sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A MORTE DE UM PAPA INCONVENIENTE  
MILTON MACIEL
   O último carro a chegar à Vila Borghese, um imenso casarão nos arredores de Roma, teve que estacionar no jardim mesmo, já coalhado de outros veículos. Na noite de tempestade, sob a luz amarelada dos faróis, um vulto de capote negro correu sob a chuva fria até à porta principal. Dali dois homens de terno preto, munidos de lanternas, o escoltaram até o grande salão, no andar superior. O recinto estava todo iluminado por velas pendentes em imensos candelabros. Por causa do péssimo tempo, faltava energia elétrica desde o fim da tarde. De tempos em tempos, a peça era atingida pela luz de relâmpagos que espocavam lá fora.
– Perdão, senhores, com esta tempestade a viagem de Pádua até aqui foi um transtorno.
– Seja bem-vindo, Cardeal Carlini. Agora já podemos começar. Tomem assento senhores, por favor. Não devemos perder mais tempo. E, de imediato, quero que conheçam o Dr. Altafini, nosso grande cientista, que, na verdade, dispensa apresentações – tendo dito isso, o cardeal Montano assumiu seu lugar à cabeceira da grande mesa de reuniões e, sem delongas, foi direto ao assunto:
– Senhores, todos sabem muito bem porque estamos aqui. Temos o prazer de receber em nossa casa, hoje, os irmãos da Octopus Dei, aqueles que estão conosco, infelizmente uma pequena, porém seleta minoria. Para nós, da Cardinales Christi, a CC, é uma honra tê-los conosco nesta hora tão grave para nossa Igreja. Já discutimos, em reuniões anteriores, o que tem que ser feito e como vamos fazê-lo. Não vamos perder tempo, repetindo um assunto que já foi aprovado por unanimidade em votação. Inocêncio XI tem que ser eliminado e com a máxima urgência. Dr. Altafini, por favor, suas explicações!
 Grato, Cardeal Montano. Excelências, é simples. O MRV3 vem sendo usado há mais de uma década, com o mais amplo sucesso, por agentes secretos e governantes, em vários lugares do mundo. Ele é inodoro e insípido, tendo uma leve cor amarelada. O ideal é ministrá-lo diluído em um líquido, um suco de frutas, por exemplo. Uma vez no organismo, ele leva cerca de meia hora para agir, o que dá um bom tempo para quem o ministrou se retirar do ambiente, caso isso seja necessário. Então sua ação é fulminante e irreversível, mata sempre: provoca um infarto agudo do miocárdio e uma parada respiratória simultânea. Seus efeitos confundem o diagnóstico e os resíduos são completamente eliminados em cerca de dois dias. Isso significa que não podemos deixar que seja feita uma autopsia antes desse tempo. Mas o problema é... quem irá oferecer o líquido mortal ao papa?
– Eu o farei, senhores! – falou, enérgico, o cardeal Belarmino. Como sabem, sou o melhor amigo de Inocêncio. Desde os tempos de seminário, quando ele ainda era apenas o menino Gianluca, estivemos sempre juntos e nos tornamos grandes amigos. Ele me trouxe para o Vaticano e, quando eleito Papa, colocou-me como seu Conselheiro de toda confiança. Mas, de uns tempos para cá, Inocêncio enlouqueceu. Ele cismou que tem que acabar com o celibato e o voto de castidade para os padres, uma heresia abominável. Em vão tentei demovê-lo da idéia absurda de convocar um Concílio extraordinário imediatamente e levá-lo a aprovar sua reforma odiosa. Hoje ele pode obter a maioria necessária, portanto não há, de fato, outro caminho senão a solução final. Antes isso, do que assistirmos como covardes a derrocada de nossa Santa Madre Igreja.
   Houve um grande alarido, com todos falando ao mesmo tempo, entusiasmados. Alguns se levantaram para apertar as mãos de Altafini e Belarmino. Quando este saiu da casa da CC, sob a chuva persistente do fim da noite, dirigiu-se para o Vaticano levando no bolso, dentro de um pequeno frasco amarelo, a morte. O alvo: Inocêncio XI, o papa revolucionário. Um papa claramente inconveniente.
   Sim, esse papa de apenas 65 anos havia revolucionado tudo desde sua chegada ao poder. Mas o que vinha agora era algo inimaginável. Inocêncio acreditava que estava mais do que na hora de acabar com o celibato e o voto de castidade para os padres católicos. Argumentava que a reforma era inadiável, porque a perda de sacerdotes era enorme e havia a grande carência de novos jovens a serem ordenados, assim como o enorme avanço das seitas pentecostais. Um grande sedutor e um talentoso político, se conseguisse convocar um Concílio extraordinário agora, na certa seria o vencedor. Por isso a CC precisava pará-lo imediatamente.
   Inocêncio pregava que, se aprovasse sua reforma, atacaria outros problemas também: Os casos de abusos sexuais contra meninas; os envolvimentos de padres com mulheres; o grande número de padres com famílias. E a liberação do voto de castidade, automático para quem renunciasse ao celibato, permitiria que os padres e os aspirantes a padre, podendo ter uma vida sexual normal com mulheres, ficassem menos sujeitos às tentações das relações homossexuais. Aqui o que ele buscava era diminuir a incidência de casos de pedofilia contra meninos. Em sua reforma radical, Inocêncio também arrancaria do Concilio um reposicionamento quanto ao homossexualismo em geral, muito mais tolerante e liberal.
   Dois dias depois da reunião secreta na casa da CC, Inocêncio XI saiu-se com mais uma de suas surpresas. Uma sucessão de medidas legislativas alterava o formato tradicional de convocação e funcionamento do Conclave, para eleição de um novo papa. Dali em diante, o Conclave teria que estar funcionado em no máximo 48 horas após a morte do papa. E a primeira reunião seria realizada com o corpo do papa falecido presente, para receber as últimas homenagens dos cardeais. Só depois disso, ele baixaria a seu jazigo. O fato causou estranheza em quase todos, mas deixou os membros da CC muito aliviados: em tal caso não haveria, com certeza, realização de autópsia no corpo do Santo Padre antes da cerimônia no Conclave. Agora só faltava que o ‘grande amigo’ Belarmino agisse.
    Este parece ter esperado pela confirmação da convocação, pelo papa, do Concílio extraordinário, para dali um mês. Uma semana antes que isso se desse, veio a notícia terrível: Inocêncio XI falecera de repente, vitimado por um infarto fulminante do miocárdio! Dessa forma, pela nova lei, na tarde do segundo dia após o falecimento do papa revolucionário, foi instaurado o Conclave, com dezenas de cardeais fazendo-se presentes depois de longas e exaustivas viagens de emergência, vindos dos mais diversos países. Estavam todos presentes. Entre eles os antigos aliados e os inimigos mortais de Inocêncio. Agora, sem a liderança firme do papa, a posição dos seus assassinos, assim como a dos conservadores, colocava em cheque a possibilidade de aprovação da grande reforma.
   Um a um os cardeais se aproximaram do esquife, colocado em um estrado de um metro de altura e revestido com toda a glória e pompa do cargo. Em genuflexão, declararam sua homenagem ao falecido. E, por uma manobra dos conservadores, estes começaram a declarar também sua concordância ou discordância em relação às reformas de Inocêncio. Foi quando seus aliados tiveram a surpresa e o dissabor de ver que sete de seus mais fiéis companheiros haviam se bandeado, descaradamente, para o lado dos virtuais vencedores no futuro Concílio, os conservadores.
   Quando o cardeal Montano, da CC, ajoelhou-se ante o esquife, parte das luzes do salão falhou e um vapor esbranquiçado começou a subir do estrado, envolvendo o corpo do papa. Montano levantou-se, assustado. Então, arrancando uma exclamação de espanto geral, o espectro do papa se ergueu no meio da bruma, assustador, cadavérico, esquálido, com uma face rebrilhante. E o fantasma falou:
– Montano, como ousa ajoelhar ante mim, seu assassino?! Você tramou e organizou a minha morte! Foi de sua mente criminosa que saiu a idéia que fez meu amigo Belarmino me trair, como Judas, e me dar o veneno que me matou. Idéia de você e daquele bandido Altafini, que lhes forneceu o veneno.
– Perdão, Gianluca, perdão!!!  - Era a voz desesperada do Cardeal Belarmino, que correu a prostrar-se ante o espectro do morto e confessou, aos soluços, toda a conspiração, entregando muitos outros nomes. O cardeal Montano, apoplético, tentava em vão silenciá-lo aos berros. Num certo momento, sentindo tudo desmoronar aos seus olhos, Montano arremeteu com fúria contra Belarmino, pegou-o pelo pescoço e tentou estrangulá-lo.
   Foi quando a voz do espectro se fez bem clara, humana, diferente do tom gutural até então ouvido:
– Chega – gritou ele – acendam as luzes, desliguem o ultravioleta, parem o gás, façam entrar a guarda.  
   E, ato contínuo, com um farfalhar de vestes douradas, saltou do estrado e arrancou Montano de sobre o assustado Belarmino. A guarda entrou, prendeu Montano e sete outros cardeais envolvidos no complô do assassinato do papa. Inocêncio XI, à plena luz da sala, nada tinha de espectral. Era um homem vivo e muito vivo. Quando a guarda se aproximou para aprisionar Belarmino, o papa não permitiu. Acolheu o amigo em um grande abraço e falou:
– Senhores, se hoje eu estou vivo e meus possíveis assassinos desmascarados e presos, devemos tudo a este que é e sempre foi o meu maior amigo. Ele conseguiu se infiltrar na CC, levou-os a acreditar que me odiava e foi ele, o encarregado de me dar o veneno, que nos informou de toda a traição. Então nós reagimos, forjamos a minha morte com o auxílio do meu médico, que emitiu o atestado de óbito. Eu fui sedado profundamente várias vezes, para me manter imóvel por dois dias, como convém a um bom e honesto cadáver. Promovi a alteração da legislação sobre o Conclave e preparamos esta farsa com luzes e vapor de gelo seco. Então o fantasma papal falou e Belarmino completou a farsa, chorando copiosamente, na confissão em que incriminou Montano, Altafini e todos os demais. Com isso, Montano se descontrolou e se deixou desmascarar por completo. Assim como deixaram cair a máscara, ajoelhados, sete dos meus “fiéis” aliados de anteontem. Serão lembrados oportunamente.
   O papa conversou longamente com seus cardeais. O Concílio poderia ser instalado sem maiores problemas agora. As baixas entre os opositores à reforma haviam sido enormes, com a prisão e o desmascaramento de diversos possíveis participantes. A grande reforma estava previamente triunfante.
Então o papa ordenou que fosse liberada a fumaça branca: Habemus papam! O povo, há horas à espera na praça São Pedro, prorrompeu em aplausos e gritarias. E ficaram todos a esperar, ansiosos, a aparição do novo papa. Quando este apareceu, no local tradicional, foi um espanto geral: era o próprio Inocêncio XI! E a surpresa foi ainda maior, porque esse papa, liberal ao extremo, ao invés de manter a trama vil em segredo, como faria qualquer um dos seus antecessores, contou tudo, com detalhes, ante os microfones e câmeras, para todo o povo na praça e para milhões de pessoas no mundo inteiro.
   Quando a onda de choque arrefeceu um pouco na praça, o papa passou a falar com entusiasmo a favor de suas reformas. Muitos ficaram chocados, mas a imensa maioria aplaudiu com entusiasmo. Lá embaixo na praça, padre Bernini sorriu extasiado dentro da batina preta, virou-se para a moça que estava colada ao seu lado há mais de duas horas e deu-lhe um longo e cinematográfico beijo na boca. Muitas pessoas, horrorizadas, se benzeram e se afastaram, abrindo uma verdadeira clareira ao redor do casal, deixando-os totalmente expostos em seu abraço apaixonado Então a imensa maioria prorrompeu num aplauso sem fim. Ah, o Amor! Novos tempos. Lá em cima, da sacada, um papa extraordinário abençoou o casal, com lágrimas nos olhos e um sorriso iluminado de contentamento: Sim, agora sua Igreja iria renascer!...


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