segunda-feira, 7 de abril de 2014

A PESTE DO CABRA
MILTON MACIEL

Dito Clemente era um sujeito porreta! Ali estava um homem de verdade, um cabra macho pronto para enfrentar qualquer perigo ou situação em defesa de um amigo. E tinha mais: gente de palavra estava ali também: Dito Clemente prometeu, pode contar que é certo.

E ele era também o maior e o melhor produtor de leite daquele sertão, suas vaquinhas pé-duro, mesmo em plana seca, nunca secavam, sempre tinha algumas pelo menos em lactação. É que Dito sabia como ninguém captar as águas durante o curto período de chuvas, conseguia distribuí-las bem na seca e, além de ter duas cisternas grandes que garantiam o abastecimento da família por todo o ano, sua cabras e suas vaquinhas também tinham água garantida pelos açudes cobertos.

Além disso, ele tinha aprendido a fazer os tais blocos de uréia-melado, que, lambidos diariamente por animais ruminantes, permitiam que eles se alimentassem com capim seco queimado pelo sol e com bagaço de cana. Isso porque a composição de materiais nos blocos permite que a flora do rúmen se multiplique de tal maneira que os animais conseguem digerir palha seca, material apenas celulósico, e, dessa forma, não perdem peso e mantêm sua produção de leite.

Dessa forma, Dito Clemente passava todo o verão – a curta época das chuvas – fazendo os tais blocos com o melado da cana que tinha moído no inverno, época das secas. Colhia o milho e fazia silagem, o que era feito também com corte de leguminosas forrageiras. Em resumo, Dito Clemente era um caboclo que entendia do riscado, trabalhava de sol a sol e mais um pedaço da noite. E tratava seus animais com extremo cuidado e dedicação.

A conseqüência de todo esse trabalho refletia-se em sua condição de maior e melhor produtor de leite daquele cantinho pobre do sertão. Maior porque entregava 100 litros por dia nas águas e até 70 litros por dia na seca. Claro, esses 100 litros por dia eram uma piada para os produtores realmente grandes. Mas, para aquela caatinga pobre, a produção de Dito Clemente era um portento.

Para completar, homem sério e compenetrado, que nunca bebia, pai de quatro crianças e trabalhador como só, Dito tinha sempre suas economias. Não faltava comida em sua casa, nem as crianças deixavam de ir à escola todo dia. E, para deixar tudo ainda mais perfeito, existia também Maria Rosa. Ah, Maria Rosa fazia juz ao nome: tinha a bondade de Maria e a beleza da rosa.

Em resumo, era demais para um cabra só: fazendinha pequena, mas ajeitada, produção firme mesmo na seca, criançada bem alimentada e estudando direitinho, mulher bonita como só e nenhuma, mas nenhuma mesmo, dívida no banco. Era demais! Um cabra assim não podia existir sem causar uma enorme INVEJA nos outros.

Bento Mouco, que o tinha de atrapalhado nos ouvidos tinha de azedo no coração, era um dos que mais o invejavam. Vizinho da esquerda, propriedade menor, pouca produção e muita cachaça, ficava se doendo todos os dias, quando o caminhãozinho de Tonho Vesgo passava para pegar seus mirradinhos tambores de leite – 20 a 30 litros nas águas e olhe lá! Na carroceria vinha aquele despropósito de tambores de Dito Clemente, atulhados de leite de qualidade até à boca.

Bento Mouco fazia as contas com raiva todos os dias: Aquele disgramado vende tudo isso pra cuperativa i inda recebe mais do qui nóis por litro, porque o leiti dele tem a tal da qualidade superior. Fio duma égua!

Zé Benevides era o vizinho pelo lado direito. Não era um caboclo cheio de maldades como Bento Mouco, mas deixava-se levar por este, tinha um caráter fraco e impressionável. Toda vez que os dois se encontravam, quase sempre na venda de Nicolau Careiro, para empinarem uma boa dúzia de tragos de cachaça, lá vinha a ladainha de sempre:

– Esse Dito Clemente num mi cunvence. Arguma ele faiz qui num é decente, pra tê tanto leiti assim. Pra mim ele agôa.

Zé Benevides respondia gritado, que o Mouco não ouvia direito:

– Mai qui agôa, o que, cumpadi Bento! A cuma qui o homi vai ponha água no leiti dele i a cuperativa vai pagá mais por ele? Lá os homi tem os apareio, pra modi medi as coisa dos leiti.

– Pois pra mim tem água i ele paga os homi dos apareio pra farseá os resultado tudo.

– Pode qui seja, cumpadre. Pode qui seja, mai eu duvido muito. O Dito é qui é muito bom di produzi mermo.

– Pois a mim num cunvence. Aí tem coisa. Tem coisa i eu vô discubrí. Ah, si vô! Discubro o não mi chamo Bento Mouco.

E, água mole em pedra dura, conseguiu impressionar Zé Benevides o suficiente para que também ele passasse a acreditar que ali tinha coisa. Ó xente, Bento Mouco deve di sabê o qui diz. Aí tem coisa!

Mas, como não tinha coisa coisa nenhuma, só restou ao arqui-invejoso Bento Mouco inventar a tal coisa. E inventou.

Um dia o Mouco chegou na venda do Nicolau Careiro na hora em que tinha mais gente, num  domingo, localizou Zé Benevides e já veio despejando desde longe, falando muito alto, para todo mundo ouvir:

– Mai eu num disse! Eu num disse! Pois ó o qui tem di errado cum o leiti di Dito Clemente. Pois é a PESTE!

– Arre égua, cumpadre, num mi diga! A Peste?

– Pois le digo, le digo. É peste braba. O gado todo do homi tá pesteado, qui eu vi. E ocês sabi qui eu cunheço peste muito bem. I acho qui é aquela peste braba, qui passa pras pessoa também. Pra mim tá tudo pesteado ali, as cabra, as vaca, os jegue. I até as pessoa.

– Oxe, diacho! Danou-se – gritou Maneco Dantas bem alto, para que o Mouco pudesse ouvir – Mai si até as pessoa... Qué dizê qui nóis tem qui evitá o contato com eles tudo, sinão nóis garra a peste tumbém.

E, daquela malfada tarde em diante, a fama correu pela região. A primeira coisa que Dito notou foi que o caminhãozinho de Tonho Vesgo não passou mais para pegar o leite, que azedou no primeiro dia e foi transformado em coalhada e soro para os porcos. No segundo dia, Maria Rosa e as crianças fizeram queijo coalho e manteiga de garrafa. 

Então Dito Clemente foi procurar o posto da cooperativa, mas o segurança não deixou que ele entrasse. Explicou que ele tinha que ir a um telefone público e ligar para Seu Alcides. Seu Alcides explicou que, como Dito e a família tinham contraído a peste, as pessoas não o queriam por perto. E, como suas vacas também estavam pesteadas, o pequeno posto da cooperativa, responsabilidade dele, Alcides, não podia mais retirar o leite na sua propriedade.

Dito Clemente voltou para casa desconsolado. De onde tinha surgido aquela coisa mais louca. Como é que podiam acreditar que uma peste das vacas passava para os humanos e vive-versa? Mas o fato é que o povo todo e até o homem da cooperativa acreditavam. Ele estava liquidado! O que iria fazer para sobreviver, se não podia mais vender seu leite?

Ao chegar, ficou sabendo, horrorizado, que seus quatro filhos tinham sido mandados embora da porta da escola, com a determinação de nunca mais parecerem até estarem curados da peste. Maria Rosa chorava assustada. Tinha medo que as crianças morressem, pois a peste pode matar em poucos dias.

Dito Clemente custou a convencer Maria Rosa que ninguém ali tinha peste. Nem eles, nem os animais. Aquilo devia ter sido uma invenção de alguém, com o evidente intuito de prejudicá-lo. Mas quem poderia ser?

O problema é que ele não podia nem ir averiguar, porque ninguém, em todo o povoado e nas propriedades ao redor, deixava que ele chegasse perto. Um soldado da força pública tinha chegado a puxar a arma, mandando-o sumir na estrada ligeirinho.

Dito Clemente ficou a cismar, enquanto observava Maria Rosa e as meninas ajoelhadas, puxando reza para Nossa Senhora. O que é que ele podia fazer para defender sua família e seu gado, sua sobrevivência inclusive?...

CONCLUI AMANHÃ







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