sábado, 22 de novembro de 2014

O FILHO DA EMPREGADA    
MILTON MACIEL

Pouco antes das seis da manhã, ainda cheirando a fumaça da lareira, coloquei o silenciador na arma. Entrei de novo no quarto do meu irmão, que ressonava alto. Envolvi a ponta da arma no pano espesso que tinha levado para recolher os resíduos de pólvora, encostei-a no peito daquele ladrão corrupto e ganancioso que dormia. E comecei a lembrar de tudo, desde nossa infância em casa:

“Moleque é bicho do diabo!” Tio Damião estava certo, a gente era mesmo bicho do diabo, um par de moleques endiabrados e loucos para aprontar – como, aliás, todos os moleques da nossa idade. Eu, 9 anos, meu irmão 10. Aí apareceu o filho da empregada, de 5. Um prato cheio para nós.

Não lembro o nome do moleque, só sei que a mãe dele, a empregada, o chamava sempre pelo apelido: Sossôra. Era branco, pálido, transparente, no que tinha saído à mãe. O filho de Rosa tinha, no entanto, duas características muito próprias: enormes e profundas olheiras; e um olhar triste, parado, sorumbático. Tudo isso num menino magrinho, com não mais que cinco anos.

A gente não sabia por que cargas d´água nossa mãe tinha aceitado que a empregada trouxesse o filho para morar com ela no quartinho dos fundos. Era nos tempos em que havia empregadas domésticas a dar com pau e era comum que elas dormissem no emprego. O fato foi que nós dois não gostamos daquela invasão do nosso espaço infantil. A gente não queria outro moleque pela casa. Ou, talvez, tenha sido mais uma coisa de maldade mesmo, algo de que as crianças em geral estão sempre cheias, enquanto morrem de rir dos adultos que falam da inocência das crianças.

A gente era bicho do diabo, de inocente não tinha nada e destilamos todo o nosso arsenal de maldades contra o pobre do Sossora. É que o infeliz do moleque nos irritava, com aquele seu jeito de songamonga, aqueles olhos de coruja e os constantes choros pelos cantos da casa. O porcaria era um chorão, manteiga derretida, chato. A gente conclui logo que ele era um nojento! E, como tal, merecia nosso repúdio e reação.  

Começamos logo a aprontar todas pra cima dele: dar sustos, atiçar os cachorros pra latirem contra ele, esconder as poucas coisinhas que ele tinha. Na verdade, o que a gente queria é que aquele pateta fosse logo embora da nossa casa. Mas sabíamos que isso implicava em conseguir que a mãe dele fosse despedida do emprego. Então passamos a agir contra filho e mãe.

Roubamos dois anéis de estimação da nossa mãe e escondemos no quarto da empregada. O sumiço foi imediatamente acusado pela dona. Como era natural, a suspeita foi a empregada. No mesmo dia, à tarde, meu irmão chutou nossa bola de futebol contra a vidraça dos fundos e eu, na maior desfaçatez, coloquei junto com a bola e os cacos de vidro um pé do chinelinho do Sossora, que eu tinha afanado. Foi a gota d´água: Nossa mãe resolveu mandar a empregada embora e, ao fazer a revista das coisas dela, encontrou os anéis sumidos. Aliás, a bem da verdade, nós dois é que, ajudando a revistar, localizamos os anéis escondidos dentro de uma roupa íntima da Rosa, justamente onde a gente tinha colocado.

Nossa mãe ficou furiosa e disse que só não chamava a polícia porque tinha pena do molequinho, que ia ficar só no mundo, se a mãe “ladrona” dele fosse presa. Rosa chorou, jurou inocência, mas não tinha defesa possível. As provas plantadas contra ela e o menino eram conclusivas, indiscutíveis. Sempre chorando muito, ela arrumou suas trouxas sob o olhar vigilante da ex-patroa, deu a mão ao filho e foi embora. 

Nós dois, os bichos do diabo, estávamos esperando pela saída deles no portão pequeno do jardim. Queríamos saborear a nossa vitória, fazer umas caretas feias pro Sossora. Mas Rosa nos surpreendeu. Parou no portão, voltou para nós seus olhos vermelhos de choro e tristeza e falou:

– Eu gostava de vocês, apesar de ver que vocês não gostavam do meu filho. Mas o que vocês fizeram hoje foi uma coisa muito má. A mãe de vocês tem muito bom coração, foi a única patroa que me aceitou com meu filho. Mas vocês não deixaram. Eu sempre fui honesta, mas vocês vão fazer que todo mundo me chame de ladrona. Vocês acabaram comigo e com meu filho, nós vamos ter que ir embora desta cidade, nunca mais eu consigo emprego aqui. Deus permita que vocês possam se curar de tanta maldade. Senão, vocês vão ser adultos muito ruins, vão fazer muita gente sofrer.

Disse as últimas frases olhando bem dentro dos meus olhos e foi embora. Deixou totalmente meu irmão de lado. Ele macaqueava, fazia caretas, ria e dava de ombros. Não estava nem aí, gozava sua vitória.

Mas eu acusei o golpe. Não tinha, é claro, com meus nove anos de pura maldade, imaginado as consequências para a empregada. Estava contente por me livrar da peste do filho dela, mas comecei a me sentir muito mal pensando no que ia acontecer com a pobre da Rosa.

Os olhos de Rosa não me saiam da cabeça. A toda hora eu os via, avermelhados, úmidos, imensamente tristes, derrotados. Incomodava-me a sua passividade, sua incapacidade de externar sua revolta com gritos, palavrões, uns bons tapas, como a gente merecia. Ao contrário, ela era toda dor e derrota. Sossora, como a mãe, tinha os olhinhos baixos, turvos, com lágrimas. Ambos tinham olhos verdes muito claros, de uma cor muito rara de ser ver. Rosa devia ter sido uma moça bem bonita, mas já estava precocemente marcada no rosto magro pelos vincos do sofrimento, sua vida de mãe solteira muito pobre certamente fora uma longa sucessão de desgraças. 

Dois dias depois não aguentei a pressão e tentei convencer meu irmão que devíamos contar a verdade a nossa mãe. Ele ficou uma fera, me chamou de fraco, de maricas e disse que, se eu contasse, ele me dava a maior surra. Apesar de ter só um ano mais do que eu, ele era muito mais desenvolvido e mais forte. Ele me fez lembrar que, se a gente contasse a verdade, nosso pai ia nos desancar no laço, a gente ia apanhar surra de criar bicho. Claro, ele sabia que eu era covarde, morria de medo de apanhar.

Mas nem isso adiantou. Na semana seguinte eu não aguentei mais, procurei minha mãe e contei tudo, tudo mesmo. Que a ideia do roubo e ocultação dos anéis fora de meu irmão, mas a ideia de quebrar o vidro com a bola e colocar ali o chinelinho do menino tinha sido minha. E contei as muitas outras maldades que a gente tinha aprontado com o Sossora. 

Ela ficou horrorizada. Uma, porque percebeu a grande injustiça que tinha feito com uma pobre mulher honesta, contra quem ela já tinha espalhado a fama de ladra. Mas acho que mais horrorizada ela ficou quando percebeu como era mau o caráter dos seus dois filhos. Correu a fazer o relato completo para nosso pai. Este, com certeza, ficou uma fera: nossa atitude contrariava tudo o que ele nos ensinava diariamente!  Mas, como era do seu feitio, não nos puniu na hora. Marcou o castigo para as seis horas da tarde; íamos, como de hábito em casos graves, apanhar de palmatória, com ele deixando previamente especificado duas dúzias de bolos para meu irmão e uma dúzia para mim. Foi a primeira vez que travei contato com uma delação premiada, minha pena tinha sido reduzida ao meio.

Naquele dia apanhei do nosso pai, no dia seguinte apanhei do meu irmão. Que apanhou de novo outras duas dúzias, por ter batido em mim daquela forma tão brutal. Depois a coisa toda passou, a vida seguiu, a gente cresceu, estudou, foi trabalhar, constituiu família, se deu bem na vida.

Fizemos Direito, os dois. Depois fizemos carreira na Polícia Federal. Mas o desejo de Rosa, que Deus permitisse que nós dois nos curássemos de tanta maldade, não funcionou. Nós viramos adultos muito ruins e fizemos muita gente sofrer. Mas isso não era uma coisa que nos incomodasse, porque nós éramos somente corruptos, os que nós fazíamos sofrer eram criminosos e sonegadores, de quem nós extorquíamos dinheiro. E também o povo em geral, quando dávamos cobertura a empresários e políticos que faziam grandes maracutaias com o dinheiro público. Quer dizer, a gente não fazia sofrer assim na lata, olho no olho, era tudo na manobra sórdida. Enriquecemos.

Meu irmão muito mais do que eu. Como já mencionei, eu sou covarde. Ele, ao contrário, é arrojado ao extremo. Dessa forma ele participou de esquemas e golpes muito maiores do que os meus, subiu mais alto na carreira, seus políticos eram muito mais graúdos que os meus. Mas não posso me queixar, ainda assim cheguei aos 44 anos com um bom pé de meia. 

A Primeira Ministra
Um dia, estranhamente, o diretor geral nos designou para fazer a segurança da Primeira Ministra. Devíamos protegê-la, especialmente na residência oficial, depois que ela sofreu o segundo atentado contra sua vida.

Maria Amália Jardim era uma mulher incomparável. Ia fazer 39 anos e já estava no seu terceiro ano como Primeira Ministra. Tinha ampla maioria no Congresso, depois de vencer e desbaratar as quadrilhas de senadores, deputados e funcionários corruptos. Fez uma limpa total na casa. Muita gente perdeu o mandato e foi presa, pois também no Supremo Tribunal Federal tínhamos uma outra mulher de desassombro e coragem, que fazia tudo andar depressa dentro do novo rito imposto sob sua égide. 

Empresários, militares e até mesmo os intocáveis banqueiros foram condenados e presos. Em três anos de mandato, depois de triunfar sobre quatro tentativas de voto de desconfiança no parlamento, mais de 60 homens e alguma mulheres foram parar atrás das grades. Novas regras para concorrências e sistemas rígidos de controle foram implantados. Com isso, várias centenas de funcionários de segundo, terceiro e quarto escalão, ladrões convictos de longa data, foram também enquadrados, expropriados de seus bens, engaiolados. Foi a maior limpa que o país já viu.

Maria Amália Jardim tornou-se um verdadeiro ícone, um ídolo nacional. Ainda mais depois de escapar milagrosamente a duas tentativas de assassinato. Para completar, era uma mulher bonita, delgada, de olhos verdes claros, cabelos loiros cacheados. E fizera carreira liderando movimentos feministas e de luta contra a discriminação a minorias em geral. 

Neste momento ela é praticamente uma unanimidade nacional. Seu governo é o primeiro na história que, no terceiro ano de mandato, tem mais de 90% de aprovação nas pesquisas. E eu, confesso, estou ainda mais encantado com essa mulher fabulosa, ao ver como ela trata a mim e a todos, do mais graduado ao mais humilde, com a mesma afabilidade, paciência e doçura. Maria Amália não é uma chefe, é uma Líder! Ela nos conquista e subjuga a todos, docemente. Sua simples presença é como uma espécie de bálsamo, que anima, eletriza e entusiasma as pessoas. 

Em mim o seu efeito é estranhíssimo. Sendo o corrupto que sempre fui, sua presença e sua ação me fazem desejar ser honesto, apagar todo o meu passado de ganância e desonestidade. É como se a honestidade dela fosse contagiosa, o exato contrário da tal maçã podre que põe o cesto a perder.

A bomba!
Estava eu nesse meu encantamento quando, um dia, caí das nuvens. Meu irmão veio me mostrar, madrugada alta, o que ele tinha descoberto no cofre particular da Primeira Ministra. Ladrão velho quase cinquentão e tira de oficio, meu irmão nunca perdia uma oportunidade de descobrir segredos das outras pessoas, segredos esses que lhe poderiam valer boas somas em dinheiro. Fuçou e fuçou, com equipamento de arrombador, até que conseguiu descobrir o segredo do cofre. E o que ele encontrou ali era dinamite pura. Uma bomba!

Ele chegou no meu aposento e me acordou esbaforido. Esperou que eu estivesse bem desperto e sentado à mesa. Então espalhou sobre ela aquele monte de fotografias, cartas, documentos, recibos e exames médicos, ante meus olhos sonolentos. E disse, quase gritando:

– Maria Amélia Jardim é o Sossora!
­– É quem? – protestei eu, que não lembrava há décadas daquele nome.
– O Sossora, o filho da empregada, da Rosa, aquele lesma nojento que a gente expulsou de casa, lembra? A armação dos anéis roubados, esqueceu?
– Tá, tô lembrando desse Sossora, mas ...o que o moleque tem a ver com a nossa Primeira Ministra?
– Tem tudo, seu tapado. Ele É a Primeira Ministra!
– Mas que absurdo, cara. Ela é mulher. E um mulherão, por sinal!
– Ela é homem, seu idiota. Fez cirurgia de mudança de sexo. Era a maior bichona antes. Mudou de sexo e passou a usar documentos FALSOS!
– O que?! Nossa Ministra usa documentos falsos? Era homem e mudou de sexo? Cara, você bateu com a cabeça ou voltou a cheirar pó mais uma vez?
– Ah, é? Pois então me acompanhe no exame das provas, estão todas aqui em cima da mesa. Veja esta foto: quem é esta mulher branquela?
– Meu Deus, é a Rosa! A Rosa, como é que pode? ...
– Pois então, veja agora estas cartas, trocadas entre mãe e filho. O moleque está com oito anos, já escreve bem, está num internato para crianças indigentes. A mãe está num hospital público. Vou lhe adiantar a história toda, pra você não perder tempo, faz dois dias que eu examino essa tralha toda: a mulher morreu pouco depois, de câncer, deixou o carinha órfão.
– Que barra! E aí?
– Aí que ele continuou na instituição, cresceu mais, virou seminarista, você precisa ver as notas do cara! Um verdadeiro gênio, só dez e nove e meio.
– Quem diria, aquela lesma ranhenta...
– Pois é, e ele virou a maior bichona também. Aliás, já tinha toda a ferramenta desde pequeno, não é?
– Bem, de macho é que ele não tinha nada; pensando bem, só podia dar no que deu. Mas como é que você ficou sabendo...
– Ah, olha aquela livrinho de capa preta. É um DIÁRIO, mano velho! Um diário onde o veadinho conta tudo, dia a dia, tim-tim por tim-tim. Olha esta foto aqui: é o padre Manoel José. Saca só a dedicatória. Era o amante do Sossora.
– Santo Deus! Um padre...
– Só que descobriram tudo, o padre foi mandado embora para uma paróquia distante. Pois o veadinho largou o seminário e foi atrás do seu homem. Quer dizer, homem... Você vê aí essas fotos dos dois de mãos dadas, dentro de uma mata.
– O Sossora até que ficou um rapaz ajeitado... Praquela lesma ranhenta que ele era...
– Mas a coisa terminou mal: o padre morreu numa emboscada, defendia os sem-terra, os fazendeiros mandaram fazer o serviço nele. Claro que ninguém foi condenado por isso, aquilo era Mato Grosso.
– E o veadinho fez o que, depois disso?
– Primeiro fez um monte de poesias, um monte de escritos falando do sofrimento dele. Depois foi embora para o Rio de Janeiro. Acontece que o padre era de família rica, tinha dinheiro e propriedades, deixou tudo para o Sossora; tinha testamento, porque temia justamente ser assassinado.
– Veado de sorte! Era pobre como um rato de sacristia, virou viúva rica, viúva alegre.
– Bem, pelo que se pode ver aí, logo a seguir, no Rio, ele tratou da cirurgia dele e foi fazer o serviço lá na Itália. Na volta, ele/ela procurou um falsário e lavraram certidão de nascimento em um cartório de uma cidadezinha do interior do Rio. Desde então ele é Maria Amália Jardim. Com esse nome fez as provas de Supletivo, depois passou em primeiro lugar em dois vestibulares: engenharia química e economia. Pois a maluca fez as duas faculdades ao mesmo tempo, estudando de dia e de noite. Aqui tem cópias dos dois diplomas, que são autênticos. De falsa, só a certidão de nascimento.
– Meu Deus, eu estou de queixo caído. Isso acaba com a carreira dela, acaba com ela pra qualquer coisa. É o fim da Ministra, da política, da líder, da unanimidade nacional.
– Que se dane ela. O que eu quero agora é a fama. A imensa fama que virá para quem descobriu e revelou toda essa longa história, esse logro nacional.
– Irmão, será que vale a pena? Tá certo, a fama vai ser sua e só sua, eu não quero nada com isso. Mas fico pensando: será que vale a pena, por um minuto de fama, acabar com o melhor governo que este país já teve em toda a sua história? É prejudicar todo um povo só pra você se pavonear e...
– Que se pavonear, o que, seu primário! E a grana? Você não consegue enxergar a enorme grana que eu vou arrancar dos inimigos dela, dos caras que ela botou na prisão, dos caras que perderam milhões por causa dela? Qualquer um deles pode pagar milhões para se vingar, para destruir esse veadão. Vou ficar ainda mais rico.
– Mas irmão, por favor... Considere... Será que vale mesmo a pena? Você já é tão rico.
– Seu frouxo! Você não tem jeito mesmo, rapaz, sempre foi assim, meio molengão. Não me diga que está com pena da sua Primeira Ministra, você que é tão encantado com ela que até já me falou que quer aprender a ser honesto, daqui pra frente. Você é um tonto mesmo. Ora, vá se catar, deixe eu juntar aqui minhas provas e hoje mesmo, de manhã, vou fazer uns telefonemas, para começar o meu leilão milionário.

Uma atitude
Não consegui dormir mais aquela madrugada. Fiquei acordado, remoendo, remoendo, pensando como era injusto que meu irmão detonasse a nossa política mais honesta e perfeita de todos os tempos. E aí de repente, sem mais nem menos, me reapareceram na lembranças olhos de Rosa, os olhos vermelhos de Rosa. E ouvi suas palavras dentro da minha mente, uma por uma. Sim, eu tinha prejudicado Rosa e seu filho demais. Eu era um moleque do diabo, quem sabe ela não tinha morrido de câncer por minha culpa e do meu irmão. Ela era honesta. Ladrões viramos nós dois. A gente não prestava mesmo, desde criança. 

Eu não valho nada. Mas meu irmão é muitíssimo pior. Sempre foi. É o pior rato que eu conheço. Ah, Rosa, eu devo essa pra você. Sossora...

Sossora tinha virado uma mulher. Uma linda mulher. Era mulher, sim! Tinha feito a operação, não era mais homem. E uma mulher com M maiúsculo, a maior liderança, a mais honesta liderança que este pais jamais teve. Pode um rato de esgoto como o meu irmão acabar com a carreira, com a vida dessa mulher impressionante? Posso eu permitir que ele prejudique outra vez o menino Sossora, que agora é nossa líder inconteste Maria Amália?

Não, definitivamente não. Eu não posso permitir isso. E tomei a minha decisão! Foi menos difícil do que eu pensei. Não tinha outro jeito, um rato como aquele não muda nunca. Ou, se muda, só muda pra pior, como agora.

 Às cinco e meia entrei pé ante pé no quarto dele e apanhei todos os documentos e fotos que ele tinha colocado dentro do grande envelope de volta, ali em cima da mesinha. O ratão sempre teve sono muito pesado, estava roncando pra variar.

Levei tudo para fora, fui para a lareira, que é só uma peça de decoração neste pais tropical. Levei álcool, fiz fogo, foi rápido. Não sobrou nada. Que loucura de Maria Amália, conservar aquelas lembranças tão perigosas. As pessoas perdem todo o bom senso quando se trata de sua vida sentimental. 

Corrigi o erro da Primeira Ministra: tudo virou pó e cinza dentro da lata que eu levei para a lareira. Depois tratei de dar um sumiço na lata. O erro da Maria Amália estava corrigido. Mas o erro de meu irmão seria claramente incorrigível, era imperioso que eu o impedisse de cometê-lo.

 Mesmo sem as provas, ele ia fazer um pandemônio e, com ajuda de outros colegas tiras, ia fazer uma varredura no país e fora, dele atrás de outras evidências da passagem de Sossora, Padre Manoel José, testamento, viagem, cirurgia de mudança de sexo na Itália. E o pior: evidências de que Maria Amália Jardim nunca tinha existido antes, era uma identidade falsa – falsidade ideológica! 

Pouco antes das seis, ainda cheirando a fumaça da lareira, coloquei o silenciador na arma. Entrei de novo no quarto do meu irmão, que ressonava alto. Envolvi a ponta da arma no pano espesso que tinha levado para recolher os restos de pólvora, encostei-a no peito daquele ladrão corrupto e ganancioso que dormia. Em sonhos, ele riu. Na certa estava feliz com sua nova armação, ia detonar a Primeira Ministra mais competente da história do país e ganhar uma grana preta dos seus desafetos.

Não tive nenhuma hesitação. Era ele ou o país, ele ou Maria Amália. Não podia haver dúvida. Por um instante lembrei ainda dos olhos de Rosa, dos olhinhos inocentes e chorosos de Sossora e pensei: Você tinha razão, Rosa, a gente era moleque do diabo, não tivemos cura. A gente não prestou. Mas, ao menos agora, eu vou lhe fazer justiça: seu filho, sua filha, não vão ser destruídos por um de nós. Que sobre mim recaia a maldição de assassino, de assassino do próprio irmão. E o atenuante de ser o assassino de um ladrão imundo, de salvar uma pessoa muito digna e de salvar um país inteiro.

Então apertei o gatilho. A coisa foi instantânea. Coração, direto. O cara nem acordou.

Agora estou fazendo a parte seguinte do plano, me livrando desta arma que apanhei no estoque das aramas frias, para dar flagrante, que meu irmão sempre tinha no armário dele. Tudo sem registro.

E a vida continua
Às sete vou sair para buscar a Primeira Ministra no aeroporto, viajou com outra escolta, meu trabalho com ela é só aqui na capital. E vou ter que contar tudo pra ela. Senão, o dia em que ela abrir o cofre para reviver suas saudades, vai entrar em pânico, achando que alguém roubou o material e vai chantageá-la ou entregá-la. 

Quando entrarmos na residência oficial, é bem provável que já tenham descoberto o assassinato do meu irmão. Pois que investiguem, deem tratos à bola, o cara tinha um montão de inimigos, justo entre traficantes, contrabandistas, empresários e políticos. Qualquer um pode ter mandado alguém apagar o desafeto. E é claro que eu vou ganhar o direito de chefiar a investigação da morte do meu irmãozinho querido. Vai morrer tudo na praia!

Ah, ali vem ela, mais linda do que nunca! Que sorriso!

– Bom dia, Ministra. Fez boa viagem?
– Bem razoável, Luiz. Onde está seu irmão?
– Deve ter se atrasado, como sempre. A senhora que ir direto para casa? Podemos ir?
– Sim, Luiz, vou no carro com você e seus colegas. Ainda tem muita gente querendo acabar comigo.
– Oh, se tem, Ministra! Mas, se depender de mim, ninguém jamais vai botar as mãos na senhora.
– Tenho certeza disso, Luiz. Confio inteiramente em você, obrigada.

Pensei: Sim, pode confiar cegamente, Ministra. Você nem sabe ainda, mas seu segredo está guardado para sempre comigo. Acabo de matar meu único irmão para resguardá-lo.

Sentei no banco de trás, ao lado dela e, pela primeira vez, pude observar detidamente aquele par de olhos de um verde claro tão extraordinário. Sim, a mesma cor tão rara dos olhos de Rosa, dos olhinhos de Sossora.

Ela sorriu para mim com enorme simpatia, senti que ela de fato gostava de mim como seu segurança e ajudante. Que bom. Ao seu lado, me sentindo o legítimo salvador da pátria, eu tive certeza:
Que ironia, eu amava aquela mulher! – como, aliás, a maioria das pessoas do país. Ela cativou meu coração: eu servirei o garoto Sossora pelo resto dos meus dias, enquanto Maria Amália assim o quiser.

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