quinta-feira, 8 de novembro de 2018


O FECHAMENTO DE LIVRARIAS – 3ª Parte
MILTON MACIEL


Antes de prosseguir nossa viagem interna pelo Brasil livreiro e sua derrocada de livrarias físicas, vamos embicar nossa proa para terras estrangeiras primeiro. Aproveito que fiz menção às livrarias de Buenos Aires, a cidade que tem o maior número de livrarias por habitante em todo o planeta Terra e cujos habitantes leem quatro vezes mais livros per capita do que os brasileiros – para ver como está a situação por lá, com especial ênfase nas terras portenhas. Depois passaremos pela França e outros países. Tudo para que o nosso leitor possa entender o contexto da nossa situação no Brasil, dentro de uma perspectiva mais ampla.
Acontece que a crise também pegou por lá. E lá o bicho foi mais feio que no Brasil. Se aqui podemos falar numa certa resiliência e numa manutenção e até num discreto crescimento das vendas de livros em 2018, não obstante o fracasso das redes de livrarias – como mostrei no artigo anterior desta série a – na Argentina o efeito da crise foi mais devastador. Especialmente nesta fase de Governo Macri.
Fui buscar o relatório da Câmara Argentina do Livro para este mês de outubro de 2018. E o que leio ali? Que continua a queda vertiginosa das vendas de livros no país hermano: Desde 2015 até outubro de 2018 a queda é da ordem de 30%. Trinta... por... cento!
Portanto, também na Argentina, também em Buenos Aires, ocorre o fechamento de livrarias. Mas, paradoxalmente, ele é menor do que no Brasil, onde a crise econômica não chegou a ser tão grande como lá. Acontece que há diferenças imensas entre os dois mercados livreiros. Na Argentina a concentração foi muito menor, quase não há grandes redes de livrarias, a imensa maioria é de livrarias independentes; e há um enorme número de livrarias muito pequenas e, ao mesmo tempo, tradicionais, com décadas de existência.
E há outra diferença que pesa muito: lá o livro eletrônico mal começou a abrir o seu caminho próprio, ainda nem existe uma Amazon.ar. E as vendas dos livros físicos por Internet não empolgam tanto como aqui. A Argentina lidera na América espanhola como país com maior venda de livros e jornais impressos, mas perde feio na venda de publicações digitais.
Tenho estudado o mercado argentino, de olho na edição de outros livros meus em espanhol (já tenho um, lançado em 2013). Por isso sei que não posso esperar muita venda de livros eletrônicos nesse que é o maior mercado consumidor latinoamericano de livros em castelhano.
O estudo “El Mercado de Médios de Latinoamerica” me diz que que a Argentina fica quase na lanterna em termos de e-readers e tablets. Ou seja, por lá o império do livro de papel terá uma vida muito mais longa do que no Brasil. Devo me preparar para entrar, portanto, com livros físicos, isso num momento em que há uma forte retração de consumo para eles. Mesmo assim, a excelência do mercado do ponto de visto qualitativo mostra que o investimento vale a pena.
Até porque os livros em espanhol terão consumo também em todo o mundo hispanófono, que é muitíssimo maior do que apenas Argentina, México e Espanha. Ele dá a volta ao mundo todo a partir dos Estados Unidos. São 570 milhões de pessoas (45 milhões só nos EUA), o segundo idioma mais falado do mundo, atrás apenas do chinês. Muito embora, quando consideramos como idioma LIDO e como idioma internacional de comunicação, o inglês ocupe esse segundo lugar.
Sendo de um país muito mais culto e muito mais tradicional que o Brasil, os habitantes da Argentina têm com suas livrarias uma relação muito mais profundamente arraigada desde a mais tenra infância.
Lembro quando, no final dos anos 70, passei uma temporada em Buenos Aires acompanhando minha amiga Gal Costa – que, com apenas 13 dias numa cidade onde nunca se apesentara, ganhou um disco de platina, algo inédito no país, graças ao seu sucesso “Um dia de domingo”, de Sullivan e Massadas. Pois bem, nos poucos dias longe do público, aproveitei para visitar algumas das famosas livrarias de Buenos Aires. Sim, a capital argentina é uma das poucas cidades do mundo onde livrarias são grandes  pontos turísticos. Inclusive oficias!
Fiz questão de conhecer, entre outras, a Libreria Alberto Casares, informalmente chamada, hoje em dia, de ‘a livraria de Borges’, pois o grande escritor ia a ela com muita frequência e nela passou no último dia de sua vida, procurando livros apesar da cegueira, poucas horas antes de morrer. O dono, o simpático Alberto Casares anda estava vivo no ano passado, 2017, com mais de 80 anos. Espero que continue assim, com muita força e saúde. Casares tinha horror das grandes redes de livrarias, a que chamava de supermercados de livros, dizendo que elas não têm alma, não têm livreiros que conheçam bem os livros e o gosto dos fregueses um por um, que visam somente o lucro e nada mais”.
Ele ia mais adiante, explicando: “Desde a época da independência, a elite de Buenos Aires se pretendia europeia, logo comprava muitos livros. Era costume que os dotes das noivas na época incluíssem uma grande biblioteca vinda da Europa. E, com isso, criou-se uma cultura para as artes, não só a literatura, mas para os quadros, o teatro, a ópera”.
Outro caso é o de uma das poucas redes livreiras do país, dona da  El Ateneo Grand Splendid. Imensa, suntuosa, a loja (foto acima) ocupa o espaço do que foi antes um dos grandes teatros de Buenos Aires. É um cartão postal da cidade, ponto obrigatório de visita de viajantes com um pingo de cultura que seja, que vão lá nem que seja só para colher fotografias e selfies – como acontece com a famosa Lelo e Irmão, de Porto, Portugal (foto abaixo), embora a Atheneo não tenha a imponência do estilo neogótico do prédio da centenária Lello, considerada pela CNN, em 2014, a livraria mais bonita do mundo. Nem tenha tido como sua frequentadora habitual uma britânica então muito pobre, uma certa J. K. Rowling, que viveu na cidade do Porto antes de escrever sua saga Harry Potter e inspirou-se no prédio e nas escadarias da Lello para compor seu cenário de Hogwarts.
O gerente atual da Atheneo, Juan Pablo Marciani, diz;: “Os livros em Buenos Aires são como o tango”. E o que explicaria esse apelo do livro de papel? Ele explica: “A cultura do papel é muito importante para nós. E não ter acesso a meios digitais como tablets ou livros eletrônicos faz as livrarias muito necessárias. “Que outra cidade do mundo tem uma livraria entre suas atrações turísticas mais procuradas?”
Menos, Pablo, menos! Muitas outras cidades mundo afora, Pablito! Menos no Brasil, é claro. Até porque, apesar das crenças portenhas, nem Maradona foi o maior jogador do mundo e nem Deus é argentino ainda – embora o papa já o seja. Se você passar por Lisboa, Pablo, não deixe de dar um pulinho na livraria Bertrand, no Chiado, considerada em 2011, pelo Livro Guinness dos Recordes, como a livraria mais antiga ainda em funcionamento no mundo. A Bertrand foi fundada em 1732, Pablito!
Nossa próxima viagem será para a França E Estados Unidos. Até breve, senhoras e senhores passageiros.

CONTINUA

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