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PESTE DO CABRA – Parte 2: conclusão
MILTON MACIEL
Foram dias de desespero para Dito Clemente
e sua mulher. As crianças até que gostaram, consideraram que estavam de férias.
No terceiro dia, Dito lembrou-se do Dr. Aristides. E falou para Maria Rosa:
– Mulé, vô saí.
– Mai vai ondí, homi di Deus? Pois si até
com revórve já disfetiaro ocê.
– Vô na cidade, tenho qui arriscá. Careço
di telefoná pra Dotô Aristides.
– Ai, aquele dotô qui insinô a fazê as
cisterna?
– Sim, o home da Embrapa, si alembra? O
agrônomo qui insinô também nóis a fazê os bloco di melado i uréia; i a plantá a
gliricídia pras vaca.
– I ocê vai falá o que pru homi, Dito?
– Ara, vô contá pra ele essa disgracera qui
inventaro contra a gente i os nossos bichinho tudo.
– Mai i tu acha qui ele vai si importá,
Dito? Esse dotô num tem interesse em
gente qui nem nóis, só vem aqui quando o governo manda, ara. Ele vai é ficá cum
medo dessa tal di peste tumbém, homi di Deus.
– Pode qui seja, mai eu vô assim mermo.
Inté.
Mas dito Clemente, caboclo esperto,
aproveitou o ar mais fresco da madrugada e saiu encapotado, com um chapéu
diferente puxado sobre os olhos, ia meio disfarçado. Deixou o jegue na entrada
da vila e foi andando meio que escondido, até chegar no telefone público.
Depois de meia hora de tentativas, conseguiu falar com o agrônomo. Este
escutou-o atentamente e lhe disse.
– Já entendi tudo, Seu Dito. Pode deixar
que eu vou lhe ajudar. Mas agora faça o seguinte, para não correr risco
desnecessário: Volte logo para sua casa e espere por minhas providências. Tenha
paciência, pode demorar um pouquinho, mas confie em mim.
– Mais aliviado, Dito Clemente esgueirou-se
no jegue em direção a sua fazendola. E contou a Maria Rosa que o homem prometeu
ajudar. Só que dois dias se passaram e nada aconteceu. No terceiro dia, Maria
Rosa já estava desacorçoada:
– Eu num disse, homi, qui não ia adiantá?
Esse dotozinho só falô aquilo pra modi mandá ocê di volta pra fazenda, pra num
levá peste pra ele tumbém.
– Mai
qui peste, mulé. Nóis num tem peste nenhuma, diacho!
– Ai, Dito, eu já num sei, não. Pois si tá
todo mundo falando qui nóis tem, até o dotozinho mando ocê vortá pra casa cum
medo di pegá a peste, vai vê nós tá mesmo tudo pestiado i num sabe.
– Mulé, ocê é qui tá cum uma peste dentro
da sua cabeça, ó xente.
Mas foram inerrompidos pela buzina de uma
caminhonete que se aproximava. Depois de um minuto, Dito reconheceu:
–
Mai é da Embrapa, mulé! É o dotô Aristides. Ele veio mermo!
Dentro da caminhonete de quatro lugares,
havia mais dois homens. O agrônomo apresentou:
– Dito, este é o Dr. Mariano, nosso médico
epidemiologista. E este é o prefeito da cidade, Dr. Epaminondas, que é também
veterinário. Viemos buscar você.
– Buscá eu? Pra donde dotô?
– Pois nós vamos até a cidade, para a delegacia
de polícia.
– Creindeuspai! Mecês vão me prendê por
causa da peste?
– Pelo amor di Deus, num prende meu marido,
seu prefeito! Ele num tem culpa di nada, nós não pegô a peste dos bicho porque
quis. Releve, por nossa Sinhora. Por meus quatro filinho!
– Calma, Dona Maria Rosa, ninguém está
prendendo o seu marido. E não diga uma barbaridade dessas: vocês não pegaram
peste coisa nenhuma, nem vocês nem seus animais. Isso foi tudo invenção de um
cabra safado. Levamos dois dias para apurar tudo. Agora o Seu Dito vem com a
gente até a delegacia, onde o sujeito está detido.
– Qué dizê qui nóis num tem peste? Graças
Deus-Nossa Sinhora! Lovado seje!
– Não há peste alguma, minha senhora. Só na
cabeça de um homem invejoso e mal-intencionado. Vamos embora, Seu Dito. De
carro é bem perto, em menos de meia hora a gente está lá e eu quero ter o
prazer de ver esse indivíduo olhar para o senhor nos olhos. Não vou lhe dizer
quem é a figura, não quero estragar a surpresa.
No caminho foram todos conversando
animadamente. O prefeito que não conhecia Dito Clemente puxando prosa com ele o
tempo todo. Quando chegaram e entraram na delegacia, o delegado mandou buscar o
preso, que chegou algemado. Era Bento Mouco!
– Mai Bento Mouco, intão foi ocê qui
aprontô essa presepada com nóis mais nossos bicho? Mai por causa di que, homi?
Que qui nóis fez procê?
Bento Mouco, refeito da surpresa, só baixou
os olhos e ficou olhando o chão.
– O que você fez foi ousar ser um ótimo
produtor, ser um homem decente e ter uma esposa e uma família que esse anormal
também inveja.
– Vixe! Mai intão é só inveja que esse
diabo sente, é?
– Sim, Dito. Mas o delgado Cosme já apurou
tudo para nós e a prefeitura entrou nesse caso do seu lado. O senhor
compreende, nós não podemos deixar uma coisa dessas impune, temos que dar o
exemplo agora, que é para que nunca mais uma coisa assim aconteça. Por isso
aqui estão estes papéis, é só o senhor assinar, que o senhor sabe escrever.
– I pra modi di?...
– É uma queixa-crime por difamação e
calúnia, sua contra esse animal.
Dito Clemente imediatamente assinou as
quatro vias de papel que lhe eram apresentadas, sem nem tentar ler aquelas
palavras complicadas de advogado. Seu doutor prefeito e seu doutor agrônomo
mereciam sua total confiança. E aquele desgraçado do Bento Mouco que se
danasse, era bem feito.
– I o qui qui acuntece cum o disgrmado,
dotô? Vai ficá preso?
O delgado, ao invés de responder, mandou
que levassem o Mouco de volta para a cela. Só então ele falou para Dito
Clemente:
–Que nada, Dito. A esse inquérito o cabra
responde em liberdade. Eu só prendi esse inútil e passei as algemas nele pra
dar um bom susto no idiota. Funcionou,ele se borrou todo de medo, suplicou,
ajoelhou, chorou. Negou tudo. Mas a gente já tinha reunido um monte de
testemunhos contra ele, com o Dr. Mariano nos acompanhando e, como médico
epidemiologista, garantindo que não existe essa coisa que o Mouco falou que era
peste. Aí eu ameacei prender todos os outros por calúnia, eles se assustaram e
trataram de por a culpa toda no verdadeiro culpado. Foi aí que eu coloquei o
sujeitinho na cela, com instrução para os outros presos abusarem bastante dele.
– Arre égua, dotô! Mai até aquela coisa?
– Principalmente aquela coisa, Dito. Desde
ontem à noite ele virou mulherzinha naquela cela. E eu pedi para o Neco
carcereiro sair contando tudo pela cidade inteira e lá na venda do Careiro. O
homem está completamente desmoralizado. Eu vou ter que soltar o cabra agora de
tarde, mas duvido que ele fique por aqui depois disso. O Benevides diz que vai
passar a peixeira nele, que fez injustiça com o melhor vizinho dele por causa
daquele mequetrefe. Aliás, tem um monte de gente perguntando se pode fazer uma
visita a você, para lhe pedir perdão, Dito Clemente.
– Perdão? Num carece, não, dotô delegado. Dexe
eles lá cum a vida deles i eu, mais Maria Rosa i as criança cum a nossa. Num
carece.
O prefeito apertou a mão de Dito Clemente e
disse:
– Muito bem, Dito. É que eu faria também se
estivesse no seu lugar. E olhe que é uma forma muito boa de punir também esse
povo maldoso. Mas eu posso visitar vocês, não é Dito?
– Ara! Pois seu dotô prefeito, seu doto
agrônomo, seu dotô dotô i seu dotô delegado podi intra a hora qui quisé na
minha fazendinha, qui ocês é gente di casa, vai se tratado qui nem famía, eu sô
devedô di todos ocês pro resto da minha vida.
E todo mundo na cidadezinha pôde ver o
falso pesteado andando pra cima e pra baixo ao lado do prefeito, do delegado,
do médico e do agrônomo da Embrapa. Que peste que nada! Eles é que eram uns jegues
de terem acreditado naquele mentiroso do Bento Mouco. Que vergonheira, Santo
Deus!
Só então o agrônomo lembrou de contar para
Dito que o homem do posto de coleta de leite da cooperativa tinha sido
demitido. Era impossível confiar num funcionário que vai atrás do primeiro
fuxico de comadre que lhe apresentam e, com isso, prejudica os negócios da
empresa.
De tarde Bento Mouco foi libertado,
contratou um taxi, passou por sua fazendola e catou o que deu dos seus teréns.
Seguiu de taxi mesmo para a cidade próxima, onde saltou na estação rodoviária.
Negro Bastião, o motorista, um armário de dois metros por dois, não resistiu à
tentação e falou para o Mouco, assim que ele desceu:
– Agora que você tomou gosto, vá pra cidade
grande, lá tem um monte de gente que nem você, que trabalha como travesti. Use
o nome de Dona Benta, florzinha.
Bento Mouco aproveitou a deficiência
auditiva para fazer que não ouviu. Embarcou no ônibus para Jaboatão dos
Guararapes, esperando que o homem da imobiliária tivesse entendido bem seu recado
no bilhete, mas não podia confiar nos seus horríveis garranchos. Era melhor
ligar para o homem quando estivesse em Jaboatão. Queria ter certeza que ele
entendia que podia vender sua propriedade para qualquer um, menos para aquele
desgraçado do Dito Clemente. Fio duma
égua! FIM