O FILHO DA EMPREGADA
MILTON MACIEL
Pouco antes das seis da manhã,
ainda cheirando a fumaça da lareira, coloquei o silenciador na arma. Entrei de
novo no quarto do meu irmão, que ressonava alto. Envolvi a ponta da arma no
pano espesso que tinha levado para recolher os resíduos de pólvora, encostei-a no
peito daquele ladrão corrupto e ganancioso que dormia. E comecei a lembrar de
tudo, desde nossa infância em casa:
“Moleque é bicho do diabo!” Tio Damião estava certo, a gente era
mesmo bicho do diabo, um par de moleques endiabrados e loucos para aprontar –
como, aliás, todos os moleques da nossa idade. Eu, 9 anos, meu irmão 10. Aí apareceu
o filho da empregada, de 5. Um prato cheio para nós.
Não lembro o nome do moleque, só
sei que a mãe dele, a empregada, o chamava sempre pelo apelido: Sossôra. Era
branco, pálido, transparente, no que tinha saído à mãe. O filho de Rosa tinha,
no entanto, duas características muito próprias: enormes e profundas olheiras;
e um olhar triste, parado, sorumbático. Tudo isso num menino magrinho, com não mais que
cinco anos.
A gente não sabia por que cargas
d´água nossa mãe tinha aceitado que a empregada trouxesse o filho para morar
com ela no quartinho dos fundos. Era nos tempos em que havia empregadas
domésticas a dar com pau e era comum que elas dormissem no emprego. O fato foi
que nós dois não gostamos daquela invasão do nosso espaço infantil. A gente não
queria outro moleque pela casa. Ou, talvez, tenha sido mais uma coisa de
maldade mesmo, algo de que as crianças em geral estão sempre cheias, enquanto
morrem de rir dos adultos que falam da inocência das crianças.
A gente era bicho do diabo, de
inocente não tinha nada e destilamos todo o nosso arsenal de maldades contra o
pobre do Sossora. É que o infeliz do moleque nos irritava, com aquele seu jeito
de songamonga, aqueles olhos de coruja e os constantes choros pelos cantos da
casa. O porcaria era um chorão, manteiga derretida, chato. A gente conclui logo
que ele era um nojento! E, como tal, merecia nosso repúdio e reação.
Começamos logo a aprontar todas
pra cima dele: dar sustos, atiçar os cachorros pra latirem contra ele, esconder
as poucas coisinhas que ele tinha. Na verdade, o que a gente queria é que
aquele pateta fosse logo embora da nossa casa. Mas sabíamos que isso implicava
em conseguir que a mãe dele fosse despedida do emprego. Então passamos a agir
contra filho e mãe.
Roubamos dois anéis de estimação
da nossa mãe e escondemos no quarto da empregada. O sumiço foi imediatamente
acusado pela dona. Como era natural, a suspeita foi a empregada. No mesmo dia, à
tarde, meu irmão chutou nossa bola de futebol contra a vidraça dos fundos e eu,
na maior desfaçatez, coloquei junto com a bola e os cacos de vidro um pé do
chinelinho do Sossora, que eu tinha afanado. Foi a gota d´água: Nossa mãe
resolveu mandar a empregada embora e, ao fazer a revista das coisas dela,
encontrou os anéis sumidos. Aliás, a bem da verdade, nós dois é que, ajudando a
revistar, localizamos os anéis escondidos dentro de uma roupa íntima da Rosa,
justamente onde a gente tinha colocado.
Nossa mãe ficou furiosa e disse
que só não chamava a polícia porque tinha pena do molequinho, que ia ficar só
no mundo, se a mãe “ladrona” dele fosse presa. Rosa chorou, jurou inocência, mas
não tinha defesa possível. As provas plantadas contra ela e o menino eram
conclusivas, indiscutíveis. Sempre chorando muito, ela arrumou suas trouxas sob
o olhar vigilante da ex-patroa, deu a mão ao filho e foi embora.
Nós dois, os bichos do diabo,
estávamos esperando pela saída deles no portão pequeno do jardim. Queríamos
saborear a nossa vitória, fazer umas caretas feias pro Sossora. Mas Rosa nos
surpreendeu. Parou no portão, voltou para nós seus olhos vermelhos de choro e
tristeza e falou:
– Eu gostava de vocês, apesar de
ver que vocês não gostavam do meu filho. Mas o que vocês fizeram hoje foi uma
coisa muito má. A mãe de vocês tem muito bom coração, foi a única patroa que me
aceitou com meu filho. Mas vocês não deixaram. Eu sempre fui honesta, mas vocês
vão fazer que todo mundo me chame de ladrona. Vocês acabaram comigo e com meu
filho, nós vamos ter que ir embora desta cidade, nunca mais eu consigo emprego aqui.
Deus permita que vocês possam se curar de tanta maldade. Senão, vocês vão ser
adultos muito ruins, vão fazer muita gente sofrer.
Disse as últimas frases olhando
bem dentro dos meus olhos e foi embora. Deixou totalmente meu irmão de lado.
Ele macaqueava, fazia caretas, ria e dava de ombros. Não estava nem aí, gozava
sua vitória.
Mas eu acusei o golpe. Não tinha,
é claro, com meus nove anos de pura maldade, imaginado as consequências para a
empregada. Estava contente por me livrar da peste do filho dela, mas comecei a
me sentir muito mal pensando no que ia acontecer com a pobre da Rosa.
Os olhos de Rosa não me saiam da
cabeça. A toda hora eu os via, avermelhados, úmidos, imensamente tristes, derrotados.
Incomodava-me a sua passividade, sua incapacidade de externar sua revolta com
gritos, palavrões, uns bons tapas, como a gente merecia. Ao contrário, ela era
toda dor e derrota. Sossora, como a mãe, tinha os olhinhos baixos, turvos, com
lágrimas. Ambos tinham olhos verdes muito claros, de uma cor muito rara de ser
ver. Rosa devia ter sido uma moça bem bonita, mas já estava precocemente
marcada no rosto magro pelos vincos do sofrimento, sua vida de mãe solteira
muito pobre certamente fora uma longa sucessão de desgraças.
Dois dias depois não aguentei a
pressão e tentei convencer meu irmão que devíamos contar a verdade a nossa mãe.
Ele ficou uma fera, me chamou de fraco, de maricas e disse que, se eu contasse,
ele me dava a maior surra. Apesar de ter só um ano mais do que eu, ele era
muito mais desenvolvido e mais forte. Ele me fez lembrar que, se a gente
contasse a verdade, nosso pai ia nos desancar no laço, a gente ia apanhar surra
de criar bicho. Claro, ele sabia que eu era covarde, morria de medo de apanhar.
Mas nem isso adiantou. Na semana
seguinte eu não aguentei mais, procurei minha mãe e contei tudo, tudo mesmo.
Que a ideia do roubo e ocultação dos anéis fora de meu irmão, mas a ideia de
quebrar o vidro com a bola e colocar ali o chinelinho do menino tinha sido
minha. E contei as muitas outras maldades que a gente tinha aprontado com o
Sossora.
Ela ficou horrorizada. Uma,
porque percebeu a grande injustiça que tinha feito com uma pobre mulher
honesta, contra quem ela já tinha espalhado a fama de ladra. Mas acho que mais
horrorizada ela ficou quando percebeu como era mau o caráter dos seus dois
filhos. Correu a fazer o relato completo para nosso pai. Este, com certeza,
ficou uma fera: nossa atitude contrariava tudo o que ele nos ensinava
diariamente! Mas, como era do seu
feitio, não nos puniu na hora. Marcou o castigo para as seis horas da tarde;
íamos, como de hábito em casos graves, apanhar de palmatória, com ele deixando
previamente especificado duas dúzias de bolos para meu irmão e uma dúzia para
mim. Foi a primeira vez que travei contato com uma delação premiada, minha
pena tinha sido reduzida ao meio.
Naquele dia apanhei do nosso pai,
no dia seguinte apanhei do meu irmão. Que apanhou de novo outras duas dúzias,
por ter batido em mim daquela forma tão brutal. Depois a coisa toda passou, a vida
seguiu, a gente cresceu, estudou, foi trabalhar, constituiu família, se deu bem
na vida.
Fizemos Direito, os dois. Depois
fizemos carreira na Polícia Federal. Mas o desejo de Rosa, que Deus permitisse
que nós dois nos curássemos de tanta maldade, não funcionou. Nós viramos
adultos muito ruins e fizemos muita gente sofrer. Mas isso não era uma coisa
que nos incomodasse, porque nós éramos somente corruptos, os que nós fazíamos
sofrer eram criminosos e sonegadores, de quem nós extorquíamos dinheiro. E
também o povo em geral, quando dávamos cobertura a empresários e políticos que
faziam grandes maracutaias com o dinheiro público. Quer dizer, a gente não
fazia sofrer assim na lata, olho no olho, era tudo na manobra sórdida.
Enriquecemos.
Meu irmão muito mais do que eu.
Como já mencionei, eu sou covarde. Ele, ao contrário, é arrojado ao extremo.
Dessa forma ele participou de esquemas e golpes muito maiores do que os meus,
subiu mais alto na carreira, seus políticos eram muito mais graúdos que os
meus. Mas não posso me queixar, ainda assim cheguei aos 44 anos com um bom pé
de meia.
A Primeira Ministra
Um dia, estranhamente, o diretor
geral nos designou para fazer a segurança da Primeira Ministra. Devíamos
protegê-la, especialmente na residência oficial, depois que ela sofreu o
segundo atentado contra sua vida.
Maria Amália Jardim era uma mulher
incomparável. Ia fazer 39 anos e já estava no seu terceiro ano como Primeira
Ministra. Tinha ampla maioria no Congresso, depois de vencer e desbaratar as
quadrilhas de senadores, deputados e funcionários corruptos. Fez uma limpa
total na casa. Muita gente perdeu o mandato e foi presa, pois também no Supremo
Tribunal Federal tínhamos uma outra mulher de desassombro e coragem, que fazia
tudo andar depressa dentro do novo rito imposto sob sua égide.
Empresários, militares e até
mesmo os intocáveis banqueiros foram condenados e presos. Em três anos de
mandato, depois de triunfar sobre quatro tentativas de voto de desconfiança no
parlamento, mais de 60 homens e alguma mulheres foram parar atrás das grades.
Novas regras para concorrências e sistemas rígidos de controle foram
implantados. Com isso, várias centenas de funcionários de segundo, terceiro e
quarto escalão, ladrões convictos de longa data, foram também enquadrados,
expropriados de seus bens, engaiolados. Foi a maior limpa que o país já viu.
Maria Amália Jardim tornou-se um
verdadeiro ícone, um ídolo nacional. Ainda mais depois de escapar
milagrosamente a duas tentativas de assassinato. Para completar, era uma mulher
bonita, delgada, de olhos verdes claros, cabelos loiros cacheados. E fizera
carreira liderando movimentos feministas e de luta contra a discriminação a
minorias em geral.
Neste momento ela é praticamente
uma unanimidade nacional. Seu governo é o primeiro na história que, no terceiro
ano de mandato, tem mais de 90% de aprovação nas pesquisas. E eu, confesso,
estou ainda mais encantado com essa mulher fabulosa, ao ver como ela trata a
mim e a todos, do mais graduado ao mais humilde, com a mesma afabilidade,
paciência e doçura. Maria Amália não é uma chefe, é uma Líder! Ela nos
conquista e subjuga a todos, docemente. Sua simples presença é como uma espécie
de bálsamo, que anima, eletriza e entusiasma as pessoas.
Em mim o seu efeito é
estranhíssimo. Sendo o corrupto que sempre fui, sua presença e sua ação me
fazem desejar ser honesto, apagar todo o meu passado de ganância e
desonestidade. É como se a honestidade dela fosse contagiosa, o exato contrário
da tal maçã podre que põe o cesto a perder.
A bomba!
Estava eu nesse meu encantamento
quando, um dia, caí das nuvens. Meu irmão veio me mostrar, madrugada alta, o
que ele tinha descoberto no cofre particular da Primeira Ministra. Ladrão velho
quase cinquentão e tira de oficio, meu irmão nunca perdia uma oportunidade de
descobrir segredos das outras pessoas, segredos esses que lhe poderiam valer
boas somas em dinheiro. Fuçou e fuçou, com equipamento de arrombador, até que
conseguiu descobrir o segredo do cofre. E o que ele encontrou ali era dinamite
pura. Uma bomba!
Ele chegou no meu aposento e me
acordou esbaforido. Esperou que eu estivesse bem desperto e sentado à mesa.
Então espalhou sobre ela aquele monte de fotografias, cartas, documentos,
recibos e exames médicos, ante meus olhos sonolentos. E disse, quase gritando:
– Maria Amélia Jardim é o
Sossora!
– É quem? – protestei eu, que
não lembrava há décadas daquele nome.
– O Sossora, o filho da
empregada, da Rosa, aquele lesma nojento que a gente expulsou de casa, lembra?
A armação dos anéis roubados, esqueceu?
– Tá, tô lembrando desse Sossora,
mas ...o que o moleque tem a ver com a nossa Primeira Ministra?
– Tem tudo, seu tapado. Ele É a
Primeira Ministra!
– Mas que absurdo, cara. Ela é
mulher. E um mulherão, por sinal!
– Ela é homem, seu idiota. Fez
cirurgia de mudança de sexo. Era a maior bichona antes. Mudou de sexo e passou
a usar documentos FALSOS!
– O que?! Nossa Ministra usa
documentos falsos? Era homem e mudou de sexo? Cara, você bateu com a cabeça ou
voltou a cheirar pó mais uma vez?
– Ah, é? Pois então me acompanhe
no exame das provas, estão todas aqui em cima da mesa. Veja esta foto: quem é
esta mulher branquela?
– Meu Deus, é a Rosa! A Rosa,
como é que pode? ...
– Pois então, veja agora estas
cartas, trocadas entre mãe e filho. O moleque está com oito anos, já escreve
bem, está num internato para crianças indigentes. A mãe está num hospital
público. Vou lhe adiantar a história toda, pra você não perder tempo, faz dois
dias que eu examino essa tralha toda: a mulher morreu pouco depois, de câncer,
deixou o carinha órfão.
– Que barra! E aí?
– Aí que ele continuou na
instituição, cresceu mais, virou seminarista, você precisa ver as notas do
cara! Um verdadeiro gênio, só dez e nove e meio.
– Quem diria, aquela lesma
ranhenta...
– Pois é, e ele virou a maior
bichona também. Aliás, já tinha toda a ferramenta desde pequeno, não é?
– Bem, de macho é que ele não
tinha nada; pensando bem, só podia dar no que deu. Mas como é que você ficou
sabendo...
– Ah, olha aquela livrinho de
capa preta. É um DIÁRIO, mano velho! Um diário onde o veadinho conta tudo, dia
a dia, tim-tim por tim-tim. Olha esta foto aqui: é o padre Manoel José. Saca só
a dedicatória. Era o amante do Sossora.
– Santo Deus! Um padre...
– Só que descobriram tudo, o
padre foi mandado embora para uma paróquia distante. Pois o veadinho largou o
seminário e foi atrás do seu homem. Quer dizer, homem... Você vê aí essas fotos
dos dois de mãos dadas, dentro de uma mata.
– O Sossora até que ficou um
rapaz ajeitado... Praquela lesma ranhenta que ele era...
– Mas a coisa terminou mal: o
padre morreu numa emboscada, defendia os sem-terra, os fazendeiros mandaram
fazer o serviço nele. Claro que ninguém foi condenado por isso, aquilo era Mato
Grosso.
– E o veadinho fez o que, depois
disso?
– Primeiro fez um monte de
poesias, um monte de escritos falando do sofrimento dele. Depois foi embora
para o Rio de Janeiro. Acontece que o padre era de família rica, tinha dinheiro
e propriedades, deixou tudo para o Sossora; tinha testamento, porque temia
justamente ser assassinado.
– Veado de sorte! Era pobre como
um rato de sacristia, virou viúva rica, viúva alegre.
– Bem, pelo que se pode ver aí,
logo a seguir, no Rio, ele tratou da cirurgia dele e foi fazer o serviço lá na
Itália. Na volta, ele/ela procurou um falsário e lavraram certidão de
nascimento em um cartório de uma cidadezinha do interior do Rio. Desde então
ele é Maria Amália Jardim. Com esse nome fez as provas de Supletivo, depois passou em primeiro lugar em dois vestibulares: engenharia química e economia. Pois a maluca fez as duas faculdades ao mesmo tempo, estudando de dia e de noite. Aqui tem cópias dos dois diplomas, que são autênticos. De falsa, só a certidão de nascimento.
– Meu Deus, eu estou de queixo
caído. Isso acaba com a carreira dela, acaba com ela pra qualquer coisa. É o
fim da Ministra, da política, da líder, da unanimidade nacional.
– Que se dane ela. O que eu quero
agora é a fama. A imensa fama que virá para quem descobriu e revelou toda essa
longa história, esse logro nacional.
– Irmão, será que vale a pena? Tá
certo, a fama vai ser sua e só sua, eu não quero nada com isso. Mas fico pensando:
será que vale a pena, por um minuto de fama, acabar com o melhor governo que
este país já teve em toda a sua história? É prejudicar todo um povo só pra você
se pavonear e...
– Que se pavonear, o que, seu
primário! E a grana? Você não consegue enxergar a enorme grana que eu vou
arrancar dos inimigos dela, dos caras que ela botou na prisão, dos caras que
perderam milhões por causa dela? Qualquer um deles pode pagar milhões para se
vingar, para destruir esse veadão. Vou ficar ainda mais rico.
– Mas irmão, por favor...
Considere... Será que vale mesmo a pena? Você já é tão rico.
– Seu frouxo! Você não tem jeito
mesmo, rapaz, sempre foi assim, meio molengão. Não me diga que está com pena da
sua Primeira Ministra, você que é tão encantado com ela que até já me falou que
quer aprender a ser honesto, daqui pra frente. Você é um tonto mesmo. Ora, vá
se catar, deixe eu juntar aqui minhas provas e hoje mesmo, de manhã, vou fazer
uns telefonemas, para começar o meu leilão milionário.
Uma atitude
Não consegui dormir mais aquela
madrugada. Fiquei acordado, remoendo, remoendo, pensando como era injusto que
meu irmão detonasse a nossa política mais honesta e perfeita de todos os
tempos. E aí de repente, sem mais nem menos, me reapareceram na lembranças
olhos de Rosa, os olhos vermelhos de Rosa. E ouvi suas palavras dentro da minha
mente, uma por uma. Sim, eu tinha prejudicado Rosa e seu filho demais. Eu era um
moleque do diabo, quem sabe ela não tinha morrido de câncer por minha culpa e
do meu irmão. Ela era honesta. Ladrões viramos nós dois. A gente não prestava
mesmo, desde criança.
Eu não valho nada. Mas meu irmão
é muitíssimo pior. Sempre foi. É o pior rato que eu conheço. Ah, Rosa, eu devo
essa pra você. Sossora...
Sossora tinha virado uma mulher.
Uma linda mulher. Era mulher, sim! Tinha feito a operação, não era mais homem.
E uma mulher com M maiúsculo, a maior liderança, a mais honesta liderança que
este pais jamais teve. Pode um rato de esgoto como o meu irmão acabar com a
carreira, com a vida dessa mulher impressionante? Posso eu permitir que ele
prejudique outra vez o menino Sossora, que agora é nossa líder inconteste Maria
Amália?
Não, definitivamente não. Eu não posso
permitir isso. E tomei a minha decisão! Foi menos difícil do que eu pensei. Não
tinha outro jeito, um rato como aquele não muda nunca. Ou, se muda, só muda pra
pior, como agora.
Às cinco e meia entrei pé ante pé no quarto
dele e apanhei todos os documentos e fotos que ele tinha colocado dentro do
grande envelope de volta, ali em cima da mesinha. O ratão sempre teve sono
muito pesado, estava roncando pra variar.
Levei tudo para fora, fui para a
lareira, que é só uma peça de decoração neste pais tropical. Levei álcool, fiz
fogo, foi rápido. Não sobrou nada. Que loucura de Maria Amália, conservar
aquelas lembranças tão perigosas. As pessoas perdem todo o bom senso quando se
trata de sua vida sentimental.
Corrigi o erro da Primeira
Ministra: tudo virou pó e cinza dentro da lata que eu levei para a lareira.
Depois tratei de dar um sumiço na lata. O erro da Maria Amália estava
corrigido. Mas o erro de meu irmão seria claramente incorrigível, era imperioso
que eu o impedisse de cometê-lo.
Mesmo sem as provas, ele ia fazer um
pandemônio e, com ajuda de outros colegas tiras, ia fazer uma varredura no país
e fora, dele atrás de outras evidências da passagem de Sossora, Padre Manoel
José, testamento, viagem, cirurgia de mudança de sexo na Itália. E o pior:
evidências de que Maria Amália Jardim nunca tinha existido antes, era uma
identidade falsa – falsidade ideológica!
Pouco antes das seis, ainda
cheirando a fumaça da lareira, coloquei o silenciador na arma. Entrei de novo
no quarto do meu irmão, que ressonava alto. Envolvi a ponta da arma no pano
espesso que tinha levado para recolher os restos de pólvora, encostei-a no
peito daquele ladrão corrupto e ganancioso que dormia. Em sonhos, ele riu. Na
certa estava feliz com sua nova armação, ia detonar a Primeira Ministra mais
competente da história do país e ganhar uma grana preta dos seus desafetos.
Não tive nenhuma hesitação. Era
ele ou o país, ele ou Maria Amália. Não podia haver dúvida. Por um instante
lembrei ainda dos olhos de Rosa, dos olhinhos inocentes e chorosos de Sossora e
pensei: Você tinha razão, Rosa, a gente era moleque do diabo, não tivemos cura.
A gente não prestou. Mas, ao menos agora, eu vou lhe fazer justiça: seu filho,
sua filha, não vão ser destruídos por um de nós. Que sobre mim recaia a
maldição de assassino, de assassino do próprio irmão. E o atenuante de ser o
assassino de um ladrão imundo, de salvar uma pessoa muito digna e de salvar um
país inteiro.
Então apertei o gatilho. A coisa
foi instantânea. Coração, direto. O cara nem acordou.
Agora estou fazendo a parte
seguinte do plano, me livrando desta arma que apanhei no estoque das aramas
frias, para dar flagrante, que meu irmão sempre tinha no armário dele. Tudo sem
registro.
E a vida continua
Às sete vou sair para buscar a
Primeira Ministra no aeroporto, viajou com outra escolta, meu trabalho com ela
é só aqui na capital. E vou ter que contar tudo pra ela. Senão, o dia em que
ela abrir o cofre para reviver suas saudades, vai entrar em pânico, achando que
alguém roubou o material e vai chantageá-la ou entregá-la.
Quando entrarmos na residência
oficial, é bem provável que já tenham descoberto o assassinato do meu irmão.
Pois que investiguem, deem tratos à bola, o cara tinha um montão de inimigos,
justo entre traficantes, contrabandistas, empresários e políticos. Qualquer um
pode ter mandado alguém apagar o desafeto. E é claro que eu vou ganhar o
direito de chefiar a investigação da morte do meu irmãozinho querido. Vai
morrer tudo na praia!
Ah, ali vem ela, mais linda do
que nunca! Que sorriso!
– Bom dia, Ministra. Fez boa
viagem?
– Bem razoável, Luiz. Onde está
seu irmão?
– Deve ter se atrasado, como sempre.
A senhora que ir direto para casa? Podemos ir?
– Sim, Luiz, vou no carro com
você e seus colegas. Ainda tem muita gente querendo acabar comigo.
– Oh, se tem, Ministra! Mas, se
depender de mim, ninguém jamais vai botar as mãos na senhora.
– Tenho certeza disso, Luiz. Confio
inteiramente em você, obrigada.
Pensei: Sim, pode confiar
cegamente, Ministra. Você nem sabe ainda, mas seu segredo está guardado para
sempre comigo. Acabo de matar meu único irmão para resguardá-lo.
Sentei no banco de trás, ao lado
dela e, pela primeira vez, pude observar detidamente aquele par de olhos de um
verde claro tão extraordinário. Sim, a mesma cor tão rara dos olhos de Rosa,
dos olhinhos de Sossora.
Ela sorriu para mim com enorme
simpatia, senti que ela de fato gostava de mim como seu segurança e ajudante.
Que bom. Ao seu lado, me sentindo o legítimo salvador da pátria, eu tive
certeza:
Que ironia, eu amava aquela mulher!
– como, aliás, a maioria das pessoas do país. Ela cativou meu coração: eu
servirei o garoto Sossora pelo resto dos meus dias, enquanto Maria Amália assim o
quiser.