HISTÓRIA DE PESCADOR
– Pois aí vai, acredite se puder,
Seu Aristides. Painho me contou ontem à noite de uma pescaria danada que ele
fez na represa de Avaré. Pois ele pegou e puxou sozinho um tubarão, uma enorme
arraia de 80 quilos e mais de 20 bacalhaus da Noruega. Verdade painho?
– Mas esses bichos não são de água
salgada, Marcelo?
(Só um minutinho, por favor: Antes de
prosseguir com nossa legítima história de pescador, vamos voltar só um
pouquinho no tempo, para entender o contexto):
Estamos na região rural de Bastos,
município paulista que é o maior produtor de ovos do país. Ali, na Granja
Fujiyama, seu proprietário, o venerável japonês Takeo Toshiyuki, 77 anos, jaz
entrevado por causa de um derrame cerebral, que o deixou sem movimentos e sem
fala. Os médicos acreditam que ele apenas vegeta, sem contato com o mundo exterior,
capaz apenas de se alimentar com as papinhas que colocam em sua boca.
Mas seu filho adotivo, Marcelo, um
jovem mulato nordestino de 25 anos, não liga pra isso. É ele que cuida amorosamente
do velhinho, troca suas fraldas, dá-lhe banho e comida. O mais notável é que
ele conversa com “painho”, como ele o chama, como se o velho comprendesse tudo
– e também responde no lugar dele, como se o velho estivesse entendendo e falando.
Titular de fato da Granja e seus
negócios, leva painho todos os dias para a lavoura de milho e soja, no grande
trator de cabine climatizada. Exatamente como, quando ele era criança, o pai
adotivo fazia com ele. O jovem Marcelo é dotado de um bom humor impagável e
está sempre brincando e pilheriando com seu painho. Como neste dia, quando
recebem a visita da jovem Dra. Helena Fumiko e de Seu Aristides, taxista de
Bastos, que chegam para o almoço:
Colocado à mesa em sua cadeira alta,
seguro por duas correias, Takeo Toshiyuki, conhecido pelo pessoal do local como
Seu Chiquinho – Toshiyuki é um nome danado de ruim de se falar, sô! – mais
parece um pacotinho mirrado, um tiquinho de gente, que só consegue movimentar
os olhos. Mas, para Marcelo, é como se ele andasse por todos os lugares, com
toda normalidade. Inventava mil histórias cujo herói era sempre Seu Chiquinho.
Chegados os visitantes, Marcelo
ergueu-se rapidamente, puxou uma cadeira para que Helena sentasse e iniciou uma
animada conversa sobre os pratos que iam ser servidos no almoço – o principal,
um delicioso surubim, que ele mesmo havia pescado na noite anterior.
Isso deu vez a que ele contasse
toda a pescaria, caprichando na palhaçada para tentar descontrair a moça.
Contou como tinha ido atrás de Seu
Chiquinho, que era o maior pescador de toda a região, para suplicar que ele não
acabasse com todos os peixes do rio. A contragosto, Seu Chiquinho tinha
concordado por fim, devolvendo para a água nove peixes enormes, todos com mais
de 30 quilos cada um, que ele tinha pescado nos primeiros dez minutos.
– Pescador como Painho não tem no
Brasil. É o maior, não é painho? Olhem só, ele é modesto, não diz que sim nem não, não fala nada, o sacana. Mas é o maior mentiroso, também. Porque não pode existir pescador sem mentira
de pescador. Quanto maior o pescador, maior a mentira. Sabe qual é a
última de painho, Seu Aristides?
– Não sei, mas fico sabendo se
você me contar.
– Pois aí vai, acredite se puder,
Seu Aristides: Painho me contou ontem à noite de uma pescaria danada que ele
fez na represa de Avaré. Pois ele pegou e puxou sozinho um tubarão, uma enorme
arraia de 80 quilos e mais de 20 bacalhaus da Noruega. Verdade painho?
Caiu na gargalhada, piscou para o
velho, deu-lhe um piparote debaixo do braço. Imóvel, o velho voltou para ele
aqueles olhinhos felizes de adoração. Helena podia jurar que eles, os olhinhos,
estavam rindo.
– Mas esses bichos não são de água
salgada, Marcelo?
– Claro que são, Seu Aristides!
Por aí é que se vê a grandeza de painho pescador. E contou:
"Primeiro ele isolou uma
pontinha da represa e mandou jogar lá dentro mais de cem carretas de sal. Aí
ele trouxe os peixes e as arraias, tudo filhotinho.
E foi deixando a bicharada crescer
e criar. Aí, no tempo certo, ele vai lá e pesca um pouco de bicho, pra não dar
problema de superpopulação. Só que os bacalhauzinhos cresceram numa parte que
ficou com sal demais; por isso, quando se pesca, eles já saem salgados e secos.
E também aconteceu que o
tubarão que ele matou foi um que andou pulando do cercado de painho pra dentro
da represa e começou a gostar de água doce. E aí começou a devastar os outros
peixes e a crescer rápido demais. E antes que ele virasse um monstro de filme
americano de tubarão, painho resolveu dar um fim naquele desabusado.
Pulou de calçãozinho na represa,
levando só o canivete de escoteiro dele, que tem pra lá de cem lâminas. O pessoal
que viu diz que foi uma luta terrível.
O tubarão mordia painho, engolia
ele inteiro, e painho cortava a barriga do bicho com o canivete, saía dela e ia
se jogar, com toda a coragem, na boca do bruto de novo. Aí era mastigado,
engolido, a coisa toda se repetia e ele abria outro buraco na barriga do
monstro e saía de novo.
No fim o tubarão acabou morrendo,
de tão furado que ficou no baixo ventre.
– Notável – falou animada a moça
Helena, que agora já estava rindo – mas se o tubarão mordeu tanto o Seu
Chiquinho, como é que ele conseguiu sair com vida e não ficou todo rasgado?
– Ah, mas a moça não faz ideia de
como é grosso e duro o couro de painho! Quando ele terminou de içar o tubarão
morto pra fora d’água, o pessoal todo viu, contou, recontou e confirmou: o
tubarão não tinha um único dente inteiro! Tinha quebrado tudo contra o couro
duro de painho.
Já painho tinha um único corte
feio na altura do ombro, mas isso ele acabou me confessando que foi ele mesmo
que fez com o canivete. Afinal, justificou, era uma vergonha se ele saísse
daquela luta tremenda sem nenhum arranhão. E também tinha aquele monte de
mocinha do lado de fora e ele queria impressionar as garotas com um ferimento
grave.
Painho é que contou tudo isso,
gente. Mas pescador é sempre mentiroso... Não é, painho? – e lá veio a sonora
risada.
Aquele, de fato – pensou Helena Fumiko – era
um homem de bem com a vida... Não seria ela que iria botar minhocas
na sua cabeça, revelando quem ela era na verdade: a neta ignorada de Takeo Toshiyuki.
(Adaptado do 3º capítulo do livro “DRA. FUMIKO,Um Amor que Vence o Não e a
Vida Exorta” – Milton Maciel - Idel,
2014
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