sábado, 26 de abril de 2014

ESSES  OLHOS  DISTANTES   
MILTON  MACIEL   

Se meus olhos tementes
Ousam mirar os teus olhos distantes,
É que existem correntes
Que os meus, suplicantes,
Prendem aos teus, ainda mais do que antes.

Se ainda mais do que antes,
Prendem-me a ti teus olhos envolventes,
É que os meus são amantes,
São cativos, coerentes
Com o amor que os faz de ti dependentes.

E, se são dependentes
Os meus olhos... também o é meu coração.
É que existem correntes
De inabalável coerção,
Fazendo-me escravo desta devoção!

E aqui eu declaro, entre minhas correntes,
Que eu amo e que eu temo esses olhos distantes
E ante eles deponho este meu coração.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

LOUCO DE AMOR   
 MILTON MACIEL  

Ah, se eu não te amasse assim tão loucamente,
Se eu existisse por mim próprio, inda que pouco!
E  se eu pudesse ser de ti independente,
Se não agisse o tempo inteiro como um louco!

Ah, se eu tivesse outra idéia em minha mente,
Que não aquela de ser só um escravo teu...
Pudesse eu... viver como antigamente,
Sem a loucura que meu juízo acometeu!

Em vão eu busco afastar-me do teu lado,
Mas o teu visgo me aprisiona inteiramente
E inteiramente eu estou apaixonado.

Tento fugir, mas por mais que eu me debata,
Mais me aproximo de ti, como um demente,
E dessa tua indiferença que me mata!


quarta-feira, 23 de abril de 2014

AS PESSOAS SÃO CONTAGIOSAS – Parte 4 – o FANÁTICO
MILTON MACIEL 

Está aí mais um tipo altamente contagioso da nossa galeria de pessoas infecciosas. O Fanático é um desajustado que procura auto-compensação mediante o exagero contumaz, que ele impinge goela abaixo no seu interlocutor. Aliás, hoje o fanático tem muito mais amplitude, porque pode atacar por e-mail e pelas redes sociais.

Este ano, por ser de eleições majoritárias, o Fanático Político está em alta. Combinando substantivo e adjetivo, resolvi apelidá-lo de FANATITICO. Qualquer semelhança com idéia de um QI muito baixo é mera coincidência, embora a maioria dos Fanatiticos sejam de fato pessoas extremamente mal-informadas e de poucos estudos. Mas isso não quer dizer que não sejam inteligentes. Contudo, face à sua falta de base lógica, histórica e estatística, o Fanatitico tem enorme tendência a usar mal o que lhe coube de inteligência.

O Fanático, por essência, é um arroubado, um emocional. Seu fanatismo vem exatamente de sua paixão, de seu ódio ou de ambos simultaneamente. O Fanatitico, pelo geral, é movido pelo ódio: ele odeia o partido X, o governante Y, o sistema político Z. E, exatamente por ser movido a paixões e ódios, o Fanatitico está muito longe de ter objetividade. Ele distorce fatos e informações conscientemente, acredita em e propaga idéias, princípios e mensagens de outros Fanatiticos; ou de manipuladores profissionais, que sabem que podem contar com a pouca capacidade de discernimento do Fanatitico e usá-la a favor das causas deles.

Para ele todo o período de governo de Y foi um horror, nada, absolutamente nada houve de positivo que se salvasse, uma óbvia impossibilidade. Só porque ele odeia Y e seu partido Z. É, o Fanatitico é altamente incongruente, o que se pode esperar dele? O problema é que ele sempre consegue contagiar pessoas que estão no mesmo ou abaixo do nível de preparação dele, influenciando incautos e, de vez em quando, gerando novos Fanatiticos.

Mas o Fanatitico tem algo muito positivo: Ele é ciclotímico, flutua com as eleições. Se o lado dele ganhou, ele se converte em situação e, via de regra, mostra-se um perseguidor inclemente dos vencidos, passa a odiar os fanáticos políticos da oposição. Se o pessoal dele foi derrotado, ele amarra uma desilusão, uma úlcera gástrica, uma soltura abdominal crônica e, para felicidade nossa, some de cena, até a próxima eleição. Então ele volta com tudo, por Internet e ao vivo, para encher a nossa paciência  e tentar tanto nossa adesão a sua causa, como a destruição, a e ferro e fogo, dos adversários políticos.  Deus nos livre dos Fanatiticos!

Mas, já que botamos Deus no meio, chegou a hora de discutirmos um Fanático muito pior que o Fanatitico: é o Fanatigioso, o terrível e malfadado FANÁTICO RELIGIOSO. Ora, tanto quanto “o sertanejo é antes de tudo um forte”, o Fanático é, antes de tudo um CHATO! Aliás, antes e depois de tudo!

O problema começa pelo fato de o Fanatigioso não sumir depois das eleições. Aliás, é justamente a palavra eleição que cria o problema logo de cara. Ele é um dos Eleitos! Um dos que vai se salvar, ao passo que você e nós todos estamos previamente condenados à danação eterna e ao fogo do inferno. Ou ao gelo eterno, se o Fanatigioso for um esquimó. A menos, é claro, que você aceite sua pregação e se converta ao seu credo, sua igreja, sua seita, seu pastor ou sacerdote.

E como o Fanatigioso é mesmo um Fanático, ele é movido por paixões e por ódios. De um modo geral, ele ama apaixonadamente sua confissão e líderes. E odeia fulminantemente os incréus de outras seitas, confissões, crenças ou descrenças. Ele tem o SEU Deus e só esse salva. O Deus dele é mais deus que o das outras pessoas que preferem um deus de outra confissão. O Deus dele e a igreja dele salvam. Os outros e as outras... danação!

Francamente, é muito difícil conviver com esses indivíduos que se vêem envolvidos por uma aura sacrossanta e são mandados pelo mundo a converter os desalinhados com sua crença. Aí surge o tipo mais pernicioso de Fanatigioso, o Fanatigioso Pegapatapa. Que é o Fanático Religioso Que Pega Pagão a Tapa!

Ah, esse desajustado é muito mais perigoso, porque ele é um jihadista, faz guerra santa e usa boa parte do seu tempo para movê-la contra os seus pobres interlocutores. Sua emocionalidade não lhe permite admitir a ideia de liberdade de pensamento e liberdade de crença. O Pegapatapa é radical e desequilibrado ao extremo. Embora ele se creia um ungido, um enviado de Deus, ele é em essência bastante semelhante aos neonazistas, aos racistas e aos homófobos, o que se percebe em sua tendência a aceitar ou até mesmo pregar a violência contra os incréus que não aceitam a sua pregação e a conversão salvadora. É um Ku-Klux-Klan...

O perigo do Fanatioso é o de infernizar a tua vida, na medida em que ele busca, insistentemente, celestializá-la. Deus nos livre dos Fanatigiosos!

CONTINUA...


terça-feira, 22 de abril de 2014

DEPOIS DO "aMOR"  
MILTON MACIEL

Depois do amor, quando os corpos se separam,
vem um instante de total encantamento:
Passado o amor, ressurge o Amor, nos que se amaram.

Porque é o Amor muito maior que um só momento,
Porque é o Amor muito maior do que a Paixão.
E é o prazer muito menor que o Sentimento,
que inunda o amor e o transfigura na Fusão.

Depois do amor nos encaramos comovidos,
e, mãos nas mãos, partilhamos de um momento
de plena Entrega e de Amor... Agradecidos!

sábado, 19 de abril de 2014

AS PESSOAS SÃO CONTAGIOSAS – Parte 3 – o RABUGENTO 
MILTON MACIEL

O RABUGENTO é um tipo todo à parte. Ele vai dormir de mal com o mundo, o que é problema dele. Mas ele ACORDA de mal com o mundo – e aí passa a ser problema NOSSO!

Sim, porque vê-lo de manhã já é um suplício: lá vem ele com sua cara de enterro, pronto a converter o nosso desjejum em um velório com meia dúzia de carpideiras octogenárias. A primeira coisa que se sabe é que o Rabugento não vai dar bom-dia. Simplesmente porque isso significa desejar que algo possa ser bom. Ora, para o Rabugento, não existe esse tal de bom. TUDO para ele é ruim.

Você está alegre, assobiando ou cantando, ouvindo sua boa música e, de repente, adentra o ambiente o Rabugento. Pronto! O tempo fechou. Com ele entram nuvens negras de tormenta, o ambiente imediatamente se obscurece. A alma do Rabugento é escura, sua aura, afirmam aqueles que se dizem capazes de ver essas coisas, lembra sovaco de corvo. Supõe-se que o cheiro, se é que alma tem isso, deva ser igualmente o de axilas descuidosas.

Você tem poucas saídas depois que o Rabugento entra. Você pode tentar ignorá-lo, cantar mais alto, aumentar o som da música, dançar, sapatear, dar gargalhadas, soltar gases, arrotar na cara dele. Mas é pouco provável que o Rabugento se incomode com isso e vá embora. Ele vai continuar o seu avanço e o ambiente vai ficar cada vez mais pesado e escuro.

É preciso lembrar que o Rabugento contagia sem nem sequer precisar abrir a boca. O Rabugento pode até ser mudo, basta sua presença opressora para precipitar o contágio.  Ele entra e você já sabe que o Inferno de Dante está chegando no pedaço. Ou pior, que é o Tártaro grego que saiu das profundas e você já sente o hálito mefítico de Cérbero, com suas três bocarras prestes a abocanharem sua até então alegre bunda rebolante.

A única outra saída é a mesma que funcionou no caso do TADINHO, depois que alguém levou o parasita para dentro da sua casa:

Você pode encomendar o Rabugento a Raimundo Nonato da Anunciação. Mundinho arma uma tocaia atrás de um pé de pau lá fora e nem deixa o Rabugento entrar na sala. Você ouve o tiro da repetição, um só, que Raimundo Nonato não é homem de perder bala, e já sabe que pode continuar cantando e rindo contente, seu dia não só vai continuar alegre, mas vai ficar muito melhor, porque Mundinho acaba de mandar o Rabugento de volta pro chefe dele, o Tinhoso, lá embaixo.

Mas suponhamos que você não possa pagar o justo preço pelos serviços profissionais de Mundinho. Nesse caso, você vai continuar sendo exposto ao Rabugento vezes sem fim. Então é preciso que nós pensemos numa solução de emergência, porque o contágio do Rabugento é fatal e muito, muito rápido, mais parece peçonha de coral, de cascavel, de surucucu-pico-de-jaca. Ele chega perto de você e pronto. Antes mesmo de olhar nos olhos dele, antes mesmo de ouvir qualquer palavra ou frase demolidora vindas daquela boca de dentes ruins, você já sabe que o mundo é mau e não tem volta, que não existe solução, que você é um azarado como ele.

Se você chega a olhar nos olhos do Rabugento, você cede imediatamente a seu poder hipnótico, na mesma hora você passa a ver tudo cinzento. Aí o Rabugento abre a boca de hálito latrinal e você, no mesmo instante, ouve o canto desafinado de um coral de duzentas sereias roucas e velhas. E esse canto, todos sabem, atrai você para o fundo. O fundo do abismo em que o Rabugento vive com sua rabugeira infinda. E aí não tem mais saída mesmo. Você já era.

Logo, há que usar nesse caso e mesma boa técnica preventiva recomendada para o caso do Tadinho. Aprenda a reconhecer o Rabugento de longe e corra dele como o diabo da cruz, como o Rivelino daquele jogador uruguaio, como um moleque de 10 anos de banho no inverno.

Portanto, se você tem um parente Rabugento, saiba se defender dos humores contagiosos do tipo. Procure entrar em casa depois que ele já estiver dormindo e tendo seus pesadelos horríveis com coisas sempre pra lá de ruins. De madrugadinha, saia de casa de fininho, antes que o Rabugento acorde. Os fins-de-semana, passe-os todos a uns seguros mil quilômetros de distância do tipo.

Agora, se não há grana para sair, é sempre possível fingir um achaque dos brabos e arrumar remoção para um hospital público, onde você poderá passar sábados e domingos comodamente estarrado numa maca em um corredor, fazendo dieta, só com soro na veia e, o melhor de tudo, sem a presença do Rabugento para levar a zero o seu astral, com aquele humor engangento dele. Na segunda você foge da maca e chega no trabalho renovado, de bem com a vida, mais magrinho – e vendo tudo azul ou cor-de-rosa.

Agora, se você tem um AMIGO Rabugento, então, meu camarada, aí a coisa ficou feia demais. Porque só você mesmo para achar que o Rabugento é amigo de alguém! Nesse caso, procure internação de verdade, tratamento agressivo, preferencialmente cirúrgico. Têm chegado a meu conhecimento alguns casos de lobotomia bem sucedidos, realizada no cérebro de pessoas que ficaram ao lado do Rabugento, porque diziam que ele era seu amigo!
CONTINUA...

sexta-feira, 18 de abril de 2014

AS PESSOAS SÃO CONTAGIOSAS – Parte 2 - O TADINHO
MILTON MACIEL

Pois é, neste mundo de pessoas-ameba, pessoas-salmonella e pessoas-H1N1, precisamos ter cuidado com MUITOS tipos diferentes de fontes de contágio. Já mencionei o CHATO e o CRÍTICO como fontes importantes de infecção, as quais podem minar sua saúde psicológica e, portanto, afetar inevitavelmente sua saúde física.

Agora vamos passar a um tipo muito perigoso de fonte de contágio: o TADINHO. Esse tipo se divide em dois subtipos igualmente danosos, como vamos ver a seguir.

O primeiro, o Tadinho Propriamente Dito, é um artista: “Um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras...” NÃO sente! Mas que você acredita piamente que ele sente. Em dois tempos ele o convence disso. Consequentemente, consegue o que quer: você morre de dó do sujeitinho!

Ah, ninguém sofre mais no mundo que o Tadinho! Ele é infeliz, injustiçado, desvalido, vítima desse mundo cruel e de suas pessoas desalmadas. Pelo geral ele também é pobrezinho, porque não é nem um pouco dado a essa coisa esquisita que você tem que fazer todos os dias: TRABALHAR! Por definição, o Tadinho é um PARASITA. Muito rapidamente ele comove você, alimenta sua compaixão, convence você que você é mais generoso que Madre Teresa... e passa a depender de você para sua sobrevivência – tanto psicológica como, principalmente, física.

Você paga uma conta aqui, empresta um dinheiro ali, paga um aluguel atrasado, compra comida, um tênis, uma roupinha, remedinhos para os dodóis dele... Uma amiga Tadinha e parasita tira de você o que quiser em dois tempos. Na hora você arranca do seu corpo o que tiver, para dar à Tadinha, pobrezinha. Tira a blusa, a calcinha, até o absorvente você retira para dar a ela, tanta é a piedade que você sente da coitadinha.

E a catástrofe fica completa quando você leva o(a) Tadinho(a) para morar na sua casa. Completamente instalada a infecção, na sua fase crônica agora, dali ele não sai NUNCA mais! Mas nem com reza brava, tanto que nenhum pai-de-santo aceita mais fazer trabalho para afastar Tadinho, porque isso está acima das forças dele e de todos os orixás juntos. Os únicos dois casos, que eu saiba, em que aconteceu esse afastamento, foram resolvidos por Raimundo Nonato da Anunciação, jagunço e pistoleiro de aluguel de infalível pontaria, glória do sertão alagoano. Só que Mundinho cobra caro, mas... guerra é guerra!

Em defesa do(a) Tadinho(a), devo reconhecer que ele(a) é uma pessoa muito grata. Vai dizer o tempo todo que você é a pessoa mais generosa do mundo, queima incenso o tempo inteiro ante o altar onde você é santa(o). Isso enquanto você estiver caindo na armadilha. No dia em que você acordar para a realidade da sua doença e descobrir que foi infectada por esse tipo de parasita, imediatamente ele(a) vai cantar e infectar em outra freguesia. Aí você passará a ser mesquinha, incompreensiva, unha-de-fome, mão-de-vaca, egoísta, cruel. Isso ela vai dizer para todo mundo, e, ainda mais especialmente, para sua nova vítima, a nova santa.

Mas, a essa altura, o Tadinho já causou um estrago brutal na sua confiança na humanidade e, com certeza, na sua conta bancária. Como o Tadinho é um ‘pobrezinho’, ele costuma deixar as pessoas que contamina bem mais pobres. Olho vivo, cuidado com ele!

O remédio para tratar essa infecção, a Tadinhite Crônica é difícil de encontrar. O tratamento deve ser basicamente preventivo. Quando o Tadinho começa a rondar e envolver você, quando você está ficando morto de compaixão, corra a procurar outras pessoas que ele possa ter infectado antes. Elas lhe contarão quem é a figura. Aí é tratar de mostrar que você já sabe, que o Tadinho corre ligeirinho para cantar e contaminar em outro quartel.


O segundo tipo de Tadinho é um Auto-Tadinho: o HIPOCONDRÍACO.

Esse é outro sofredor. Sofre doenças reais (raríssimas), doenças imaginárias (aos montes) e doenças auto-geradas (pela iatrogênese: doenças criadas pelos próprios remédios que ele vive usando e seus inevitáveis efeitos colaterais).

Para se prevenir contra este tipo de contágio infeccioso, tão logo comecem os contatos com essa criatura, dê um jeito de ir até a casa dela e peça para ir ao banheiro. Examine seu armário, veja se está cheio de frascos e caixas de remédios. Entre enganada no quarto e olhe para o criado mudo, onde o amontoamento é dos frascos de consumo diário atual. Aí tente almoçar ou jantar com o(a) Hipo e conte o número de pílulas que ele(a) engole a cada refeição.

Naturalmente você vai ter que ouvir pacientemente todas as queixas desse tipo especial de Tadinho. Ele sofre porque teve o azar de ter esse corpo tão frágil, essa sensibilidade extrema às doenças dos outros e ao meio ambiente, essa fatalidade genética que o marca desde o malfadado ventre materno. Mas o grande perigo é que essa atitude de vítima física da fatalidade é altamente contagiosa e o Hipocondríaco vai tentar convencer você que VOCÊ TAMBÉM ESTÁ DOENTE! Mas você, tonto, nem percebe, ao passo que ele, experiente de décadas, já sacou como você está MAL, muito mal! E já vai começando a lhe prescrever e emprestar comprimidos  que médico, que nada!

O Hipo é, consequentemente, um Tadinho e você vai morrer de dó dele também. Vai fazer de tudo para ajudar, ainda mais se o Hipotadinho já estourou seu cartão de crédito, está devendo em dez farmácias e dois hospitais e está sem seu estoque de segurança de antiespasmódicos, antihemorrágicos, antidepressivos e antihelmínticos; e se seu frasco de remédio para gases está do meio para o fim, suas injeções para náusea estão nas últimas ampolas, se ele só tem mais dúzia e meia de supositórios para tosse; e se as contas no massagista e no acupunturista estão atrasadas. Prepare-se para afrouxar os cordões da sua bolsa, o Tadinho Hipo precisa, pobrezinho. E vai custar caro!

E isso tudo sem falar das noites em claro que você vai passar ouvindo o telefonema aflito das duas da madrugada, que lhe dá conta do enfarto que ele está pressentindo, das pontadas que não o deixam respirar às quatro horas, da necessidade de correr para o apartamento dele, para acompanhá-lo ao hospital na ambulância às cinco, antes que seja tarde demais.

Naturalmente o Tadinho sofre de coisas reais também. De um modo geral, por engolir e injetar tanta química no corpo todo santo dia, ele acaba conseguindo o que quer: fica doente mesmo. É a tal iatrogênese, doenças criadas pelos remédios e tratamentos. Por isso mesmo o Tadinho Hipocondráco tem mais chances de comover você.

Agora, só não tente convencê-lo a buscar tratamento psicológico e nunca – mas nunca mesmo! – arranje um médico capaz de curá-lo, de verdade!, de uma única sequer de suas doenças. Você perde o “amigo” na hora e ele volta a compartilhar sua amizade exclusivamente com a onça.


CONTINUA...

quinta-feira, 17 de abril de 2014

AS PESSOAS SÃO CONTAGIOSAS 
MILTON MACIEL

Pessoas, como os vírus e as bactérias, são altamente contagiosas. Se você ficar algum – não necessariamente muito – tempo exposto a certo tipo de gente, é absolutamente certo que você vai adoecer. Vejamos alguns exemplos. Vamos começar com os mais fáceis de identificar, depois passamos aos mais ocultos e dissimulados, justamente aqueles que originam e espalham as piores epidemias. E acabamos com um que está tão escondido, mas tão escondido, que vive sempre dentro de você.

Podemos dar a partida com o CHATO. Esse é um foco facilmente identificável e, depois de um certo tempo de atuação, todos tratam de se afastar dele o mais que podem. Mas acontece que nem todos podem. O Chato pode ser seu pai, seu irmão, sua filha, seu chefe, seu cônjuge, seu/sua colega de escritório. Nesse caso, você está exposto a doses diárias invitáveis de chatice concentrada, o que faz de você uma vítima potencial de alto risco.

O Chato acaba com o seu bom humor, a sua alegria de viver e trabalhar, é movido a picuinhas e pensamentos derrotistas. A praga da chatice, que ele propaga é muito desagradável. Mas há muitas outras pessoas ainda mais contagiosas.

Vejamos o CRÍTICO, por exemplo. Esclareço que não falo aqui da pessoa que tem a profissão de crítico, avaliador de alguma coisa ou atividade humana. Falo do ser humano de temperamento hiper-crítico. Ah, agora temos aqui uma pessoa de mal com a vida e com o mundo, que ele vê com óculos de fundo de garrafa e lupa de detetive. Ambos de cor cinza-chumbo. O crítico é brevetado na arte de ver defeitos. Tudo para ele está errado, falho, incompleto. Tudo e TODOS, literalmente. O Crítico lembra um promotor com TPM, pedra no rim e úlcera gástrica, tudo ao mesmo tempo. Sempre ligado e atento, encontra perucas inteiras em um só ovo e tem um temperamento excelsamente sombrio.

Se você tem a infelicidade de estar frequentemente exposto um(a) crítico(a), você está condenado a adoecer seriamente. Essa criatura das sombras vai fazer o possível e o impossível para botar você para baixo, tão baixo quanto possível, no afã de atraí-lo para o nível amargurado em que ele vegeta. Nada do que você faz é bom o bastante, você é um candidato garantido ao fracasso, é inútil continuar se esforçando para acertar ou melhorar, é melhor que você pare e desista logo. E, quanto melhor você for, mais agudamente o(a) crítico(a) agirá sobre você com seu processo infeccioso, tratando de solapar sua vitalidade e seus êxitos já alcançados. Cuidado! O Crítico é altamente contagioso e o medicamento eficaz contra sua infecção é AUTO-CONFIANÇA, também receitado com o nome genérico de Amor-próprio.

Em resumo, o Crítico é um Chato que se especializou em fazer do mundo o lugar mais sombrio possível e dos seus habitantes uns míseros fracassados. Ou seja, já que ele não consegue, não realiza, não alcança, então você também não pode ousar.

Na sequência, vamos ter muitos outros tipos para examinar: o TADINHO (aquele que quer fazer você de penico do seu sofrimento e martírio eternos), o FANÁTICO (aquele da Bíblia de sovaco, que é o Chato que pega pagão a tapa), o PARASITA (aquele que acampa na sua vida e garante para si sustento e proteção perenes), o MANIPULADOR (insidiosíssimo tipo, que transforma você em marionete dele e você ainda se mata dando razão ao tipo). E outros mais, como veremos.

Contudo, o pior de todos é o criador da doença AUTO-IMUNE. Sim, porque, nesse caso, o criador do foco infeccioso maléfico É VOCÊ MESMO. Vamos ter que gastar um bocado de tinta escrevendo sobre isso!

Por hoje já chega. Mas procure estar alerta, trate de ser mais observador. Em algum lugar muito perto de você pode haver alguém sugando sua vida, sua grana, sua energia, sua amizade, sua boa-fé, seu entusiasmo, sua alegria, sua saúde. É, amigo(a): PESSOAS SÃO ALTAMENTE CONTAGIOSAS.

Ainda bem que existem algumas cujo contágio é benéfico, são boas bactérias com as quais podemos viver em simbiose, pois elas melhoram nossa vida. Há vários tipos também. Felizmente.
CONTINUA...

domingo, 13 de abril de 2014

DA INCONSÚTIL TRAMA, ADREDEMENTE URDIDA
MILTON MACIEL
 
Da inconsútil trama, adredemente urdida,
Por uma mente má, ferina e manipuladora,
Fui eu a vítima descuidosa, atônita e perdida,
Aferrado para sempre à sua imagem sedutora.

Como um beócio, eu rastejei por seu caminho,
Sempre a entregar meu tolo amor adventício.
E, desde então, não sou mais ninguém sozinho:
Pois fez-se ela, para mim, mais do que um vício.

Minha dependência é tão cruel, devastadora,
Que me aniquila a vontade desde o início.
(Ela, consciente, me tortura, é meu cilício).

Sua frieza me estraçalha – lategada dolorida.
E eu, ad aeternum, nesta ânsia desmedida,
Sigo um fantoche, em mãos de tal destruidora.

sábado, 12 de abril de 2014

NOITE ALTA
Milton Maciel

Pés indecisos inscrevem, pelas ruas, uma caligrafia estranha, de bêbados passos oscilantes.

A noite desaba sobre todos os cansaços, esmaga os lassos corpos, moídos de desesperança.

É então que, no desolado de seus quartos, homens vazios têm sonhos cheios de desolação. (MM)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A  PESTE DO CABRA – Parte 2: conclusão 
MILTON MACIEL 

Foram dias de desespero para Dito Clemente e sua mulher. As crianças até que gostaram, consideraram que estavam de férias. No terceiro dia, Dito lembrou-se do Dr. Aristides. E falou para Maria Rosa:

– Mulé, vô saí.

– Mai vai ondí, homi di Deus? Pois si até com revórve já disfetiaro ocê.

– Vô na cidade, tenho qui arriscá. Careço di telefoná pra Dotô Aristides.

– Ai, aquele dotô qui insinô a fazê as cisterna?

– Sim, o home da Embrapa, si alembra? O agrônomo qui insinô também nóis a fazê os bloco di melado i uréia; i a plantá a gliricídia pras vaca.

– I ocê vai falá o que pru homi, Dito?

– Ara, vô contá pra ele essa disgracera qui inventaro contra a gente i os nossos bichinho tudo.

– Mai i tu acha qui ele vai si importá, Dito?  Esse dotô num tem interesse em gente qui nem nóis, só vem aqui quando o governo manda, ara. Ele vai é ficá cum medo dessa tal di peste tumbém, homi di Deus.

– Pode qui seja, mai eu vô assim mermo. Inté.

Mas dito Clemente, caboclo esperto, aproveitou o ar mais fresco da madrugada e saiu encapotado, com um chapéu diferente puxado sobre os olhos, ia meio disfarçado. Deixou o jegue na entrada da vila e foi andando meio que escondido, até chegar no telefone público. Depois de meia hora de tentativas, conseguiu falar com o agrônomo. Este escutou-o atentamente e lhe disse.

– Já entendi tudo, Seu Dito. Pode deixar que eu vou lhe ajudar. Mas agora faça o seguinte, para não correr risco desnecessário: Volte logo para sua casa e espere por minhas providências. Tenha paciência, pode demorar um pouquinho, mas confie em mim.

– Mais aliviado, Dito Clemente esgueirou-se no jegue em direção a sua fazendola. E contou a Maria Rosa que o homem prometeu ajudar. Só que dois dias se passaram e nada aconteceu. No terceiro dia, Maria Rosa já estava desacorçoada:

– Eu num disse, homi, qui não ia adiantá? Esse dotozinho só falô aquilo pra modi mandá ocê di volta pra fazenda, pra num levá peste pra ele tumbém.
  Mai qui peste, mulé. Nóis num tem peste nenhuma, diacho!

– Ai, Dito, eu já num sei, não. Pois si tá todo mundo falando qui nóis tem, até o dotozinho mando ocê vortá pra casa cum medo di pegá a peste, vai vê nós tá mesmo tudo pestiado i num sabe.

– Mulé, ocê é qui tá cum uma peste dentro da sua cabeça, ó xente.

Mas foram inerrompidos pela buzina de uma caminhonete que se aproximava. Depois de um minuto, Dito reconheceu:

  Mai é da Embrapa, mulé! É o dotô Aristides. Ele veio mermo!

Dentro da caminhonete de quatro lugares, havia mais dois homens. O agrônomo apresentou:

– Dito, este é o Dr. Mariano, nosso médico epidemiologista. E este é o prefeito da cidade, Dr. Epaminondas, que é também veterinário. Viemos buscar você.

– Buscá eu? Pra donde dotô?

– Pois nós vamos até a cidade, para a delegacia de polícia.

– Creindeuspai! Mecês vão me prendê por causa da peste?

– Pelo amor di Deus, num prende meu marido, seu prefeito! Ele num tem culpa di nada, nós não pegô a peste dos bicho porque quis. Releve, por nossa Sinhora. Por meus quatro filinho!

– Calma, Dona Maria Rosa, ninguém está prendendo o seu marido. E não diga uma barbaridade dessas: vocês não pegaram peste coisa nenhuma, nem vocês nem seus animais. Isso foi tudo invenção de um cabra safado. Levamos dois dias para apurar tudo. Agora o Seu Dito vem com a gente até a delegacia, onde o sujeito está detido.

– Qué dizê qui nóis num tem peste? Graças Deus-Nossa Sinhora! Lovado seje!

– Não há peste alguma, minha senhora. Só na cabeça de um homem invejoso e mal-intencionado. Vamos embora, Seu Dito. De carro é bem perto, em menos de meia hora a gente está lá e eu quero ter o prazer de ver esse indivíduo olhar para o senhor nos olhos. Não vou lhe dizer quem é a figura, não quero estragar a surpresa.

No caminho foram todos conversando animadamente. O prefeito que não conhecia Dito Clemente puxando prosa com ele o tempo todo. Quando chegaram e entraram na delegacia, o delegado mandou buscar o preso, que chegou algemado. Era Bento Mouco!

– Mai Bento Mouco, intão foi ocê qui aprontô essa presepada com nóis mais nossos bicho? Mai por causa di que, homi? Que qui nóis fez procê?

Bento Mouco, refeito da surpresa, só baixou os olhos e ficou olhando o chão.

– O que você fez foi ousar ser um ótimo produtor, ser um homem decente e ter uma esposa e uma família que esse anormal também inveja.

– Vixe! Mai intão é só inveja que esse diabo sente, é?

– Sim, Dito. Mas o delgado Cosme já apurou tudo para nós e a prefeitura entrou nesse caso do seu lado. O senhor compreende, nós não podemos deixar uma coisa dessas impune, temos que dar o exemplo agora, que é para que nunca mais uma coisa assim aconteça. Por isso aqui estão estes papéis, é só o senhor assinar, que o senhor sabe escrever.

– I pra modi di?...

– É uma queixa-crime por difamação e calúnia, sua contra esse animal.

Dito Clemente imediatamente assinou as quatro vias de papel que lhe eram apresentadas, sem nem tentar ler aquelas palavras complicadas de advogado. Seu doutor prefeito e seu doutor agrônomo mereciam sua total confiança. E aquele desgraçado do Bento Mouco que se danasse, era bem feito.

– I o qui qui acuntece cum o disgrmado, dotô? Vai ficá preso?

O delgado, ao invés de responder, mandou que levassem o Mouco de volta para a cela. Só então ele falou para Dito Clemente:

–Que nada, Dito. A esse inquérito o cabra responde em liberdade. Eu só prendi esse inútil e passei as algemas nele pra dar um bom susto no idiota. Funcionou,ele se borrou todo de medo, suplicou, ajoelhou, chorou. Negou tudo. Mas a gente já tinha reunido um monte de testemunhos contra ele, com o Dr. Mariano nos acompanhando e, como médico epidemiologista, garantindo que não existe essa coisa que o Mouco falou que era peste. Aí eu ameacei prender todos os outros por calúnia, eles se assustaram e trataram de por a culpa toda no verdadeiro culpado. Foi aí que eu coloquei o sujeitinho na cela, com instrução para os outros presos abusarem bastante dele.

– Arre égua, dotô! Mai até aquela coisa?

– Principalmente aquela coisa, Dito. Desde ontem à noite ele virou mulherzinha naquela cela. E eu pedi para o Neco carcereiro sair contando tudo pela cidade inteira e lá na venda do Careiro. O homem está completamente desmoralizado. Eu vou ter que soltar o cabra agora de tarde, mas duvido que ele fique por aqui depois disso. O Benevides diz que vai passar a peixeira nele, que fez injustiça com o melhor vizinho dele por causa daquele mequetrefe. Aliás, tem um monte de gente perguntando se pode fazer uma visita a você, para lhe pedir perdão, Dito Clemente.

– Perdão? Num carece, não, dotô delegado. Dexe eles lá cum a vida deles i eu, mais Maria Rosa i as criança cum a nossa. Num carece.

O prefeito apertou a mão de Dito Clemente e disse:

– Muito bem, Dito. É que eu faria também se estivesse no seu lugar. E olhe que é uma forma muito boa de punir também esse povo maldoso. Mas eu posso visitar vocês, não é Dito?

– Ara! Pois seu dotô prefeito, seu doto agrônomo, seu dotô dotô i seu dotô delegado podi intra a hora qui quisé na minha fazendinha, qui ocês é gente di casa, vai se tratado qui nem famía, eu sô devedô di todos ocês pro resto da minha vida.

E todo mundo na cidadezinha pôde ver o falso pesteado andando pra cima e pra baixo ao lado do prefeito, do delegado, do médico e do agrônomo da Embrapa. Que peste que nada! Eles é que eram uns jegues de terem acreditado naquele mentiroso do Bento Mouco. Que vergonheira, Santo Deus!

Só então o agrônomo lembrou de contar para Dito que o homem do posto de coleta de leite da cooperativa tinha sido demitido. Era impossível confiar num funcionário que vai atrás do primeiro fuxico de comadre que lhe apresentam e, com isso, prejudica os negócios da empresa.

De tarde Bento Mouco foi libertado, contratou um taxi, passou por sua fazendola e catou o que deu dos seus teréns. Seguiu de taxi mesmo para a cidade próxima, onde saltou na estação rodoviária. Negro Bastião, o motorista, um armário de dois metros por dois, não resistiu à tentação e falou para o Mouco, assim que ele desceu:

– Agora que você tomou gosto, vá pra cidade grande, lá tem um monte de gente que nem você, que trabalha como travesti. Use o nome de Dona Benta, florzinha.

Bento Mouco aproveitou a deficiência auditiva para fazer que não ouviu. Embarcou no ônibus para Jaboatão dos Guararapes, esperando que o homem da imobiliária tivesse entendido bem seu recado no bilhete, mas não podia confiar nos seus horríveis garranchos. Era melhor ligar para o homem quando estivesse em Jaboatão. Queria ter certeza que ele entendia que podia vender sua propriedade para qualquer um, menos para aquele desgraçado do Dito Clemente. Fio duma égua!                   FIM

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A PESTE DO CABRA
MILTON MACIEL

Dito Clemente era um sujeito porreta! Ali estava um homem de verdade, um cabra macho pronto para enfrentar qualquer perigo ou situação em defesa de um amigo. E tinha mais: gente de palavra estava ali também: Dito Clemente prometeu, pode contar que é certo.

E ele era também o maior e o melhor produtor de leite daquele sertão, suas vaquinhas pé-duro, mesmo em plana seca, nunca secavam, sempre tinha algumas pelo menos em lactação. É que Dito sabia como ninguém captar as águas durante o curto período de chuvas, conseguia distribuí-las bem na seca e, além de ter duas cisternas grandes que garantiam o abastecimento da família por todo o ano, sua cabras e suas vaquinhas também tinham água garantida pelos açudes cobertos.

Além disso, ele tinha aprendido a fazer os tais blocos de uréia-melado, que, lambidos diariamente por animais ruminantes, permitiam que eles se alimentassem com capim seco queimado pelo sol e com bagaço de cana. Isso porque a composição de materiais nos blocos permite que a flora do rúmen se multiplique de tal maneira que os animais conseguem digerir palha seca, material apenas celulósico, e, dessa forma, não perdem peso e mantêm sua produção de leite.

Dessa forma, Dito Clemente passava todo o verão – a curta época das chuvas – fazendo os tais blocos com o melado da cana que tinha moído no inverno, época das secas. Colhia o milho e fazia silagem, o que era feito também com corte de leguminosas forrageiras. Em resumo, Dito Clemente era um caboclo que entendia do riscado, trabalhava de sol a sol e mais um pedaço da noite. E tratava seus animais com extremo cuidado e dedicação.

A conseqüência de todo esse trabalho refletia-se em sua condição de maior e melhor produtor de leite daquele cantinho pobre do sertão. Maior porque entregava 100 litros por dia nas águas e até 70 litros por dia na seca. Claro, esses 100 litros por dia eram uma piada para os produtores realmente grandes. Mas, para aquela caatinga pobre, a produção de Dito Clemente era um portento.

Para completar, homem sério e compenetrado, que nunca bebia, pai de quatro crianças e trabalhador como só, Dito tinha sempre suas economias. Não faltava comida em sua casa, nem as crianças deixavam de ir à escola todo dia. E, para deixar tudo ainda mais perfeito, existia também Maria Rosa. Ah, Maria Rosa fazia juz ao nome: tinha a bondade de Maria e a beleza da rosa.

Em resumo, era demais para um cabra só: fazendinha pequena, mas ajeitada, produção firme mesmo na seca, criançada bem alimentada e estudando direitinho, mulher bonita como só e nenhuma, mas nenhuma mesmo, dívida no banco. Era demais! Um cabra assim não podia existir sem causar uma enorme INVEJA nos outros.

Bento Mouco, que o tinha de atrapalhado nos ouvidos tinha de azedo no coração, era um dos que mais o invejavam. Vizinho da esquerda, propriedade menor, pouca produção e muita cachaça, ficava se doendo todos os dias, quando o caminhãozinho de Tonho Vesgo passava para pegar seus mirradinhos tambores de leite – 20 a 30 litros nas águas e olhe lá! Na carroceria vinha aquele despropósito de tambores de Dito Clemente, atulhados de leite de qualidade até à boca.

Bento Mouco fazia as contas com raiva todos os dias: Aquele disgramado vende tudo isso pra cuperativa i inda recebe mais do qui nóis por litro, porque o leiti dele tem a tal da qualidade superior. Fio duma égua!

Zé Benevides era o vizinho pelo lado direito. Não era um caboclo cheio de maldades como Bento Mouco, mas deixava-se levar por este, tinha um caráter fraco e impressionável. Toda vez que os dois se encontravam, quase sempre na venda de Nicolau Careiro, para empinarem uma boa dúzia de tragos de cachaça, lá vinha a ladainha de sempre:

– Esse Dito Clemente num mi cunvence. Arguma ele faiz qui num é decente, pra tê tanto leiti assim. Pra mim ele agôa.

Zé Benevides respondia gritado, que o Mouco não ouvia direito:

– Mai qui agôa, o que, cumpadi Bento! A cuma qui o homi vai ponha água no leiti dele i a cuperativa vai pagá mais por ele? Lá os homi tem os apareio, pra modi medi as coisa dos leiti.

– Pois pra mim tem água i ele paga os homi dos apareio pra farseá os resultado tudo.

– Pode qui seja, cumpadre. Pode qui seja, mai eu duvido muito. O Dito é qui é muito bom di produzi mermo.

– Pois a mim num cunvence. Aí tem coisa. Tem coisa i eu vô discubrí. Ah, si vô! Discubro o não mi chamo Bento Mouco.

E, água mole em pedra dura, conseguiu impressionar Zé Benevides o suficiente para que também ele passasse a acreditar que ali tinha coisa. Ó xente, Bento Mouco deve di sabê o qui diz. Aí tem coisa!

Mas, como não tinha coisa coisa nenhuma, só restou ao arqui-invejoso Bento Mouco inventar a tal coisa. E inventou.

Um dia o Mouco chegou na venda do Nicolau Careiro na hora em que tinha mais gente, num  domingo, localizou Zé Benevides e já veio despejando desde longe, falando muito alto, para todo mundo ouvir:

– Mai eu num disse! Eu num disse! Pois ó o qui tem di errado cum o leiti di Dito Clemente. Pois é a PESTE!

– Arre égua, cumpadre, num mi diga! A Peste?

– Pois le digo, le digo. É peste braba. O gado todo do homi tá pesteado, qui eu vi. E ocês sabi qui eu cunheço peste muito bem. I acho qui é aquela peste braba, qui passa pras pessoa também. Pra mim tá tudo pesteado ali, as cabra, as vaca, os jegue. I até as pessoa.

– Oxe, diacho! Danou-se – gritou Maneco Dantas bem alto, para que o Mouco pudesse ouvir – Mai si até as pessoa... Qué dizê qui nóis tem qui evitá o contato com eles tudo, sinão nóis garra a peste tumbém.

E, daquela malfada tarde em diante, a fama correu pela região. A primeira coisa que Dito notou foi que o caminhãozinho de Tonho Vesgo não passou mais para pegar o leite, que azedou no primeiro dia e foi transformado em coalhada e soro para os porcos. No segundo dia, Maria Rosa e as crianças fizeram queijo coalho e manteiga de garrafa. 

Então Dito Clemente foi procurar o posto da cooperativa, mas o segurança não deixou que ele entrasse. Explicou que ele tinha que ir a um telefone público e ligar para Seu Alcides. Seu Alcides explicou que, como Dito e a família tinham contraído a peste, as pessoas não o queriam por perto. E, como suas vacas também estavam pesteadas, o pequeno posto da cooperativa, responsabilidade dele, Alcides, não podia mais retirar o leite na sua propriedade.

Dito Clemente voltou para casa desconsolado. De onde tinha surgido aquela coisa mais louca. Como é que podiam acreditar que uma peste das vacas passava para os humanos e vive-versa? Mas o fato é que o povo todo e até o homem da cooperativa acreditavam. Ele estava liquidado! O que iria fazer para sobreviver, se não podia mais vender seu leite?

Ao chegar, ficou sabendo, horrorizado, que seus quatro filhos tinham sido mandados embora da porta da escola, com a determinação de nunca mais parecerem até estarem curados da peste. Maria Rosa chorava assustada. Tinha medo que as crianças morressem, pois a peste pode matar em poucos dias.

Dito Clemente custou a convencer Maria Rosa que ninguém ali tinha peste. Nem eles, nem os animais. Aquilo devia ter sido uma invenção de alguém, com o evidente intuito de prejudicá-lo. Mas quem poderia ser?

O problema é que ele não podia nem ir averiguar, porque ninguém, em todo o povoado e nas propriedades ao redor, deixava que ele chegasse perto. Um soldado da força pública tinha chegado a puxar a arma, mandando-o sumir na estrada ligeirinho.

Dito Clemente ficou a cismar, enquanto observava Maria Rosa e as meninas ajoelhadas, puxando reza para Nossa Senhora. O que é que ele podia fazer para defender sua família e seu gado, sua sobrevivência inclusive?...

CONCLUI AMANHÃ







domingo, 6 de abril de 2014

ESTRANHOS OS PERCURSOS DESTA VIDA DESCONTENTE 
MILTON  MACIEL 

Estranhos os percursos desta vida descontente
Eivados dos percalços de um tumulto ababelado.
São ínvios os caminhos que transitam pelo fado
Dos passos, perlustrando confusões em nossa mente.

Em vão quer nosso espírito encontrar decriptado,
O enigma que a vida nos propõe diuturnamente.
O corpo das doutrinas está sempre decumbente,
Não nos explica nada por inútil, derreado.

E assim o ser se arrasta pela senda inutilmente,
Transido, entristecido, pelos fados alquebrado,
Perdida a esperança num futuro que é inclemente.

Porém mesmo que o fado seja tê-lo derrotado
Lhe resta o ser estóico, ter a fleuma persistente
Dos que tombam de pé, ante um destino amaldiçoado.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

SEDE ETERNA    
MILTON MACIEL  


Assedentado de você por todo o sempre,
Em mil suspiros a vagar pelo borriço,
Sigo perdido, pelo ambiente encharcadiço,
Sem ter de mim a mais ínfima consciência.

Por pressentir a minha própria impermanência,
Me arrasto a custo pela transitoriedade.
O que me arrasa é padecer esta saudade,
Que me aprisiona num perpétuo desvario.

Hórrido é o ímpeto de arrojar-me neste rio
E afogar nele meu corpo e minhas mágoas,
Como se fosse possível, em suas águas,
Tornar soluto o meu ser em sua inteireza.

Talvez assim não fosse eu mais só incerteza,
Assedentado de você pra todo o sempre!