pequena barba loira, que era nova, o rosto lhe era extremamente familiar. Só conseguiu dizer:

– Sim, é ELE! É ele. Otávio!!!

O Dr. Otávio Magalhães continuava sorrindo, imóvel na porta, esparramando em cima de Carmen Lúcia um olhar enternecido. Sim, era ele, o moço do ônibus, o hóspede gratuito que dividira a miséria com elas por cinco longos meses.

Então o médico entrou, anunciou a Lita que amanhã ela deixaria a UTI, que iria para um quarto particular. 

Particular?!! Mas quem iria pagar, se elas não podiam?

– Como, quem vai  pagar? Ora, já está tudo pago. Tudo isso e tudo o que ainda vier pela frente.

– Mas como? – quis saber Carmen Lúcia? Tudo pago, como?

– Tudo pago por cinco meses maravilhosos, os melhores da minha vida, que eu vivi na casa de vocês, filando a comida de vocês, recebendo a bondade de vocês. Eu, um completo estranho. Isso não tem preço, por mais que eu tente, nunca vou poder retribuir à altura.

– Ora, meu filho, que bobagem...

– Eu perdi o contato com vocês, quando consegui voltar aqui, depois de uns meses, vocês tinham se mudado. Procurei como um louco, mas nunca mais. E aí acontece essa coisa maravilhosa, de repente eu entro naquela enfermaria e o que vejo: o rosto da minha santa protetora. Isso sim é que é milagre!

Então ele avança alguns passos, estaca em frente a Carmen Lúcia, toma-lhe as mãos nas suas:

– E hoje o milagre está completo: além da minha santa protetora, aqui está o meu anjo salvador!

O médico retirou sua carteira do bolso, dela extraiu uma fotografia e uma mecha de cabelos loiros, entregou-as a moça.

– Aqui estão, roubei do seu álbum, não tive coragem de pedir. Cortei o cabelo quando você estava dormindo. Durante estes anos todos, isso me manteve sempre conectado com vocês. Você, Carmen Lúcia, não saiu um só dia do meu pensamento. Estou solteiro até hoje porque sempre tive a esperança de reencontrá-la.

Completou-se o MILAGRE DE NATAL !

Casaram-se três meses depois. Hoje Carmen Lúcia está a três meses de concluir a faculdade de Psicologia. E Lita, que mora com eles, toma conta do casal de netos. Máquina de costura? Nunca mais! O doutor não quer... Diz que faz muito mal para pessoas santas.

sábado, 21 de dezembro de 2013

BENTINHO – Um Conto de Natal
MILTON MACIEL

A luz ficou vermelha outra vez. O menino deu um pulo e começou a andar entre as fileiras de carros estacionados. Era o tempo de contar 30 e eles saiam outra vez apressados. Depois de um tempo muito maior que contar 30, a luz vermelha acendia outra vez. Contar 30 de novo. Nesses escassos contar 30, ele tinha que correr entre os carros e ver se algum estava com a janela aberta; ou se, coisa ainda mais difícil, aceitava abrir o vidro para ele. Em qualquer dos casos, tinha que ser rápido e desfiar suas pedidas tristes:

Moço, um trocadinho, to com muita fome.
Por favor, é pra alimentar meus irmãozinhos.
Minha mãe é doente, moça. De verdade!
Senhor, por caridade, só uma moedinha.

O pior é que Bentinho nunca mentia. Tudo aquilo que ele falava era sempre verdade. Fome era o que ele mais tinha. Não podia tirar nada para si, tinha que levar todo o dinheiro para casa, para comprar comida para os irmãos ainda menores do que ele, que eram cinco. Mais velha que ele só Cidinha, 12 anos, a única que ia à escola. E sua mãe era mesmo doente. Doente de cachaça, era viciada! Não durava em nenhum emprego, vivia tomando porres, faltava. Quando estava sóbria, era uma pessoa boa. Mas a maldita da bebida acabava com ela. Acabava com todos eles.

Hoje Bentinho sabia que era um dia daqueles. Tinha que chegar com dinheiro, senão apanhava. E tinha, além disso, que chegar com a garrafa de cachaça, senão apanhava também. A mãe se descontrolava, parecia outra pessoa totalmente diferente, xingava, batia. Ele contou de novo as moedas no bolso do short. A cachaça, o mais importante, já estava garantida. Era só passar na birosca do Carvão, que ele vendida cachaça pra menor de idade sem o menor problema. Tinha também algo pra comprar comida. Mas precisava se garantir com os trocados da condução: três ônibus pra voltar pra casa, três pra voltar pro ponto amanhã.

Bentinho continuou mais duas horas no desfile entre os carros, o dia até que não estava ruim hoje. Uma senhora abaixou o vidro e lhe deu uma nota de 5 reais:

– Tome, meu filho, vá se alimentar direitinho

Só aí Bentinho lembrou que havia tanta música e tanta propaganda pela cidade por causa de alguma coisa. Tinha mais gente e mais carros nas ruas também. Ele não tinha bem certeza do que era isso, mas mesmo assim assobiou feliz: uma nota de cinco reais, uma raridade! As pessoas normalmente só davam moedas, mas, mesmo assim, eram muito poucas as que davam algo. A imensa maioria mantinha os vidros dos carros fechados. Ou fechavam-nos rapidamente, quando viam que ele se aproximava.  Algumas, de vidro aberto, não lhe davam nada além de uma cara feia. Vez por outra ouvia algo assim: Não se deve dar esmolas. Ou: Dar esmola é sustentar vagabundo.

Ele, vagabundo? Tinha nove anos, trabalhava todos os dias, domingo e feriado inclusive, com chuva ou com sol, com frio ou com calor, toda a manhã e toda a tarde. E até de noite, se a féria estivesse muito ruim naquele dia. Não, ele não era vagabundo!

Mas agora já podia ir. E foi o que fez, saiu mais cedo do ponto, contente com a nota de cinco e as moedas. Passou na birosca do Carvão, pegou a cachaça. Apressou o passo para chegar em casa e ver o que Cidinha precisava comprar de comida praquela noite. Com certeza ninguém tinha comido nada em casa, era sempre assim até ele chegar com o dinheiro do dia. Cidinha, de 12 anos, tomava conta da casa e dos irmãos menores, fazia a comida quando tinham, lavava as roupas, mantinha o barraco limpo e asseado de dar gosto. 

Mas, quando Bentinho saiu da birosca com a garrafa, ficou surpreso ao ver Cidinha andando com pressa, quase correndo. Vinha com uma sacola bem cheia nas mãos, outra nas costas. Parou ao vê-lo e falou depressa:

– To fugindo de casa. Sabe aquele desgraçado do Tião, que se enfia no quarto da nossa mãe e ficam fazendo aquelas coisas e bebendo? Pois é, hoje a mãe tava dormindo de porre, então ele tentou me agarrar. Só que eu já estava preparada, ele já tinha tentado antes. Desta vez eu  fiz que estava com medo, mas fui me encostar no armário quebrado. Quando ele me agarrou, eu peguei rápido o martelo que eu tinha escondido ali pra isso mesmo. Aí virei-lhe uma martelada nos cornos com toda a minha força. Pegou acima da testa, acho que fez um buraco. O desgraçado caiu cheio de sangue no chão e começou a tremelicar os braços e as pernas sem parar. Parecia uma barata envenenada. Aí eu corri pra pegar as minhas coisas, quando ele levantar ele me mata.

– Mas pra onde você vai, menina?

– Pra rua! Pra onde mais eu posso ir? Mas vou ficar viva, pelo menos até aquele bandido me encontrar.

– Mas maninha, como é que vai ser com as crianças? E a mãe? A mãe vai ficar mais louca do que nunca. Mas o pior é: como é que você vai ficar por aí, a rua é horrível, perigosa.

– Olha, Bentinho. Por agora eu vou ficar na minha escola. Não tem ninguém lá, já é férias, eu vou pular o muro de trás e fico por lá, as portas das salas de aula não fecham direito, eu me abrigo numa, durmo sentada. Sei como entrar na biblioteca também, vai ser muito bom.Tem um monte de banheiros, posso tomar banho, não vou passar sede. Só fome.

– Não, fome você não passa. Olha, vou dividir o dinheiro que sobrou da cachaça com você, tem uma nota de cinco, fica pra você. E eu sei onde é sua escola. Pode deixar que amanhã eu passo por lá e lhe deixo mais algum, antes de vir pra casa.

– Bentinho, você é um santo! Obrigada. Mas agora eu preciso ir, tenho que pegar aquele ônibus antes que o monstro venha atrás de mim. Espero você na escola amanhã, você me conta como ficaram as coisas em casa.

Bentinho entrou em casa por volta de 7 de noite, com cuidado. Viu que nenhuma das crianças estava lá dentro, na certa tinham fugido com medo de Tião. Foi quando avistou o mulato esvaído em sangue no chão, sacudindo os braços e as pernas de uma forma muito esquisita. Os olhos estavam esbugalhados, mas não acompanhavam Bentinho. No chão, bem perto, o martelo.

Bentinho sentou em frente ao homem e ficou olhando fixamente para a cara dele. Pensava em sua irmãzinha. Com só doze anos ela ia ter que enfrentar a rua em breve, ia virar prostituta com certeza, ou coisa pior: ladra e drogada. E tudo por causa daquele maldito ali no chão. Por que a martelada não tinha conseguido matar aquele desgraçado? Então Cidinha estaria salva. E tudo continuaria como antes. Ele trabalhava na rua, ela trabalhava em casa e ainda podia estudar, coisa que não interessava a nenhum dos outros irmãos, ele inclusive.

O menino olhou o martelo no chão. Olhou o homem que estava causando toda aquela desgraça, Cidinha condenada para sempre por causa daquele bandido. Então a idéia lhe veio súbita,  como um lampejo. Deu um salto da cadeira, apanhou o martelo. Empunhou-o com ambas as mãos. Abaixou-se e vibrou um golpe tremendo no crânio do homem. Fez uma barulho de coco quebrando. O homem parou imediatamente de sacudir as pernas. Estava feito! No quarto, a mãe ressonava.

Correu para a birosca de Carvão. Entregou a ele o martelo. Falou para todos ali ouvirem:

– Eu matei o Tião, ele estava tentando matar minha mãe. Peguei ele com esse martelo. Bati até matar. O assassino sou eu. Agora vou me mandar. Até.

E correu a esperar o ônibus, ia direto para a escola de Cidinha ali no bairro mesmo, ela precisava saber que estava salva. Podia voltar para casa, podia fazer comida para a criançada, podia seguir tomando conta de tudo. Podia continuar estudando e ter um futuro, pelo menos ela..

Ele? Bem agora ele era um bandido também, um assassino. Nunca pensou que isso pudesse lhe acontecer. Mas não estava triste. Estava até feliz, tinha salvo sua irmã, a pessoa que ele mais amava neste mundo, de uma desgraça total, de uma vida horrorosa. Amanhã a polícia viria atrás dele, ele estaria no ponto, seria fácil encontrá-lo. Contaria a “verdade”. Ninguém ia achar ruim a morte de Tião, bandido com uma ficha corrida de metros. Já ele, era menor de idade, não podia ser preso. Talvez o levassem para uma casa de menores. Mas também era possível que não. Afinal, ele matara para defender sua mãe. Na birosca um homem velho desdentado lhe fizera um sinal de positivo com o dedão, e sussurrara: Esse moleque é um herói!

Lá fora, na noite quente, luzes e buzinas festejavam. Era Natal, mas Bentinho não tinha muito idéia do que era isso. Na certa alguma coisa boa que só acontece para os outros, para os que passam dentro dos carros.