MILTON MACIEL
Dito Clemente era um sujeito porreta! Ali
estava um homem de verdade, um cabra macho pronto para enfrentar qualquer
perigo ou situação em defesa de um amigo. E tinha mais: gente de palavra estava
ali também: Dito Clemente prometeu, pode contar que é certo.
E ele era também o maior e o melhor
produtor de leite daquele sertão, suas vaquinhas pé-duro, mesmo em plana seca,
nunca secavam, sempre tinha algumas pelo menos em lactação. É que Dito sabia
como ninguém captar as águas durante o curto período de chuvas, conseguia distribuí-las
bem na seca e, além de ter duas cisternas grandes que garantiam o abastecimento
da família por todo o ano, sua cabras e suas vaquinhas também tinham água
garantida pelos açudes cobertos.
Além disso, ele tinha aprendido a fazer os
tais blocos de uréia-melado, que, lambidos diariamente por animais ruminantes,
permitiam que eles se alimentassem com capim seco queimado pelo sol e com
bagaço de cana. Isso porque a composição de materiais nos blocos permite que a
flora do rúmen se multiplique de tal maneira que os animais conseguem digerir
palha seca, material apenas celulósico, e, dessa forma, não perdem peso e
mantêm sua produção de leite.
Dessa forma, Dito Clemente passava todo o
verão – a curta época das chuvas – fazendo os tais blocos com o melado da cana
que tinha moído no inverno, época das secas. Colhia o milho e fazia silagem, o
que era feito também com corte de leguminosas forrageiras. Em resumo, Dito
Clemente era um caboclo que entendia do riscado, trabalhava de sol a sol e mais
um pedaço da noite. E tratava seus animais com extremo cuidado e dedicação.
A conseqüência de todo esse trabalho
refletia-se em sua condição de maior e melhor produtor de leite daquele
cantinho pobre do sertão. Maior porque entregava 100 litros por dia nas águas e
até 70 litros por dia na seca. Claro, esses 100 litros por dia eram uma piada
para os produtores realmente grandes. Mas, para aquela caatinga pobre, a
produção de Dito Clemente era um portento.
Para completar, homem sério e compenetrado,
que nunca bebia, pai de quatro crianças e trabalhador como só, Dito tinha
sempre suas economias. Não faltava comida em sua casa, nem as crianças deixavam
de ir à escola todo dia. E, para deixar tudo ainda mais perfeito, existia
também Maria Rosa. Ah, Maria Rosa fazia juz ao nome: tinha a bondade de Maria e
a beleza da rosa.
Em resumo, era demais para um cabra só:
fazendinha pequena, mas ajeitada, produção firme mesmo na seca, criançada bem
alimentada e estudando direitinho, mulher bonita como só e nenhuma, mas nenhuma
mesmo, dívida no banco. Era demais! Um cabra assim não podia existir sem causar
uma enorme INVEJA nos outros.
Bento Mouco, que o tinha de atrapalhado nos
ouvidos tinha de azedo no coração, era um dos que mais o invejavam. Vizinho da
esquerda, propriedade menor, pouca produção e muita cachaça, ficava se doendo
todos os dias, quando o caminhãozinho de Tonho Vesgo passava para pegar seus mirradinhos
tambores de leite – 20 a 30 litros nas águas e olhe lá! Na carroceria vinha
aquele despropósito de tambores de Dito Clemente, atulhados de leite de
qualidade até à boca.
Bento Mouco fazia as contas com raiva todos
os dias: Aquele disgramado vende tudo
isso pra cuperativa i inda recebe mais do qui nóis por litro, porque o leiti
dele tem a tal da qualidade superior. Fio duma égua!
Zé Benevides era o vizinho pelo lado
direito. Não era um caboclo cheio de maldades como Bento Mouco, mas deixava-se
levar por este, tinha um caráter fraco e impressionável. Toda vez que os dois
se encontravam, quase sempre na venda de Nicolau Careiro, para empinarem uma
boa dúzia de tragos de cachaça, lá vinha a ladainha de sempre:
– Esse Dito Clemente num mi cunvence.
Arguma ele faiz qui num é decente, pra tê tanto leiti assim. Pra mim ele agôa.
Zé Benevides respondia gritado, que o Mouco
não ouvia direito:
– Mai qui agôa, o que, cumpadi Bento! A
cuma qui o homi vai ponha água no leiti dele i a cuperativa vai pagá mais por ele?
Lá os homi tem os apareio, pra modi medi as coisa dos leiti.
– Pois pra mim tem água i ele paga os homi
dos apareio pra farseá os resultado tudo.
– Pode qui seja, cumpadre. Pode qui seja,
mai eu duvido muito. O Dito é qui é muito bom di produzi mermo.
– Pois a mim num cunvence. Aí tem coisa.
Tem coisa i eu vô discubrí. Ah, si vô! Discubro o não mi chamo Bento Mouco.
E, água mole em pedra dura, conseguiu
impressionar Zé Benevides o suficiente para que também ele passasse a acreditar
que ali tinha coisa. Ó xente, Bento Mouco
deve di sabê o qui diz. Aí tem coisa!
Mas, como não tinha coisa coisa nenhuma, só
restou ao arqui-invejoso Bento Mouco inventar a tal coisa. E inventou.
Um dia o Mouco chegou na venda do Nicolau
Careiro na hora em que tinha mais gente, num
domingo, localizou Zé Benevides e já veio despejando desde longe,
falando muito alto, para todo mundo ouvir:
– Mai eu num disse! Eu num disse! Pois ó o
qui tem di errado cum o leiti di Dito Clemente. Pois é a PESTE!
– Arre égua, cumpadre, num mi diga! A
Peste?
– Pois le digo,
le digo. É peste braba. O gado todo do homi tá
pesteado, qui eu vi. E ocês sabi qui eu cunheço peste muito bem. I acho qui é
aquela peste braba, qui passa pras pessoa também. Pra mim tá tudo pesteado ali,
as cabra, as vaca, os jegue. I até as pessoa.
– Oxe, diacho! Danou-se – gritou Maneco
Dantas bem alto, para que o Mouco pudesse ouvir – Mai si até as pessoa... Qué
dizê qui nóis tem qui evitá o contato com eles tudo, sinão nóis garra a peste
tumbém.
E, daquela malfada tarde em diante, a fama
correu pela região. A primeira coisa que Dito notou foi que o caminhãozinho de Tonho
Vesgo não passou mais para pegar o leite, que azedou no primeiro dia e foi
transformado em coalhada e soro para os porcos. No segundo dia, Maria Rosa e as
crianças fizeram queijo coalho e manteiga de garrafa.
Então Dito Clemente foi procurar o posto da
cooperativa, mas o segurança não deixou que ele entrasse. Explicou que ele
tinha que ir a um telefone público e ligar para Seu Alcides. Seu Alcides
explicou que, como Dito e a família tinham contraído a peste, as pessoas não o
queriam por perto. E, como suas vacas também estavam pesteadas, o pequeno posto
da cooperativa, responsabilidade dele, Alcides, não podia mais retirar o leite
na sua propriedade.
Dito Clemente voltou para casa
desconsolado. De onde tinha surgido aquela coisa mais louca. Como é que podiam
acreditar que uma peste das vacas passava para os humanos e vive-versa? Mas o
fato é que o povo todo e até o homem da cooperativa acreditavam. Ele estava
liquidado! O que iria fazer para sobreviver, se não podia mais vender seu
leite?
Ao chegar, ficou sabendo, horrorizado, que
seus quatro filhos tinham sido mandados embora da porta da escola, com a
determinação de nunca mais parecerem até estarem curados da peste. Maria Rosa
chorava assustada. Tinha medo que as crianças morressem, pois a peste pode
matar em poucos dias.
Dito Clemente custou a convencer Maria Rosa
que ninguém ali tinha peste. Nem eles, nem os animais. Aquilo devia ter sido uma
invenção de alguém, com o evidente intuito de prejudicá-lo. Mas quem poderia
ser?
O problema é que ele não podia nem ir
averiguar, porque ninguém, em todo o povoado e nas propriedades ao redor,
deixava que ele chegasse perto. Um soldado da força pública tinha chegado a
puxar a arma, mandando-o sumir na estrada ligeirinho.
Dito Clemente ficou a cismar, enquanto
observava Maria Rosa e as meninas ajoelhadas, puxando reza para Nossa Senhora.
O que é que ele podia fazer para defender sua família e seu gado, sua
sobrevivência inclusive?...
CONCLUI AMANHÃ
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