A ARTE E A TÉCNICA DO ROMANCE (LIVRO)
MILTON MACIEL
1 – A FICÇÃO E SEU MERCADO NO BRASIL (1a. parte)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm. (Autopsicografia – Fernando Pessoa)
Mestre Pessoa diz tudo. O poeta, que é um ficcionista tanto como o contista e o romancista, é um fingidor. Na verdade, devemos dizer que é um bom... mentiroso.
Eu e você, ao escrever ficção, vamos mentir muito para o nosso leitor. Vamos inventar uma história que não acontece, cheia de gente que não existe. Mentimos descaradamente! Mas esse é um jogo de cartas marcadas: a gente finge, mente, e o leitor acredita. Ri conosco, chora conosco, fica furioso, ama e odeia personagens. Se não somos bem sucedidos nas nossas mentiras, então ele odeia os nossos livros e nos odeia a ambos.
Mas, de qualquer forma, o que nós fazemos com nossas mentiras cuidadosamente arquitetadas é provocar-lhe emoções. É para tê-las que ele compra nossos livros. A vida dele não se completa sem isso. Ele precisa disso. Isso é ARTE!
Arte é o que fazemos ao escrever ficção. Tiramos da nossa memória, dos nossos conhecimentos conscientes, das nossas pesquisas, da nossa própria vida, da nossa experiência, das nossas relações, do nosso inconsciente – e até do inconsciente coletivo – as ideias e as emoções que transmitimos à mente e à sensibilidade de quem nos lê. Fingimos tão completamente que as pessoas que lêem o que escrevemos passam a sentir a dor – ou a alegria – que elas não tinham até então. Simples assim.
Simples de conceituar. Não tão simples de construir, isto é, saber mentir bem. Ou seja, não basta saber mentir, é preciso saber mentir muito bem! Senão o leitor não sente as emoções que pagou para sentir. E nunca mais compra um livro seu ou meu.
Bem vindo, portanto, ao reino da fantasia, do fingimento, da mentira piedosa ou maldosa: o reino da Ficção.
FALANDO HONESTAMENTE
E já que vamos nos aventurar no reino do fingimento e da mentira, a primeira coisa que vamos fazer é sermos absoluta-mente honestos. Com você, explique-se, não com o pobre do leitor. Esse a gente vai seguir enganando, que é para isso que ele nos paga.
É a honestidade que permeia este livro e os seguintes da série COMO ESCREVER FICÇÃO que me obriga a ser direto e franco com você. A começar por chamá-lo de mentiroso. E a continuar por elogiar em você justamente a sua capacidade de mentir bem. Você vai ter que se tornar um ótimo mentiroso, um esplêndido fingidor, para poder escrever boa ficção.
Só que, antes de estimulá-lo a entrar neste oceano encoberto de brumas da vida de escritor, eu quero lhe falar umas poucas verdades que aprendi na prática de fingidor, editor e professor de escrita e marketing de livros. Vamos começar bem pelo começo e não creia que o que vem a seguir, já no próximo parágrafo, está fora de ordem. Não, ocupa o exato e devido primeiro lugar na ordem de prioridades.
POR QUE SER ESCRITOR?
O que você, o que eu, o que Stephen King, o que Machado de Assis, o que Paulo Coelho querem ou quiseram ao se tornarem escritores profissionais?
Eu diria que, antes de mais nada e acima de tudo, o que queremos é produzir arte. Falei de propósito de King e de Coelho, porque eles são grandes sucessos de bilheteria, faturam milhões de dólares anuais. São, ao mesmo tempo, exceções absolutas.
Nosso mais famoso e competente escritor, o velho e ótimo Machado, não conseguiu enriquecer com seus muitíssimos livros. Livros tão bons que são sucessos até o dia de hoje, mais de 100 anos depois de sua morte. E o mesmo acontece com a ampla maioria dos ficcionistas mais talentosos deste nosso país. País ainda de poucas letras, onde o dinheiro para as letras é sempre dos mais escassos – especialmente quando as letras foram aplicadas no papel ou na telinha através de autores brasileiros.
O que quero dizer, com toda a crueza é o seguinte: se você quer escrever para ficar famoso e rico, pode começar a contar com mais dificuldades do que deve estar esperando. O famoso até que é possível: como vamos ver bem mais à frente, é muito mais uma questão de investir em uma boa assessoria de imprensa e não tem muito a ver com a qualidade do seu trabalho.
Já o ficar rico a la Paulo Coelho... Bem, não vou dizer com ru-
deza cruel para você tirar o seu cavalo da chuva. Acontece. Às vezes. Com um em cada 10 mil autores, algo assim. Portanto, se você quer escrever para ficar rico rapidamente, recomendo-lhe que o faça tendo ao lado do teclado ou da caneta alguns volantes da Mega Sena. suas chances podem ser maiores com a Caixa Econômica Federal.
Então, sem deixar de lado a visão otimista que, de vez em quando, surge um novo Paulo Coelho milionário no Brasil – e esse pode ser exatamente você! – vamos considerar o que sobra de possibilidades.
Eu afirmei categoricamente que nós escrevemos para fazer arte. Creio que isso é fundamental para que a gente possa ser bom ficcionista.
Escrevo por puro prazer. Por deleite. E por necessidade. Necessidade emocional! Escrevo exatamente da mesma forma como toco meu Korg ou meu Casio, teclados com o quais fiz as pazes com a música em minha vida e que estão aqui formando um ângulo reto com a mesa em que dois notebooks e um monitor enorme mostram as palavras que estou digitando. Basta o girar da minha poltrona e deixo de estar de frente para dois teclados de computador para ficar de frente para dois teclados de sintetizador musical.
Escrevo como toco: por necessidade emocional. Qualquer pessoa que toque um instrumento sabe o que estou dizendo. Como tão bem expressou Caetano, na letra de sua “Tigresa” (era a Sonia Braga que ele se referia): “Como é bom poder tocar um instrumento”. Stephen King toca guitarra!
Ora, o instrumento do escritor moderno também é um teclado, embora, em casos hoje bem mais raros, ainda possa ser uma caneta ou um lápis. Mas, seja ele qual for, é o nosso instrumento, através do qual comunicamos a emoção que estamos sentindo. Por isso tudo que escrevi até agora é que eu recomendo:
Se você está pronto pra escrever pelo prazer de escrever, para
fazer do teclado do computador ou da caneta o seu instrumento musical, você está pronto para ousar ser um escritor.
Assim como no piano ou na flauta, só precisamos aprender COMO SE TOCA o instrumento. E isso é perfeitamente possível de se aprender. Leva ANOS, é bem verdade. Muitos, se você só faz exercícios e toca de vez em quando. Menos, se você toca todo santo dia por paixão, horas a fio, e aprende um monte de músicas novas por puro prazer, puro deleite.
Para se tornar um bom escritor, você tem que fazer exatamente a mesma coisa: tocar o seu teclado ou caneta todo santo dia, horas a fio, por puro deleite, por puro prazer. Então escrever não cansa, não satura, não desanima. Pelo contrário: entusiasma, anima, você tem que se obrigar a parar porque é hora de comer, porque é hora de dormir, porque é hora de ir trabalhar noutro lugar, se tal ainda for o seu caso.
Eu me imponho uma rotina diária de escrever entre 10 e 20 páginas de livro por dia. É muito fácil quando escrevo ficção, um tanto mais trabalhoso quando escrevo não-ficção. Mas é perfeitamente exequível. Faço isso para mim e faço-o para terceiros, pois sou muito ativo também como GHOST WRITER, o escritor fantasma, que escreve livros em que outros aparecem como autores e ele, como bom fantasminha, desaparece na hora da publicação
Se você escreve 10 páginas de livro por dia, no fim de 20 dias você já ultrapassou o necessário para publicar um livro padrão de 200 páginas. Se escrever todos os dias (como eu faço), então terá 300 páginas ao fim de um único mês. Essa é parte mais fácil e mais rápida. Depois vem a fase mais importante e mais crucial, a da REVISÃO e reescrita, que pode lhe tomar mais de um mês para ficar bem feita.
Contudo, suponhamos que você não possa dedicar tanto tempo à sua escrita. Que você só possa dispor de uma hora por dia de semana e quatro horas no fim-de-semana. Uma página de livro corresponde em média a 1500 caracteres com espaços (ou 1500 toques). Em ficção, quando o nosso problema não é o que escrever, mas como conseguir escrever tão rápido aquilo que nos atropela os dedos a partir da mente e da imaginação, o tempo para digitar esses 1500 toques é de aproximadamente 10 a 14 minutos. O que pode corresponder a quatro páginas por hora, pelo menos.
Nesse ritmo, para produzir 10 páginas no dia precisa-se de duas horas e meia de trabalho concentrado. Horas que são também de prazer, horas em que você esta tocando seu instrumento e se deleitando com o som e a harmonia do que escreve.
E isso que eu tenho um sério defeito: nunca aprendi a digitar num teclado sem olhar para as teclas. E tenho estranhos automatismos, que me levam a repetir sempre os mesmos erros. Por isso detesto os advérbios terminados em mente, porque quase sempre eu digito metne: escrevo erroenametne erroneamente. Imediatamtne o corretor do Word sublinha a palavra esquisita em vermelho e eu vou ali e corrijo, bufando e me xingando por não ser capaz de parar um mês para aprender a digitar sem olhar o teclado, o que poderia talvez quase duplicar minha produção. Isso já tem pra lá de vinte anos!
A vantagem de escrever com o Word é que ele, além de ter um razoável corretor de textos, que serve para alertar você de barbaridades como essas e outras mais (geralmetne digito proque em lugar de porque, Apulo em lugar de Paulo), permite que você faça uma coisa maravilhosa: você já escreve seu texto dentro do formato final do livro que está criando. Sabe quando cada página está terminando, quando a seguinte está começando, quando está na hora de terminar um capítulo. E até quando é hora de fazer uma pausa para descansar, andar uns passos, sacudir o esqueleto, tomar um cafezinho ou coisas assim (não recomendo cerveja nessas horas), sem interromper uma linha de pensamento importante.
Mesmo que você venha a produzir apenas duas páginas por dia,
no fim de um ano você terá mais de 700 páginas prontas para revisão e editoração. Isso, na prática, pode dar três livros de 240 páginas ou dois livros de 360 páginas, ou 1 livrão de 720 páginas por ano! Não é pouco. Em 10 anos você terá 30 livros padrão, nada mau.
E, convenhamos, escrever só DUAS páginas por dia é meta de preguiçoso contumaz, caramba. Significa trabalhar somente MEIA hora por dia no seu livro. Mas veja, mesmo produzindo assim, como a proverbial tartaruga, você pode chegar ao fim de um ano com até três livros publicados – ou aguardando publicação. Logo, falta de tempo para escrever não vai colar!
Continua: Ah, a publicação !
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