sexta-feira, 16 de maio de 2014

A  PEQUENA WANG LI  丽  
MILTON MACIEL

A pequena Wang Li empunhou com coragem o carrinho de mão. Pai tinha que trabalhar na lavoura de arroz. Mãe ainda tinha que ordenhar mais cabras. Mas o leite para entregar ao caminhão de Zhang Wei já estava ali no latão, quente dentro do carrinho.

Muito pesado para os seis anos de Wang Li! Muito longe para seus pezinhos, mais de um quilômetro empurrando aquele tambor de leite, a roda do carro de mão chafurdando no barro do caminho, época de chuvas. E de frio, muito frio. A pequena Wang Li largou o carrinho, soprou bafo quente em suas mãos duras de frio. Depois retomou a marcha, com o típico estoicismo que as crianças do campo aprendem com seus pais na China. 

Com as chuvas, o caminhão de Zhang Wei só podia chegar até aquele ponto tão distante. E ninguém mais podia levar o leite de Pai e Mãe para Zhang Wei vender. Só a pequena Wang Li. Consciente de sua importância no processo de ganha-pão da família, a garotinha apressou o passo e ainda conseguiu sorrir, apesar do esforço enorme que fazia. Pai ia ficar feliz com sua filha!

Foi quando passou pela beira do pequeno lago que viu a libélula. O animalzinho se debatia dentro d’água, batia as asas e as patinhas, de borco sobre a superfície. O coração de Wang Li apertou. A libélula parecia estar muito cansada. Ia morrer. Que dó! Tão bonita...

Não, o pequeno inseto não ia morrer! Não enquanto ela, Wang Li, estivesse ali. Apanhou um graveto, o maior que encontrou por perto, e se aproximou da água. Não, muito longe! A distância era três vezes maior que a altura dela. Já contando o graveto.

Então ela viu o pedaço de tronco boiando ali na beira. Wang Li não sabia nadar. Colocou os pés na água e ela estava gelo puro. Mas Wang Li achou que aprenderia a boiar com o pedaço de tronco. O lago era fundo. Mãe sempre dizia para ela ficar longe da beira. Mas agora ela não podia obedecer Mãe. O animalzinho ia morrer. E, assim como só ela podia levar o leite para Zhang Wei, só ela podia salvar a libélula agora.

E a pequena Wang Li entrou resoluta na água gelada. Perdeu o fôlego, se assustou porque afundava, mas agarrou-se com força no tronco que boiava. O tronco não afundou. Wang Li era muito pequena e muito magra, o tronco nem se deu conta que ela estava agarrada nele. E ela, intuitivamente, começou a mover suas pernas e o braço livre, precisava chegar na libélula antes que ela desistisse de viver.

Mas a pequena Wang Li não tinha muita força nas pernas e nos braços. E não sabia o que fazer com eles, por isso demorou muito tempo até conseguir chegar onde estava o inseto. A pequena Wang Li não tinha força, mas era muito forte. Sua vontade era uma só e isso a fazia lutar sem parar: ela ia salvar a libélula!

E conseguiu chegar até ela, com o corpo todo quase congelando. Ela sentia muito frio, seus dentinhos batiam. Mas ela sabia que a libélula também sentia muito frio. E que a libélula só podia contar com Wang Li.

Os lábios roxos se abriram num sorriso, a mão direita mergulhou por baixo da libélula e a ergueu triunfante. Levou a mão perto da boca e começou a soprar bafo quente no bichinho. E a libélula começou a dar sinais que reagia, começou a mover suas asinhas com mais intensidade.

Wang Li pousou o inseto no tronco e começou a duríssima jornada de volta à margem. Não sentia mais as pontas do pés, as mãos estavam duras, o corpo todo tremia. E ainda tinha que cuidar para que o tronco não girasse, para não levar a libélula para a água de novo.

Quanto tempo ela persistiu no seu esforço sobre-humano, a pequena Wang Li não podia saber. Mas Wang Li era uma lutadora. E ela e sua libélula chegaram à margem. E saíram as duas da água! Ficaram ambas sobre a relva, exaustas, enregeladas, o tímido sol que ameaçava sair não as podia aquecer. Foi quando a pequena Wang Li ouviu o barulho do caminhão de Zhang Wei, lá longe na estrada. O caminhão parou, esperou um minuto e foi embora!

Não, Pai não ia ficar contente com sua filha. A pequena Wang Li tinha fracassado! O leite estava perdido, Zhang Wei só passaria ali depois de dois dias. Os lábios roxos da menina se abriram para deixar sair muitos soluços. Wang Li chorava. Pai ia ficar triste. Mãe ia ficar brava. Wang Li merecia castigo. Ficou com medo. Mãe ia castigar Wang Li. Se pudesse, não voltaria mais para casa.

Mas não podia. Tinha que voltar e contar a verdade. Suportar o castigo. Que Mãe batesse não importava tanto. Que Pai ficasse triste por causa do leite perdido, por causa do dinheiro que ia faltar... isso deixava Wang Li desesperada.

Colheu a libélula outra vez na mão direita, encobriu-a com a esquerda, fez uma concha, voltou a soprar bafo quente nela. Achou que ao menos a libélula devia estar contente. Wang Li ficaria muito contente também, se não tivesse que voltar para casa levando a terrível notícia.

Fez um esforço inacreditável, ergueu-se do chão. Então lembrou que o leite no latão ainda devia estar um tanto quente, saia fumegante das tetas das cabras. Tirou a tampa do latão com enorme dificuldade, muito dura para a pequena Wang Li. Mas ela não desistia nunca e acabou conseguindo girar a grande tampa. O vapor fumegante saiu de dentro do latão.

Wang Li mergulhou ali suas duas mãozinhas enregeladas e sentiu o calor maravilhoso a lhe devolver os movimentos. Depois fez concha com as mãos e começou a beber o leite morno. Achou que isso lhe daria mais forças.

Abaixou-se, apanhou a libélula que ainda não tinha forças para voar e a afastou do carrinho mais um pouco. Não queria molhá-la. Então voltou ao latão e começou a tirar com as mãos em concha o leite morno e a jogar sobre seu corpo gelado e sobre seus pés endurecidos. Ah, que sensação maravilhosa!

Quando achou que havia esvaziado muito mais da metade do latão, experimentou erguê-lo. Não tinha forças para isso mas tinha que tentar... Conseguiu! E, então, começou a verter vagarosamente o resto do conteúdo do latão sobre o resto do seu pequeno corpo sofrido,a começar pelo alto da cabeça.

Minutos depois, a pequena Wang Li caminhava vagarosamente empurrando o carrinho de mão. Agora estava leve, todo o leite tinha sido derramado!

Toda molhada, suja de barro e leite da cabeça aos pés, o cabelinho liso de leite empastado, os pezinhos nus sem os chinelos perdidos no lago, a pequena Wang Li chegou em casa. Chorava muito.

Mãe a viu primeiro. Entendeu que o leite havia caído do carrinho de mão, que a filha havia feito algo muito errado. Mãe começou a gritar com a pequena Wang Li, que chorou ainda mais. Mãe pegou a fina vara de bater, a garotinha tremeu ainda mais.

Mas Pai chegou por causa dos gritos. Mandou Mãe parar. O que tinha acontecido?

A pequena Wang Li contou a verdade. Mãe tinha lhe ensinado que não se deve mentir, mesmo quando a gente fica com medo. Então Wang Li não mentiu. Mostrou o monte de folhas que havia juntado no carrinho, ali dentro delas a libélula estava protegida, ainda não queria voar.

Mãe ficou mais furiosa ainda. Filha desobediente, tinha entrado no lago perigoso! E tinha perdido todo o leite por causa de um mísero inseto. Pegou de novo a fina vara de surrar.

Pai arrancou a vara da mão de Mãe. Quebrou a vara. Abraçou a pequena Wang Li. Pai tinha lágrimas nos olhos. Sua filha podia ter morrido, isso o deixava agoniado. Mas sua filha tinha feito tudo aquilo para poder salvar uma vida, a vida de um serzinho indefeso que sofria e ia morrer. Isso o deixava emocionado. E orgulhoso, muito orgulhoso.

Sua pequena Wang Li era uma mulher de coragem e de compaixão! E de grande inteligência também. Pai mandou Mãe aquecer um monte de água, sua Wang Li agora ia ficar por muito tempo dentro da água morna, se limpar, se aquecer, parar de tremer para não ficar doente.

Mãe compreendeu que estava errada. Pela primeira vez na vida pediu perdão à pequena Wang Li. Correu para juntar a água e a lenha, ia ferver muitas panelas para sua filha. Pai pegou Wang Li no colo, pegou coberta, envolveu a menina colada nele, aqueceu-a com seu próprio calor, beijava-lhe os cabelos sujos de leite.

Wang Li estava feliz: Pai não estava triste! Pai não se importara com o leite perdido. Pai não deixara Mãe castigar Wang Li. Pai protegia e aquecia sua filha. Pai bom, Wang Li gostava muito de Pai. De Mãe também. Menos, porque Mãe muito gritona e nervosa, Mãe batia muito em Wang Li.

Mas Mãe veio e tirou Wang Li do colo de Pai. Levou-a para a grande tina de água quentinha. E lavou-a cuidadosamente. E desenredou seus longos cabelos negros e lisos. E abraçou sua filha, porque sabia agora que ela podia ter morrido no lago, afogada ou por causa da água gelada.

Mãe agradeceu em sua mente que Pai tivesse quebrado a vara. Não, sua Wang Li não merecia apanhar! Nem agora, nem nunca mais. Mãe tinha apanhado muito, muito, na infância, achava que era assim que se educava filha. Mas o sorriso surpreso de Wang Li, ali dentro da tina de água quente, lhe dizia que estivera errada. Ainda era tempo, tudo haveria de corrigir dentro de si mesma. Pai era um homem bom. Carinhoso, como mãe dele. Ela, Mãe, não sabia dar carinho, não tinha aprendido. Mas não ia mais ser bruta com sua menina.

Nesse momento, enquanto Mãe abraçava o corpinho de Wang Li dentro da tina, algo entrou pela fresta da janela.

Era a libélula, que tinha voado enfim. E voou ao encontro de sua salvadora. Pousou na beira da tina, depois no braço da menina. Ficou ali muito tempo, mexendo as asas lenta e ritmadamente.

E, enquanto duraram seus curtos dias de inseto, a libélula nunca mais se afastou daquela casa. Nunca mais se afastou de Wang Li.

terça-feira, 13 de maio de 2014

A MAIS BELA IMAGEM DO DIA DAS MÃES 
MILTON MACIEL 

No Dia das Mães eu escrevi que esta imagem era, na minha opinião “a mais linda foto de Dia das Mães”. Foi Maria Regina Alves que a encontrou e compartilhou conosco.  Mas eu estava errado. Retrato-me. Esta não é uma fotografia. É um ÓLEO SOBRE TELA, pintado pela artista norteamericana Nancy Howe. O nome é “Tender refrain/First-born”. Então retifico: na minha opinião, esta é a mais bela IMAGEM de Dia das Mães. Justifico:

A pintura em si é um portento. Nancy Howe é autodidata e trabalha em seu ateliê em Vermont. Mas viaja pelo mundo e foi no norte do Quênia, África, que ela encontrou a inspiração para criar esta tela.

Encontrou esta menina-moça, que já é mãe. E encontrou a Beleza Absoluta, para mim. A moça é belíssima, mas mais bela é a corrente de vida que dela flui ininterrupta para sua criança. É uma corrente de vida, pois nasce dela e se transmuta em leite que dá e preserva a vida. E é também uma corrente de energia pura, a energia com que as mães banham e protegem suas crias. Uma energia invisível, a menos que você olhe com cuidado para os olhos também não-visíveis dessa mãezinha. Então você os adivinha facilmente. E percebe como eles estão fixos docemente no serzinho que suga seu peito, este peito também um símbolo beirando o sacrossanto.

E, como se isso ainda fosse pouco, Nancy Howe soube captar e transmitir com total perfeição a beleza dos adornos multicoloridos com que a menina-mãe envolve seu pescoço, seu dorso, seu rosto, sua cabeça, seus pulsos. Arte mais Arte!

E ainda tem mais. Através do amor de mãe da menina queniana pode-se ver o Amor Materno maior que a Mãe África exportou, através do cruel estatuto da escravidão, para quase todos os continentes. Dessa mãe vieram os homens e mulheres que encheram o mundo inteiro de alimentos, irrigando as terras de seus algozes com sangue, lágrimas e suor. A Mãe África mandou seus filhos e filhas, arrancados com brutalidade do seu seio, para que alimentassem o mundo. Deles o banzo, os gemidos, as saudades, as dores e os cansaços fizeram brotar a doçura do açúcar, sob o amargo do látego.

E milhões de mães-pretas deram amorosamente seu seio fecundo aos beiços brancos dos filhos de seus tiranos. Peitos negros sacrossantos!...

E milhões de mocinhas como essa da pintura foram forçadas ao sexo por seus senhores brancos. E pariram os primeiros brasileiros autênticos, os mulatos.

Estranha coincidência que hoje seja 13 de Maio. Estranha coincidência que hoje mais de 200 meninas nigerianas estejam escravizadas por seus seqüestradores terroristas, tratadas como alimárias.

Mas não é estranha coincidência que em todos os cantos do mundo milhões e milhões de jovens mulheres como esta estejam sendo, AGORA, discriminadas, agredidas, estupradas, seviciadas, forçadas ao casamento, repudiadas, abandonadas por conta própria para criarem sozinhas seus filhos. Isso vale para a África, para nossas Américas, para a Europa, para a Ásia, para a Oceania, para todas as mulheres de todas as raças.


Triste humanidade primitiva deste belo planeta Terra, que ainda não é capaz de ver nessa menina-moça e menina-mãe apenas o que ela tem de sublime e sagrado. Porque é um SER HUMANO somente! E, ainda mais, porque é um ser humano especial: é mulher. E é MÃE!

domingo, 11 de maio de 2014

QUANDO UMA MULHER CRIA UM FILHO 
MILTON MACIEL 

Quando uma mulher cria um filho
e trilha então essa difícil vereda,
cria garras de felina e mãos de seda.

(Com estas, o acarinha suavemente.
Com aquelas, o defende, intransigente).

Quando uma mulher cria um filho
Transita num limiar que pode ir
Da ventura infinita à dor tantalizante.

Passa a lutar como os que jamais esmorecem
(Mas gasta muito mais com cor, tonalizante,
Porque mais cedo seus cabelos embranquecem).

Quando uma mulher cria um filho
– seja do seu ou de outro ventre vindo –
atinge enfim a dimensão do amor infindo.

(E se faz bela, pois esse amor refulge um brilho,
que pulsa mais além do que a visão supõe).

Porque essa mulher, SIM...
É MÃE!

sexta-feira, 9 de maio de 2014

As vantagens de aprender a ARTE DE ESCREVER e a ARTE DE PUBLICAR  
MILTON MACIEL   

Publiquei meus primeiros três romances em 2008. Em dois o tema era prostituição infantil no Nordeste e no terceiro a vida na Paulicéia Desvairada. Foram livros muito bem recebidos, as tiragens se esgotaram, o que é um típico milagre no Brasil. E, por causa desse sucesso, eu achei que escrevia muito bem.

Mas isso foi só até começar a viver muito mais tempo nos Estados Unidos e a fazer algumas dezenas de cursos para escritores e para editores lá. Foram quase 50 cursos até 2013. Gastei mais de 12000 dólares nisso, a justa paga pela competência dos escritores, agentes literários e editores que nos passavam suas experiências de técnica e de vida, em cursos, seminários, oficinas, congressos e retiros. Foi o dinheiro mais bem empregado por mim nesses últimos anos! A novidade é que eu continuo estudando técnicas de escrita criativa e técnicas de produção, distribuição e marketing de escritores, livros e e-books, contínua e incessantemente. E não pretendo parar, enquanto puder ler e compreender o que leio.

Durante esses anos fui descobrindo que eu não escrevia bem coisíssima nenhuma! Eu era apenas mais do que razoável, era um diamante em bruto, sem qualquer polimento. Hoje, quando faço a releitura daquelas obras de 2008, eu fico estarrecido com a minha inocência e a minha total falta de visão de mercado livreiro. E com a minha arrogância, também. Porque eu me considerava pronto!

Quer saber? Não estou pronto até hoje, quando estou indo para a publicação do meu trigésimo livro! O convívio com gigantes me fez reconhecer meu tamanho menor e me encorajou a lutar para me tornar progressivamente mais competente na arte e na técnica, a mesma meta que orienta os meus passos até hoje.

Hoje não tenho mais aquela visão primária. Vou a todo e qualquer curso que qualquer colega escritor, por mais desconhecido que seja, apresente. E nunca me arrependo, porque não há um só deles em que eu não aprenda mais um pouco. O que me torna, fatalmente, um escritor progressivamente melhor.

Com o tempo, de tanto ser estudante de escritor, acabei me tornando lá professor de escritor. Ou seja, comecei a compartilhar toda aquela massa de conhecimentos específicos que eu havia absorvido e continuava absorvendo. Foi assim que nasceu, em Miami, no ano de 2013, o THE PUBLISHABLE WRITER.

Que agora está obtendo cidadania brasileira. Primeiro em São Paulo, onde criei a Escola Brasileira do Escritor. Em Joinville, onde o curso deve começar com um grupo mirradinho, como seria normal esperar do perfil da cidade. E em Curitiba, onde o grupo se apresenta muito mais substancial, é óbvio.

Nos Estados Unidos, eu fiz assinatura de nove revistas específicas para escritores. Uma delas, a mais velha, The Writer, teve seu primeiro número publicado em 1886, dois anos antes que abolíssemos a escravidão no Brasil, e está viva e ativa, com excelente qualidade e uma pletora de anunciantes até hoje. E no Brasil? Pois é, nós não temos NENHUMA revista de expressão comercial, que possa sobreviver por conta própria, dedicada exclusivamente a escritores e aprendizes.

Lá essas publicações se dirigem a um mercado consolidado de 600 000 escritores e aprendizes, fora os adventícios. E nós, no Brasil, quantos somos? Ninguém tem a resposta exata, nem mesmo a Câmara Brasileira do Livro, entidade dos editores nacionais – melhor dizer: sediados no país, boa parte dos maiores hoje são empresas estrangeiras, o que serve como consolo, porque diz que, apesar dos pesares, os empresários por trás delas confiam no mercado brasileiro e sua possível expansão.

Fui um bom estudante, aprendi bem minha lição. Hoje, como escritor e ghost writer, vivo somente do que escrevo. Sou escritor full time, o sonho dourado de todo aspirante a escritor. Por outro lado, tendo aprendido muito bem os caminhos da auto-publicação e da comercialização direta, nos últimos quinze meses, no Brasil, publiquei uma média de quase um livro por mês, entre romances, novelas, contos, poemas, feminismo, literatura técnica e divulgação científica. Qual o milagre? Acaso sou um gênio? Ora, é claro que não!

Apenas aprendi a escrever de forma direta, objetiva, rápida, dentro de um arcabouço de técnicas que evita todo o desperdício de tempo e de esforço, sem sacrificar a emoção e a criatividade. Cada capítulo que concluo (e, pelo geral, concluo um capítulo por dia; meus seguidores no blog sabem que eu posto o capítulo no mesmo dia em que ele é escrito, de forma que tenho, nesse blog, diversos livros inteiros, que nascem ali e só depois ganham uma segunda vida através do livro impresso); cada capítulo que concluo, dizia eu, não precisa de revisão mais do que ortográfica e de digitação. É muito difícil que eu tenha que reescrever um parágrafo. Honoré de Balzac ficaria horrorizado comigo, ele que chegava a reescrever uma mesma página de livro mais de 16 vezes.

E porque eu não preciso revisar como Balzac? Duas hipóteses seriam possíveis: A primeira, válida certamente na opinião de muitos (reconheço, não sou um tipo muito popular no meu meio!): é um arrogante! A segunda: o cara aprendeu a escrever de forma direta, objetiva, sem depender de exaustivas etapas de reescrever e reescrever e reescrever. Pois foi isso mesmo que aconteceu comigo, ao longo desses mais de sete anos em que tenho sido um aprendiz da Arte de Escrever e da Arte de Publicar.

Minha vida literária é um testemunho vivo de que vale a pena aprender essas duas Artes.

terça-feira, 6 de maio de 2014

O  POETA E O GUASCA – 6 
MILTON MACIEL 

Se foi pro Rio de Janeiro
Cuidá da sua carreira.
Meu sonho ruiu por inteiro,
Minha vida se fez poeira.
Nunca disse que me amava,
Só que nós... não combinava.

Nós fomo piazito junto
Nós tava sempre colado.
Sempre a gente tinha assunto
Nós crescemo lado a lado.
E na escola da fazenda
Estudei com minha prenda.

Depois ela foi pra cidade
Pra continuá seus estudo
Eu sofri barbaridade,
Fiquei más quieto que um mudo.
Foi por causa dessa dona
Que aprendi a tocá cordeona.

Já que não sou de chorá,
É com a música que eu choro.
E aprendi, só, a versejá,
Que só por verso eu imploro.
Imploro na cantilena,
Que volte Maria Helena.

Maria Helena, você disse?!!
Esse é o nome de sua amada?

Sim meu patrão, esse mesmo,
Minha eterna namorada.

Pois também Maria Helena
É o nome da minha amada!
Só que a minha, como eu,
No Rio se estabeleceu.

Que cosa más engraçada,
Veja bem isso o senhor:
Do mesmo nome é chamada
Quem manda no nosso amor.

A minha mora no Rio
Na faculdade é minha aluna.

Também no Rio vive a minha,
É de olho azul e loirinha.
E a sua, como é que é?

Deixe que eu lhe mostre, amigo,
Com esta poesia minha:

“Cerúleos reflexos, céus dolentes prometidos,
preenchem órbitas de onde sempre estou ausente.
Escravo eu de promessas não cumpridas,
distantes.
Esvoaçam fios de ouro, eu desespéro.
Enquanto
o Redentor olha pra mim, indiferente.
E é como se eu ouvisse:
Ela ama outro! Ela ama outro!”

Cue pucha, meu patrão,
Eu não entendi foi nada!

Não se importe, meu amigo,
Eu já esperava por isso.
Sempre acontece comigo,
O meu texto é denso e omisso.
E o que eu escrevo, é sabido,
Nem sempre será entendido.

Mas deixe que traduza eu,
Como se fosse francês,
O que minha mão escreveu
Nesse estranho português:
Cerúleo é azul:
os olhos dela,
órbitas, cor do céu,
reflexos.
Eu ausente deles,
dessa janela,
Onde reverbero
versos desconexos.
Onde desespero
e até o Cristo
me é indiferente.
Fios de ouro:
O esvoçante cabelo.
Loiro!

Bueno, entonces me parece
Que a sua, tal qual a minha,
Tem olho azul e é loirinha.

Isso mesmo, amigo gaúcho!

Só que ela, por quem padece,
Pela parte que le toca,
É uma loirinha carioca.

Mais coincidência, meu caro!
Veja, a coisa continua:
A minha Maria Helena
É gaúcha como a sua.
As duas vivem no Rio,
Não parece um desvario?

Ah, é gaúcha a sua também?
E de onde que ela vem?

Pois é aqui desta estância,
Da qual você é o capataz
Eu vim visitar o seu pai
Um gaúcho de importância
Que é o seu chefe... Rapaz!!!... 
Então você é o Juvêncio!!!

Deus do Céu, BARBARIDADE!!!...

Foi só então que aqueles dois
Perceberam, finalmente,
Que existia apenas UMA
Maria Helena. Somente!

No sofá os dois sentaram,
por longo tempo silentes.
Para dentro de si olharam,
Dos seus dramas mais conscientes.
Dramas terríveis aqueles,
Brincava o destino com eles!

Não era um destino qualquer:
Amavam a MESMA mulher!

CONTINUA...

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O POETA E O GUASCA – 5 
MILTON MACIEL 

“Essa é a grande diferença
Entre Vigny e Musset.
Ora, certo está você,
Pra Musset a dor é imensa.
Musset sempre se atormenta,
E o estóico Vigny aguenta.

Deixe então eu lhe mostrar
A poesia de Musset,
Depois me diga você
O que ela lhe faz pensar.
Veja só este poema,
Gritar a dor é seu tema:

“Quel que soit le souci que ta jeunesse endure,
Laisse-la s'élargir, cette sainte blessure
Que les noirs séraphins t'ont faite au fond du cœur:
Rien ne nous rend si grands qu'une grande douleur.
Mais, pour en être atteint, ne crois pas, ô poète,
Que ta voix ici-bas doive rester muette.
Les plus désespérés sont les chants les plus beaux,
Et j'en sais d'immortels qui sont de purs sanglots. »

Deixe que eu traduza agora
Fazendo uma adaptação
Que agilize a compreensão
Pra quem é aqui de fora.
(Traduzir ao pé da letra
Nos leva a muita falseta):

“Seja qual for o tormento que tua juventude suporta,
Deixa-a que se alargue, essa santa ferida
Que os negros serafins te fizeram no fundo do coração:
Nada nos torna tão grandes como uma grande dor.
Mas, sendo por ela atingido, não creias, ó poeta,
Que tua voz aqui embaixo deva permanecer muda.
Os mais desesperados são os cantos mais belos,
Conheço deles imortais que são puros soluços.”

Muito obrigado, meu patrão
Por se preocupar comigo
Facilitar a compreensão...
Esse é um gesto mui amigo!
Pois reconheço, afinal:
Sou pouco mais que um bagual.

Não é verdade, poeta,
Você é um artista de fato.
E a sua arte, completa,
Me deixou estupefato.
Por isso reconheci:
Você é mesmo um De Vigny.

Sorte minha que escutei
O seu canto solitário.
No mesmo instante pensei:
Que artista extraordinário!
E você foi o meu cantor,
Pois sofro da mesma dor.

Lhe agradeço, meu patrão
Vosmicê é bom demais.
Então no seu coração
Também hay os mesmos ais?
Uma ingrata le abandonô,
Como aquela que me deixô?

Isso mesmo, camarada.
Sofro um amor impossível.
Por um outro apaixonada,
Ela é a mim insensível.
Pra minha infelicidade,
Só tenho dela amizade.

É cosa triste, sim senhor.
É duro não ser amado,
Quando a gente sente amor.
Mas, bah, é duro esse fado!
Há anos vivo essa sina,
Por falta dessa menina.

Se foi pro Rio de Janeiro
Cuidá da sua carreira.
Meu sonho ruiu por inteiro,
Minha vida se fez poeira.
Nunca disse que me amava,
Só que nós não combinava.

Nós fomo piazito junto
Nós tava sempre colado.
Sempre a gente tinha assunto
Nós crescemo lado a lado.
E na escola da fazenda
Estudei com minha prenda.

Depois ela foi pra cidade
Pra continuá seus estudo
Eu sofri barbaridade,


CONTINUA…

domingo, 4 de maio de 2014

O POETA E O GUASCA – 4
MILTON MACIEL

Quand on voit ce qu'on fut sur terre et ce qu'on laisse,
Seul le silence est grand; tout le reste est faiblesse.
 (Alfred de Vigny)

Quando vemos o que fomos na terra e o que se deixa,
Só o silêncio é grande; todo o resto é fraqueza.”

Cuepucha, patrão, que lindo!
Bonito barbaridade...
E o que ele diz é verdade.
Não se deve andar caindo
Pelos cantos, como um fraco,
Que é mais embaixo o buraco.

Pois é: ‘o silêncio é grande
E todo o resto é fraqueza!’
Pra mim isso é fortaleza
De um macho que se garante.
Esse tal francês De Vigny
Seria mui bem-vindo aqui.”

“Pena que o homem nasceu
Há mais de duzentos anos.
Viveu sérios desenganos,
De um brabo câncer morreu.
Porém nunca se queixou,
Tudo firme ele aguentou."

H
oje, ouvindo o seu cantar
Foi dele que me lembrei.
E foi também o que achei
Por seu modo de falar:
Nós temos no pampa, aqui,
Outro Alfred de Vigny.”

“Quem me dera, meu bom patrão
Ser poeta como esse aí!
Desse Alfred de Vigny,
Só tenho a disposição.
E o senhor, na sua poesia
Tem a mesma valentia?”

“Que nada, meu companheiro,
Eu sou é um grande chorão!
E a dor no meu coração
Eu berro pro mundo inteiro.
Eu confesso pra você:
Sou um Alfred de Musset!”

“Outro Alfredo, meu patrão?
Também é poeta francês?
Ou quem sabe ele é talvez,
Poeta de outra nação?
Esse Alfredo Demissê
É bueno também por quê?”

“Sim, ele é francês também,
Poeta famoso e muito bom,
Mas verseja em outro tom,
Que, acho eu, não lhe convém.
Esse é um chorão como eu,
Mas nada ruim lhe aconteceu.”

A vide lhe foi mais mansa
Que a do outro Alfred poeta
Quase uma festa completa
Dessas que você não cansa.
Até a morte lhe sorrindo,
Pois ele morreu dormindo.

Mesmo assim foi um chorão,
Como se muito sofresse,
Sobre ele se abatesse
A desgraça, a solidão.
A causa do seu final?
Foi a bebida o seu mal.”

“Bueno, patrão, eu entendo
O que hay com certas pessoas:
Elas no fundo são boas,
Mas na vida vão sofrendo.
Sofrem mais com a realidade.
Têm mais sensibilidade.”

A mesma dor que pra uns
É como um talho de facão,
Prá outros é só um beliscão,
Como as coisas mais comuns.
Estes soltam menos ais.
E aqueles... gemem demais.”

“Essa é a grande diferença
Entre Vigny e Musset.
Ora, certo está você,
Pra Musset a dor é imensa.
Musset sempre se atormenta,
E o estóico Vigny aguenta.

Deixe então eu lhe mostrar
A poesia de Musset,
Depois me diga você
O que ela lhe faz pensar.
Veja só este poema,
Gritar a dor é seu tema:

“Quel que soit le souci que ta jeunesse endure,
Laisse-la s'élargir, cette sainte blessure
Que les noirs séraphins t'ont faite au fond du cœur:
Rien ne nous rend si grands qu'une grande douleur.
Mais, pour en être atteint, ne crois pas, ô poète,
Que ta voix ici-bas doive rester muette.
Les plus désespérés sont les chants les plus beaux,
Et j'en sais d'immortels qui sont de purs sanglots. »

continua...               Figura: Alfred de Musset