terça-feira, 25 de março de 2014

O BONDE   (Parte 2 de 3)
MILTON  MACIEL

Fim da 1a. parte

No centro de tudo e de todos, dos olhares, desejos e comentários, Cecília, por sua beleza e por sua intuição, fizera-se uma solitária. Mas, acostumada a isso desde criança, ela até apreciava essa solidão. O velho dito “antes só do que mal acompanhada” era um dos seus constantes refúgios da alma. O outro refúgio era a leitura. Ela era uma leitora voraz, veloz, quase compulsiva. Lia no mínimo dois livros por semana.

2a.parte:
Aprendera cedo a se tornar uma “traça de biblioteca”, como se autointitulava. Frequentava todas as bibliotecas públicas que podia acessar. Lia também nas livrarias, um pedaço de livro por dia, até acabar com o texto inteiro. Para conseguir que lhe permitissem isso, comprava de vez em quanto um livro muito barato ou em promoção. Os funcionários e funcionárias das livrarias acabaram se acostumando com aquela loira linda, suave, sorridente e silenciosa, que não tinha dinheiro para comprar livros.

Por causa dessa leitura “de favor” nas livrarias, Cecília acabou desenvolvendo uma leitura velocíssima. Tinha que ler, ler rápido o quanto podia, enquanto a livraria não fechava ou enquanto algum funcionário ou dono de livraria não começasse a pressioná-la com olhares atravessados.

Mas a musa, a deusa, a inteligente, a leitora voraz, tinha um segredinho a mais: Sabia LUTAR! Tia Lolô, irmã de sua mãe, quando a menina fez onze anos, colocou-a num curso de defesa pessoal para meninas e mulheres. A tia, experiente e de cabeça muito moderna, conseguiu convencer a irmã e a sobrinha que, face à beleza incomum que a garota possuía, ela poderia ter problemas sérios de tentativa de agressão sexual por parte de homens descontrolados.

Tia Lolô acompanhou a sobrinha ao longo de todo o curso intensivo, de oito semanas de duração, aprendendo todos os exercícios também. Dessa forma, concluída a aprendizagem, ela continuou exigindo da menina uma prática regular entre elas. Como resultado final, não só a mocinha havia aprendido muito bem a se defender e a contra-atacar, como tomou gosto pelos exercícios físicos e passou a frequentar academias de musculação e a praticar corrida, o que fez até entrar para a faculdade.

Essa era a Cecília pela qual os homens se apaixonavam, Adalberto mais do que todos, talvez. Só que o que os homens não sabiam e, muito menos, percebiam, é que, por baixo das pétalas sedosas e perfumadas da deusa Afrodite, havia uma dezena de espinhos da guerreira Palas Atena.

Uma rosa com espinhos. Mas uma rosa!

Os espinhos da deusa Palas Atena tinham deixado agora oito lanhos profundos na cara do Alemão Bauer. E um sem número de dores espalhadas pelo corpo todo do enorme homem. Homem fortíssimo, porque, nem bem um minuto se passara e já ele estava voltando a si e sentando no chão. Foi aí que começou um burburinho danado no meio daquela gente toda, que tinha descido do bonde para ver a briga entre os dois homens. E que viram uma briga entre um homem e uma mulher.

Sim, porque o tal frangote, o tal do Adalberto, não tivera reação alguma, só abria a boca e arregalava os olhos. Como aquele sujeitinho estava longe de ser um cavaleiro andante! A mulher é que brigava por ele e ele nem se mexia para entrar no rolo. Está certo que tudo tinha sido rápido demais. Primeiro a Miss Universo tinha saltado nas costas do grandão. Imediatamente este se voltou e tentou dar-lhe um soco demolidor.

Só que a mulher o fez rodopiar no ar e se estatelar contra o estribo do bonde. O sujeito levantou em seguida e voltou a atacar a menina. Levou a pior de novo, levou foi um sossega-leão na nuca. Aquela loirinha era o capeta em pessoa, sabia lutar como uma leoa. Quem podia imaginar isso, olhando para aquela carinha e aquele corpão violão? O que tinha de bonita e gostosa, tinha de corajosa e ágil, benza Deus!

O burburinho entre o pessoal começou quando uma mulher reclamou em altos brados:

– Esse canalha atacou uma mulher, tentou bater nela duas vezes, com toda a força. Covarde! Em mulher não se bate nem com uma flor!

Sem dúvida, um comentário eivado de erros sérios. Afinal, quem atacou o fortão foi a mulher. E quando ele, ignorando a história de não bater nem com flor, resolveu dar um corretivo na agressora, apanhou e foi humilhado duas vezes.

Mas povo é povo e espírito de manada é coisa braba. Pois a reclamação da mulher pegou corpo, todos começaram a vociferar contra o Alemão e a coisa foi engrossando para o lado dele:

– Covarde! Tentou bater na pobre da moça duas vezes!

– Sim, e se ela não se sacrifica, ele ia matar o coitado do rapaz.

– Monstro. Assassino!

– Covarde! Lincha ele pessoal!

­– Lincha! Lincha!

– Assassino! Assassino! Morte ao assassino!

E foram fechando o círculo. O motorneiro entrou no bonde e voltou com uma enorme chave de roda. No meio deles, o Alemão gemia de dor e tremia de medo, apavorado. Foi quando se ouviu um grito:

– Se afaste todo mundo! Esse banana é MEU! Eu ainda não acabei com ele. Vai apanhar mais, assim que se levantar desse chão, que eu não sou covarde de bater em gente tonta e caída.

Era a loirinha endiabrada! O pessoal abriu a roda contente, louco para ver a continuação do massacre e da humilhação do assassino. A loirinha ficou no centro, perto do homem sentado e chamou o verdadeiro banana – que era o Adalberto, evidentemente. Falou algo ao seu ouvido e ele saiu correndo em busca de algo lá fora.

Então a garota se curvou e falou muito baixo perto do ouvido do Alemão:

– Você não levante daí por nada deste mundo, senão esse pessoal te trucida. Fica quieto aí e finge que está tonto, zonzo, meio goiaba. Finge bem, hein! E não me levante daí nem com reza braba.

O fortão passou a mão pelo rosto, sacudiu a cabeça, parecia grogue, dava a impressão que ia se esparramar no chão de novo. A garota provocava:

– Vamos, levante daí seu maricas! Tá com medo de apanhar de novo?

Mas o Alemão só sacudia a cabeça e olhava para o chão, com cara de bêbado. E a coisa se prolongou assim por mais uns minutos, tempo suficiente para que a polícia, que o Adalberto tinha isso chamar, chegasse.

Então o sargento, muito experiente, ouviu os relatos, os tais de “lincha, lincha”, dissolveu a patota e algemou o Alemão. Todo mundo vibrou e aplaudiu. Aí foi cada qual pro seu lado: o pessoal para o bonde, que foi embora. E o Alemão, Cecília e Adalberto para a delegacia de polícia civil.

Lá o delegado passou uma descompostura em regra no Alemão. Ameaçou colocá-lo numa cela com mais doze homens, para que ele servisse de noivinha deles. Afinal, ele não estava procurando maridooo? O alemão chorou, suplicou, jurou que nunca mais ia fazer a brincadeira do  “Maridooo”. 

E não foi preso. Não houve cristo que convencesse Adalberto e Cecília a prestarem queixa contra ele.

– Seu delegado, fui eu que agredi o homem. Eu que saltei com os dois pés na barriga dele. Aí ele foi legal, me desafiou para uma luta limpa lá fora do bonde. E... bem, aí ela ia quebrar o meu braço...

– Foi quando eu saltei em cima dele. Trata-se de um caso de legítima defesa, doutor. Defesa do amigo, é claro.

O delegado não conseguiu segurar a gargalhada. Legítima defesa! Como era espirituosa aquela gostosura de loiraça!

– Mas ele tentou bater de verdade em você.

– Outro caso de legítima defesa, doutor. Defesa da cara dele, toda unhada. O homem não tem culpa, a gente não vai apresentar queixa e pronto. Além do que, ele já levou uma lição daquelas, apanhou de uma mulher.

 Pois é, que coisa impressionante. Artes marciais?

– Autodefesa feminina, delegado, é um pouco diferente. Mas é coisa que todas as meninas deviam aprender quando são bem novinhas. Se aprendessem, nem 10% dos casos de agressão física ou sexual iam acontecer.

No fim o delegado relaxou a prisão do Alemão. Que, no dia seguinte, com um braço na tipóia e a cara toda cheia de curativos, uma bandagem de gaze na cabeça, foi visto na estação rodoviária pegando um ônibus para o interior. Era humilhação demais para um macho gaúcho! Largou Porto Alegre, largou a faculdade e levou mais de um ano até voltar. O castigo foi de fato arrasador!

E o Adalberto, como fica?
CONCLUI NA PRÓXIMA POSTAGEM

segunda-feira, 24 de março de 2014

O BONDE   

MILTON MACIEL 

Quem é bom de amor e de briga?
Na ensolarada manhã de Porto Alegre, o bonde transitava mansamente pela Avenida Protásio Alves, as rodas de aço arrancando dos trilhos o característico som sibilante de metal contra metal. Feita a curva, entrou na Avenida Osvaldo Aranha e parou, guinchando os freios, bufando ar comprimido. Foi então que um jovem ansioso e feliz entrou bonde adentro, procurando avidamente com os olhos a musa dos seus sonhos.

Lá estava ela, exatamente como combinado! Parecia um sonho: Cecília estava sentada em um dos bancos da parte traseira e, mais incrível ainda, com um lugar disponível ao lado dela. Ah, dia de glória, dia de felicidade, dia abençoado! Era hoje que Abelardo esperava se dar bem.

Meses da paciência, de excitação, de dúvidas, de sofrimento... Aquela deusa de olhos verdes, cobiçada por todos, corpo de deixar até padre enlouquecido, rainha da beleza desde a escola primária... Positivamente, era areia demais para o seu caminhãozinho. Meses suspirando por ela, esticando para ela olhos súplices de lobo em pele de cordeiro, os mesmos olhos com que todos os homens a desnudavam famintos. E ela indiferente, divertida, a todos ignorando com um ar de superioridade mal disfarçada ou, ainda mais comum, com uma atitude que parecia de total indiferença, como se fosse uma distração extrema, uma quase alienação.

Isso fazia Adalberto sofrer ainda mais. Como teria ele alguma chance, se todos a olhavam daquele jeito? Inúmeras vezes havia tentado disfarçar, mostrar-se diferente. Ou melhor, indiferente: ignorá-la, para não sofrer ainda mais. Só que isso resultava sempre impossível. Como não ver, não tremer, não sucumbir à visão celestial que se oferecia a seus olhos?

Intenções vencidas, Adalberto deixava-se ficar a contemplar a deusa, a acompanhá-la após passar por aqueles olhos indiferentes e distantes, por aquele quase sorriso permanente nos lábios perfeitos. Voltava-se então, para se extasiar com a vista traseira. Que bunda, meu Deus! O que era aquilo?! Que abuso de perfeição, de desenho, de delicadeza, o torneado perfeito descendo até os pés. Sim, cheio, sem exageros ou qualquer desproporção, o menear sensual, sem afetação, totalmente natural, absurdamente feminino. Ah, e as coxas, as pernas, brilhando suavemente bronzeadas sob a saia curta! Até mesmo os pés eram de uma beleza toda própria, a perfeição caminhando...

Essa era Cecília, uma inconteste deusa. Uma jovem fêmea consciente de todo o seu poder e seu fascínio. Mas, paradoxalmente para muitos, uma estudante de primeira, uma mente brilhante, célebre pela rapidez de suas respostas desconcertantes. E dona de um inacreditável bom humor. Do alto de seus 20 anos, contemplava o mundo como uma rainha; e os homens, como seus vassalos submissos.

Nesses seis meses de agonia e paixão, Adalberto sofrera todas as agruras e cruéis pontadas do amor não correspondido. A deusa o desconhecia. Como, aliás, desconhecia todos os demais. Algumas vezes, seu padecer chegava ao insuportável. Era quando a via conversando com algum colega mais bonito ou mais famoso por suas muitas conquistas. Ou quando a via de carona com algum rapaz em um automóvel, algo que ele nem podia sonhar ter. Aí seu coração sangrava, o desespero batia fundo, a revolta assomava, a imaginação disparava.

Nesses momentos angustiantes, ele a antevia na cama com algum daqueles apolos, deixando explodir toda a sua sensualidade nos braços de algum atleta sexual inigualável, que a haveria de submeter e subjugar, fazendo-a apaixonar-se irremediavelmente. Com isso, qualquer fiapo de esperança que pudesse ter se esvaía. Quem era ele, afinal, para competir com aqueles garanhões jovens, ora bonitos, ora ricos – quando não as duas coisas ao mesmo tempo?

E isso sem falar em outro tipo de tormento, um agonia mortal, quando a sabia na mira de homens mais maduros, bem sucedidos economicamente em seus negócios ou empregos importantes, alguns deles casados até. Ah, que amargo na boca, quando a imaginava vendida a um rico senhor, amante teúda e manteúda, coberta de jóias e serviçais, a escritura da cobertura lavrada em cartório, as viagens à Europa se repetindo ad nauseam.

Ou então vinha um daqueles malditos, jovem ou maduro, e a convertia em esposa, enchia-lhe o mimoso ventre com aquelas bolas de deformação, os rígidos seios enlouquecedores desabando enormes, lactação após lactação. Não, não, aquilo era crueldade demais. Sua musa tornada mãe, com babás, governantas e fedelhos ranhentos em séquito a segui-la, socialite e dondoca, roupas de grife, freqüentando as colunas sociais e os clubes de madames.

Sim, ruminava ele nas noites mal-dormidas, o destino dela só podia ser esse! Ele mesmo, se tivesse condições, seria o primeiro a lhe propor casamento ou manteudato, atulhando-a de bens e presentes, única maneira de compensar sua falta de atrativos para as mulheres. Ah, pudesse ele, e a cobriria de luxos tantos até que tivesse o direito de tomar posse do loiro tesouro, ainda que o soubesse comprado. Qualquer coisa, qualquer coisa, meu Deus, seria melhor do que perdê-la!

Mas, estranhamente, a visão da musa com o concorrente nunca se repetia. Por algo com que ele não podia atinar, Cecília não se prendia a ninguém, simplesmente nunca tinha namorado fixo. E não tinha, porque, evidentemente, não queria ter. Assim como, mais compreensivelmente, não tinha amigas.

Quando Abelardo a viu dentro do bonde da Cia. Carris Porto-alegrense, Cecília lia um livro. Quase lá no fundo, com a maioria dos assentos ostentando passageiros, era um verdadeiro milagre que sobrasse um lugar ao lado dela. Ele se aproximou com o coração aos pulos, mais inseguro do que nunca.

– Oi – balbuciou com a voz entrecortada, muito menos potente do que desejava – então você veio mesmo.

– Ué – respondeu a moça – eu não disse que vinha? Bom dia!

– Si, sim, claro, desculpe, eu não quis dizer... quer dizer, eu não pensei... eu.. eh... Ah, bom dia!

Pronto, lá estava ele de novo embasbacado, quase gaguejando, prestes a jogar fora a oportunidade mais incrível de sua vida.

– Ora, deixe disso – Cecília o socorria com um sorriso que se irradiava de um semblante muito sereno – Sente aí logo, antes que alguém queira o lugar.

Adalberto jogou-se inteiro no banco, veloz como um raio, deselegante como um polichinelo. Imagine, perder aquele lugar bendito, aquele lugar sagrado. Nunca!

– Calma, menino, assim você se machuca – os lábios mais lindos do mundo agora riam francamente.

– Desculpe, acho que me desequilibrei – mentiu ele – E é mesmo um milagre ter este lugar aqui, bem ao seu lado.

– Milagre nada, seu bobo. Eu é que guardei este lugar para você.

  GUARDOU?!!

Adalberto gritou tão forte que todo mundo se virou para trás para ver o que se passava. Logicamente, ele não sabia mais onde enfiar a cara.

– É, guardei, sim. O que isso pode ter de estranho? Você não disse que queria conversar comigo sobre literatura e nós não marcamos de nos encontrar neste bonde das 10? Então eu guardei seu lugar, ora.

– Guardou para mim... –ele repetiu a frase mecanicamente, mais como uma carícia, uma música suave para os seus ouvidos, que vinha reforçar sua imensa, sua inesperada, sua agradável surpresa. Ela guardou para mim, para mim, me esperou mesmo... Isto é um sonho, um sonho...

– Então? – era a voz suave da deusa, trazendo-o de volta do devaneio.

– Então? Bem, é que... Quer dizer...eu...eu...

– Adalberto!? – a voz suave agora misturava calma com autoridade.

  Sim. É sim? – respondeu o rapaz, certo de que estava fazendo papel de idiota outra vez.

– Adalberto, calma. Você não precisa sair falando, respire, se acalme, a gente tem toda esta viagem e mais o tempo que for preciso fora deste bonde, tá bem – e, olhando para fora pela janela, comentou:

– Olhe lá o Instituto de Educação. Como ele está bem cuidado agora, você não acha?

– Acho – concordou ele mecanicamente, olhando para um prédio sem ver nada, só o seu tumulto interior. Mas agradeceu aquela chance maravilhosa de poder ficar olhando para fora, de disfarçar sua cara de pateta, de se acalmar, com ela dissera. Puxa, precisava parecer menos afoito, menos atrapalhado. E completou, dando-se ares de arguto apreciador:

– Muito melhor agora. Limpo. As cores novas...

– Adalberto, o Instituto de Educação fica do outro lado! Do lado esquerdo. E agora nós já passamos.

Oh, Deus, porque não existem buracos nos bondes, buracos enormes, onde a gente possa sumir por completo, enterrar-se para nunca mais reaparecer, sumir sem deixar vestígios!

– Ah... Puxa, desculpe. Eu nem sei o que lhe dizer agora.

– Menino, o que é que você tem? – o sorriso-luz estava lá de novo.

– Eu... Bem, eu estou nervoso, é isso. – agora a confissão irrompia.

– Ué, mas nervoso por quê? Por minha causa?

– É...

Não havia mais como segurar, melhor deixar tudo fluir, ouvir uma resposta gentil dispensando-o. Acabar de vez com aquela agonia e aceitar o sofrimento que viria depois. Era hora de ser macho e enfrentar a situação.

– Mas por que, insistiu a garota.

– Porque eu fico todo sem jeito com você, porque eu não acreditei quando você aceitou o meu convite para conversarmos no bonde, porque eu vivi uma noite inteira de aflição e porque... porque eu sou um imbecil mesmo. Pronto. É isso. Saiu!...

– Ora, mas o que é isso? Eu deixo você assim?

– Cecília, você sabe muito bem que você deixa qualquer homem assim – e surpreendeu um sorriso maroto no rosto da moça – Qualquer um... Porque não eu? Eu também sou seu fã. Não tenho como evitar isso, embora reconheça que, para você, eu deva ser um dos menos interessantes e mais insossos...

– Ei, devagar! – a voz da deusa soava cada vez mais humana – Não ponha conclusões suas na minha cabeça.

– Você vê, eu sou mesmo inseguro e fico muito, muito mais quando ao assunto é... você. Mas agora que eu tive coragem de começar, me deixe terminar. Vai ser um enorme alívio. E, no fim, você me diz o que quiser. Pode ter certeza que eu estou preparado para aceitar conformado o que vier.

E continuou:

– É claro que você nota que eu sou como os outros. Não, que eu sou mais tonto que os outros. Porque eu sofro calado a sua indiferença e nunca ousei me aproximar de você pra valer. Lógico, pela certeza da rejeição, pela certeza da dor da rejeição, é isso.

Então fechou os olhos, inspirou, pensou um pouco, soltou um longo suspiro e reuniu coragem suficiente para prosseguir:

– Olhe, Cecília, eu sei que você percebeu logo que o meu papo de discutir literatura com você era furadíssimo, era só pretexto. Rezei não sei quantas vezes... é, rezei mesmo, não ria! Rezei de ajoelhar, justo eu que não acredito em nada. Rezei para que você não desconfiasse e acreditasse na minha sinceridade. Que sinceridade! Eu estava mentindo, é lógico. O que eu queria era estar uns instantes com você, poder apenas conversar com você, com naturalidade, poder olhar você assim bem de perto. Era isso, só isso, juro. Nunca imaginei que eu estaria dizendo isto agora. Esta confissão que salta de dentro de mim agora não estava nos meus planos, eu não teria coragem de fazer isso. Mas agora...

– Agora você está tendo essa coragem, não é?

– Sim, estou. E isso vai me acalmando, sabe. Afinal, são tantos meses de muda adoração, de sofrimento calado, de desesperança e, paradoxalmente, de sonhos dourados a seu respeito.

Cecília encarou Adalberto com um olhar enigmático, com se estivesse olhando para dentro de si mesma. Quando se preparava para responder ao rapaz, o bonde parou com estardalhaço e passageiros começaram a descer e a subir.

Adalberto desconcentrou-se por instantes e olhou por um momento para a porta da frente, por onde embarcavam passageiros especiais e... Céus! Não!!! O Alemão! O Alemão Bauer!!!

Sim, quem acabava de entrar no bonde era ninguém mais, ninguém menos que o divertido e temidíssimo Alemão Bauer, seu colega de classe. O Alemão era célebre por suas brincadeiras pesadas e de péssimo gosto. Das quais a mais conhecida era a do “Maridooo!”

  Maridooo!  – gritava o Alemão, quando via um colega ou amigo acompanhado de uma garota. E partia para cima, fazendo voz e jeito de bicha, com trejeitos exageradíssimos, voz de falsete, gritinhos esganiçados, escandaloso como só.

Adalberto tremeu nas bases. Deus, não deixe ele me ver, por favor, ele vai acabar com o meu cartaz com a Cecília, nunca mais que ela... – e afundou no banco, escondendo-se atrás da ampla cabeleira da passageira da frente.

– Céus – exclamou Cecília – o que é que você tem? Ficou branco, parece que viu fantasma.

– Pior. Vi o Alemão Bauer! Só espero que ele não tenha me visto...

Mas era tarde demais. Impiedoso, o sorriso sarcástico crescendo no rosto, que já se transformava em caricatura de mulher, o Alemão se aproximava pelo corredor.

– Maridooo! – gritou o gozador, a voz efeminada mais escandalosa do que nunca – Seu traidor! Seu falso, sua víbora! O que você faz com essa perua do seu lado, hein?

Adalberto só engolia em seco, o corpo todo a tremer, o rosto vermelho de vergonha. Não tinha coragem de olhar para Cecília, só imaginava o olhar de decepção e de asco que ela devia estar lançando sobre ele.

– Então é assim, não é? É assim. Eu feito uma louca, esperando por você na nossa casinha e você aí com essa mocréia, com essa sua mania ridícula de querer enganar que é hétero, sua bicha nojenta! Você fica enganando essas putinhas e eu é que sofro. É, isso, eu que me arrebente, que trabalhe feito uma escrava naquela máquina de costura pra sustentar os seus luxos, seu monstro. Olhem só, gente, essa camisa novinha, quem foi que fez? Euzinha aqui! E essa calça apertada de bicha que ele está usando? Também foi a Amélia aqui, a Escrava Isaura aqui quem fez.

E fazendo que chorava, olhando para todos, enquanto o bonde não fechava a porta e voltava andar:

– Vocês estão vendo, gente? Vocês são testemunhas da crueldade desse homem. Ele diz que me adora, que não vive sem mim e a besta aqui acredita. Mas olhem só o que ele está fazendo, me enganando e enganando aquela putinha loira ali. Isso é bicha, minha filha! Tricha. Milicha. Seu traidor, covarde!

Foi a gota d’água. Adalberto viu que estava perdido. Aquele desgraçado tinha acabado com qualquer chance de ele ser, ao menos, amigo de Cecília. Estava perdido. Acabado. Aquele maldito, com aquela brincadeira imbecil... E, quando o ouviu chamar a moça outra vez de putinha, Adalberto deu um urro e pulou do banco, arremessando-se com toda a força, com os dois pés, na barriga do Alemão.

O alemão rolou pelo chão e caiu fora do bonde. Levantou, limpou a roupa e falou, agora com uma voz sinistra, que não tinha nada mais a ver com a da bicha escandalosa de segundos atrás:

– Ah, então você quer dar uma de machinho, é, seu merda? Pra cima de mim é que não. Não sabe brincar, é, seu idiota? Pois então eu vou te ensinar. Desce aqui, se você é homem, desce desse bonde e vem apanhar como um homem. Se não descer, é porque é mesmo a bichinha que parece.

Adalberto só agora se dava conta de sua situação. Explodira com raiva e atacara um sujeito que era um verdadeiro armário, duas vezes mais forte e um palmo mais alto que ele. E famoso por ser bom de briga. Aliás, era por causa disso mesmo que ele fazia suas brincadeiras absurdas, porque sabia que ninguém ia ter coragem de brigar com ele de verdade. Mas agora aquele franguinho de merda...

Adalberto não tinha saída, tinha que descer e brigar. Ou seja, descer e apanhar. Preparou-se para descer, andou até a porta. Mas foi retido por um par de mãos que o seguraram pelos ombros. Era Cecília:

– Não desça, Adalberto! Eu sei que você não é nada disso. E, se fosse, eu não ia deixar de aceitar você como amigo. Não desça. Você não tem que provar nada para ninguém. E muito menos para mim. Não vá, não aceite a provocação. Não precisa brigar.

Adalberto voltou-se e encarou os dois olhos verdes que o fitavam com preocupação e receio. Por uma fração de segundo, perdeu-se naquele olhar. Ela se preocupa comigo. Que maravilha! Obrigado alemão maldito!

E tratou de justificar tudo o que aprendera, desde criancinha, sobre ser um macho gaúcho. Saltou incontinenti do bonde e parou em frente ao Alemão Bauer. Junto com ele desceram os passageiros, o cobrador e o motorneiro. O bonde ficou abandonado nos trilhos, ninguém queria perder uma boa briga. Se bem, que o frangote...

O frangote já começou apanhando. O enorme alemão deu-lhe um tapão no peito e outro na cara. O rapaz se desequilibrou a caiu. Aí o enorme opositor puxou-o do chão e prendeu um dos braços dele para trás, com uma chave de braço. A dor que Adalberto passou a sentir era insuportável. Aí o alemão falou, voz grossa e cavernosa:

– Vai usar tipóia pra aprender a respeitar um homem de verdade, seu garnisé. Eu vou quebrar esse seu braço pra você nunca mais esquecer da besteira que fez me atacando, seu imbecil. E vou assinar o seu gesso, palhaço.

E começou a forçar ainda mais o braço, para quebrá-lo na articulação efetivamente. Mas, nesse momento, alguém que não tinha descido do bonde, que estava no estribo superior, deu um grito e saltou nas costas dele. Todos se voltaram a tempo de ver aquela impressionante massa de cabelos loiros esvoaçantes se abaterem sobre a cabeça do alemão. Oito unhas afiadas acabavam de abrir oito lanhos profundos na cara dele. Os lanhos vertiam sangue vivo.

Quando alemão viu que sangrava ficou possesso. E avançou em direção à garota loira, que já tinha descido das costas dele e o encarava parada próximo ao bonde, com uma posição esquisita, meio arqueada, e com um olhar de inacreditável tranquilidade. Alemão Bauer preparou seu soco, que era um verdadeiro coice de mula, e desceu o braço raivoso, em direção á cabeça da mulher.

Mas, no segundo seguinte, tudo o que aconteceu foi que o seu enorme corpanzil se estatelou de encontro ao estribo do bonde. A moça tinha apanhado o braço dele no ar, interposto seu corpo de sereia na trajetória e o tinha feito subir e girar no ar.

“Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco afinal” – Alemão Bauer estava encolhido de encontro ao estribo, gemendo de dor nas costas, na barriga, nos braços e na cara. Ah, sim na cara toda lanhada! Quando se apercebeu do ridículo de sua situação, que uma mulher tinha feito aquilo com ele, ficou ainda mais endoidecido. Todo mundo estava debochando dele e ele era um brigador respeitado. Ah, não aquela desgraçada ia ver o que era bom.

Apesar da dor, levantou de um salto só e avançou para a mulher, que estava no centro da roda formada pelas dezenas de pessoas que tinham se disposto para desfrutar da briga entre os dois homens. O Alemão percebeu que a loira estava de novo naquela atitude esquisita, meio encurvada, os braços meio levantados. Calculou e mandou-lhe o maior murro na barriga.

De novo, com uma velocidade difícil de imaginar numa pessoa, a menina se desviou para o lado, colocou a perna direita em frente ao corpo do homem enorme que avançava com enorme impulso, viu seu coice de mula se desmanchar no ar e, antes que o alemão caísse totalmente, vibrou-lhe um tremendo golpe de cutelo atrás do pescoço. O homem caiu desacordado.

Ah, essa Cecília loirinha!

Colegas de faculdade ela as tinha aos montes. Mas só colegas, amigas, não. Como poderiam as outras conviver com tanta beleza, tanta força de atração e tanta... nobreza (sim, nobreza, por que não admitir a realidade do porte de rainha?) e não morrerem de inveja? As que tinham namorado ou interesse em algum rapaz a viam, naturalmente, como a mais terrível concorrente, a certeira mulher fatal, ávida e pronta a roubar-lhes o homem, com um mínimo olhar ou gesto de provocação.

Falavam mal dela tudo o que podiam. O que concluíam, o que imaginavam e, principalmente, o que inventavam. Uma putinha, com certeza. Não ficava com nenhum, porque queria ficar com todos. Uma pistoleira, na certa se virava na noite pra faturar uma grana preta. Garota de programa, estava na cara, daquelas que se anunciavam: “Jovem universitária, completa, atende casais.” Que nada, afirmava outra: sapatão, minha filha, lésbica das boas, olha o jeitão, só não vê quem é cego; essa nunca me enganou, pensa que eu não vejo os olhos que ele põe em mim?



Algumas, feias, chegavam a se aproximar, mas a motivação era sempre a mesma: ciscar nos restos, ver se sobrava algum cara desiludido ou despeitado pra elas, entre aqueles que enxameavam atraídos pela Bela. Desprezados, poderiam se consolar com as companheiras menos dotadas, quem sabe. De vez em quando uma colega bonita também se aproximava. Mas era sempre a mesma coisa: vigiar o inimigo de perto, conhecer-lhe os passos e as intenções, tentar descobrir seus segredos possivelmente escabrosos. E atirar verdes, descobrir algo e, depois, romper com a libertina, descarregar na cara dela todo o vocabulário de raiva e inveja, lavando a alma, tendo o que contar para as outras, destilar e compartilhar veneno, sentirem-se todas regiamente vingadas.

Mas acontece que – e isso ninguém sabia – Cecília tinha um dom que, embora bastante comum nas mulheres, era muito mais exacerbado nela: a intuição. Desde pequena aprendera a confiar naquela certeza, naquela voz interior que lhe dizia quem era a pessoa que se aproximava dela, que intenção trazia e no que resultaria a aproximação. Por essa razão, não dava muito estímulo ao desenvolvimento das falsas amizades. E, exatamente por esse motivo, permanecia indiferente aos homens, ainda que aceitando uma eventual companhia de um, uma carona de outro, um gentileza sincera de alguém, algo muito raro. Mas ninguém sabia disso, desse seu raro dom. Daí todos os tipos de conjecturas, de conclusões erradas, de maledicências escancaradas.

A estas Cecília se acostumara também desde cedo. Com o tempo, acabou desenvolvendo uma certa imunidade. Já que era inevitável que pensassem e falassem mal dela, precisou construir uma espécie de blindagem que a defendesse. Primeiro tentou se refugiar na religião, mas acabou decepcionada com o sectarismo e a estreiteza mental de todas elas. E também com as investidas de um padre e de dois pastores, ora veladas nos olhos cobiçosos e nas palavras melosas, ora escancaradas, descaradas e até agressivas.

Acabou se conformando, acreditando que aquele era um dos preços a pagar por sua beleza incomum. Ou, em outros momentos, acreditando que as pessoas eram mesmo todas assim, uma conclusão ainda mais amarga.

De qualquer forma, tudo isso serviu para que ela conseguisse construir suas defesas. Tanto quanto se tornara imune aos olhares e gracejos, mesmo aos mais pesados, aprendera a não se deixar afetar nem pelas falsas amizades, nem pelos falatórios a seu respeito. Afinal, estes eram tantos, tão disparatados, tão maldosos que, se não soubesse se desvencilhar deles psicologicamente, teria que passar por decepções e sofrimentos todos os dias, sem exceção.

Colega participativa, inteligente, bem informada, leal, sempre pronta a colaborar nos trabalhos de grupo e a ajudar colegas em dificuldades nos estudos, seu envolvimento pessoal a isso se limitava. Ninguém conseguira penetrar na sua intimidade, nenhuma pessoa fora jamais aceita em sua casa, por mais que se insinuasse ou se oferecesse como convidada. Vinham sempre aquelas célebres tiradas-relâmpago, frases instantâneas irrespondíveis, desconcertantes e descon-versantes.

No centro de tudo e de todos, dos olhares, desejos e comentários, Cecília, por sua beleza e por sua intuição, fizera-se uma solitária. Mas, acostumada a isso desde criança, ela até apreciava essa solidão. O velho dito “antes só do que mal acompanhada” era um dos seus constantes refúgios da alma. O outro refúgio era a leitura. Ela era uma leitora voraz, veloz, quase compulsiva. Lia no mínimo dois livros por semana.

CONTINUA...

domingo, 23 de março de 2014

HOUVE UM DIA EM QUE CHEGUEI FELIZ
MILTON MACIEL

Houve um dia em que cheguei feliz,
Pois, até então, não te havia conhecido.
E houve uma noite em que me dei e o fiz
Acreditando no que havias prometido.

E no entretanto tua atitude contradiz
Toda promessa em que eu tenha acreditado.
E há esta tarde, na qual parto eu, infeliz,
Pois impossível é a alegria, se a teu lado.

Ficar contigo é estar sempre deprimido.
Será arrastar-me eternamente desvalido,
Pois tua frieza fez-me eterno derrotado.

E, antes que essa depressão vire meu fado,
Eis que me afasto, desta vida descontente,
E deixo a ti a minha ausência de presente.

sexta-feira, 21 de março de 2014

POEMA DE OUTONO   
MILTON MACIEL  

Tomba a folha mansamente, em seu último suspiro,
Rutilante em tons de rubro, de um brilho adamantino.
Despede-se da luz, do bosque ‘inda verde, do retiro
Em que viveu sua vida e onde cumpriu o seu destino.

Vezes sem conta tragou sol, regurgitando oxigênio,
Como fazem sempre as folhas, milênio após milênio.
Generosa supriu flores, frutos, ramos, troncos, galhos,
Até fazer de sua árvore o mais frondoso dos carvalhos.
Mas então o inevitável: eis que seu ciclo terminou
E a folha, agora velha, foi perdendo a serventia.
Foi-se o verde, escureceu, perdeu seiva, ressecou
E então, se desprendendo, alcançou o último dia.

Suave flutuou ao vento, tão tranquila a trajetória,
E chegou serena ao chão, encerrando sua história.
Estendeu-se feliz: era o final, missão cumprida;
Olhou pro céu, sorriu... e despediu-se desta vida.


quinta-feira, 20 de março de 2014

OS REFLEXOS DO PEIXE BRILHANTE - Pirabeiraba Blues
MILTON MACIEL
(Do thriller de mistério baseado em Pirabeiraba, bairro de Joinville, SC - cujo nome indígena significa PEIXE BRILHANTE)

3) E então tudo mudou!

Às nove da manhã, quando saiu para ir à quitanda, a viúva e professora aposentada Dahlia Riechelmann viu que o portão do vizinho  estava arreganhado e a Blazer, lá dentro, mas fora da garagem, estava com a porta aberta.

Demorou-se mais na rua, foi também à farmácia e acabou passando na Zenilde, para apanhar umas costuras prontas. Conversaram um longo tempo, de forma que, quando a professora chegou de volta em casa, já passava de onze horas. Ia entrar para fazer o almoço, mas sua atenção foi chamada por algo realmente insólito:

O grande portão continuava arreganhado e a Blazer continuava no mesmo lugar, de porta aberta. Só aí, atravessando a rua até a calçada em frente e enfiando a cabeça pelo portão aberto, Dahlia Riechelmann percebeu que o motor da Blazer estava ligado. Sim, ela lembrou então, aquele mesmo ruído ela tinha ouvido às nove horas, só que não tinha dado importância ao fato, porque achou que era óbvio que o vizinho já ia sair e devia estar esquentando o motor do carro antes disso.

Mas agora a coisa estava muito esquisita! O portão escancarado como nunca ficava. A Blazer de porta aberta e o motor ligado por mais de duas horas! Não, agora aquilo não era normal. Algo havia acontecido com o homem de barba preta!

A professora atravessou resoluta o portão de entrada e caminhou até à Blazer. De fato o motor estava funcionando e estava muito quente ao redor dele. Ela decidiu que era seu dever entrar na casa e verificar se algo diferente tinha acontecido. Por que também a porta da casa estava completamente aberta.

– Olá! Com licença. Vizinho! Vizinho!

Como não teve resposta, entrou. A grande sala estava vazia. A cozinha também. Decidiu verificar a peça que teria sido convertida em biblioteca. E o vizinho estava lá!

Estava caído no chão, deitado de lado, voltado para a direita, mas de olhos abertos. Meu Deus, teve um enfarte! Ou um derrame! – pensou.

Aproximava-se para tentar reanimá-lo, quando notou a mancha de sangue sobre o tapete. Por baixo e ao redor da cabeça. Abaixou-se e percebeu que uma parte do crânio, um pouco acima da nuca e do lado esquerdo, tinha um afundamento discreto. Dali provinha o sangue, que vazara em quantidade limitada e já não mais escorria.

O coração da professora disparou! Percebeu que havia uma coisa com forma de martelo ao lado, tocando na mancha do tapete. Era uma marreta pequena, com um dos lados revestidos por borracha. Ali, naquele lado, havia sangue abundante. Céus, o homem foi golpeado com isso na cabeça. Foi atacado. E, ao que tudo indica, pelos olhos abertos... está morto!

Lembrou-se então que não podia tocar em nada, pois deixaria suas impressões digitais. E que não poderia alterar em nada a possível cena de um crime. Sua obrigaçào era correr e telefonar para a polícia. Aliás, era só pegar seu celular na bolsa. Sabia o número de cor.

Mas foi nessa hora que tudo mudou para Dahlia Riechelmann. Mudou dentro dela!

Foi quando ela lembrou seu fascínio pelas histórias de mistério e suspense, pelos thrillers policiais, seu encanto pelos livros de Agatha Christie, de Conan Doyle, de John Le Carré e de tantos outros autores que lia apaixonadamente desde muito menina.

Lembrou de sua adolescência, quando sonhava ser ela mesma uma famosa detetive particular. A vida respondera a esse sonho permitindo-lhe ser professora primária. E esposa de um argentino ruidoso e mulherengo.

Grandes investigações, descobertas científicas escondidas em ínfimos detalhes que só a mente arguta da grande detetive Dahlia Riechelmann podia perceber, ficaram relegadas aos devaneios e rebatidas para os fantásticos detetives dos livros e dos filmes. Ultimamente acompanhava a série CSI na televisão, mas ficava enojada com os shows baratos dos legistas e com as cenas por demais cruentas de violência. Faltava classe àquele tipo de investigadores modernos, concluía.

Mas agora ali estava a sua oportunidade. Se confirmasse a morte do homem, teria um cadáver só seu, um crime todo seu para investigar. Quem sabe não estava ali a oportunidade única de a grande detetive Dahlia Riechelmann sair das brumas dos sonhos e da imaginação?

Lembrou-se do espelhinho. Abriu sua bolsa, retirou-o e levou-o às narinas do homem de barba, de olhos muito abertos, contemplando o rodapé da parede em frente. Como imaginava, nenhum vapor condensou-se no espelho. Não precisava tomar o pulso ou ouvir o coração. O tórax não mostrava qualquer movimento respiratório. O homem estava MORTO mesmo!

Talvez estivesse morto há mais de duas horas, isso era perfeitamente possível. Então tomou a decisão final: Sim, aquele cadáver era seu! Ela o descobrira, ela se dava direito de investigar tudo na cena do crime. A polícia que esperasse. Se isso favorecia o ou os assassinos, não lhe importava. Não entrava na investigação para fazer justiça, entrava para descobrir quem era o criminoso, não para pegá-lo. Injustiça cometeria ela consigo mesma se, recebendo da vida – ou seria da morte? – essa chance única, fosse ligar logo, histericamente, para a polícia.

Só então pensou que qualquer das mulheres que conhecia, se se deparasse com um corpo sangrando, evidentemente morto, teria prorrompido no maior berreiro e saído a gritar por ajuda histericamente mesmo. Ela, não. Reagira com uma frieza que até a ela havia surpreendido. O fato de não ter o menor medo de mortos talvez ajudasse a explicar o fato. Estava acostumada a ver mortos desde pequena. Eram gente como ela, gente comum, nunca apareceram como espectros ou zumbis, como nos filmes. Com o tempo perdeu qualquer receio desses encontros fortuitos e involuntários. Perdeu todo medo de mortos, acostumou-se com eles, podia dizer. Depois que havia crescido, esse fenômeno escasseou até desaparecer, o que a deixou satisfeita. Mas, para ela, um morto era um sujeito como outro qualquer, não lhe impunha o menor medo, nem mesmo respeito.

Tal era o caso daquele homem encolhido de lado naquele tapete. Aquilo era só o corpo que tinha sido dele. Ele mesmo andaria por outros lados, sabe-se lá onde. E se aquilo era só o corpo, então aquele corpo a partir daquele instante, pertencia a ela.

Retirou o celular do bolso, um Samsung Galaxy, não para chamar a polícia, mas para fazer fotografias. Alegrou-se que as câmeras fossem agora tão acessíveis, que tivessem uma capacidade quase ilimitada de fotografar, porque não usavam mais filmes de rolo; que permitissem ver imediatamente como tinha ficado a fotografia. E que permitissem transferir tudo quase instantaneamente para o computador.

E, detetive particular autoconstituída, Dahlia Riechelmann saiu então fotografando tudo o que achasse relevante na cena do crime. Era quase meio-dia e a luminosidade na sala era exuberante. As fotos, com resolução de oito 

CONTINUA....

terça-feira, 18 de março de 2014

DOCE DIVÓRCIO    
MILTON  MACIEL 

Ah, as pernas enfiadas até quase os joelhos dentro da água bem fria, que se escoava em suave corredeira: Delícia! Sim aquele era o SEU rio, o seu querido riacho de infância. Incontáveis vezes viera brincar ali com os meninos ou sozinho, naquele exato lugar, logo depois da curva grande.

Agora, ante o tumulto infernal que assolava sua cabeça, de repente lhe veio à memória o SEU rio. Largou tudo o que estava fazendo, dirigiu até o lugar certo. Aí tirou os sapatos e as meias, desceu descalço para a beira do riacho, arregaçou e dobrou as pernas das calças e ali estava ele!

Se bem que o que precisava é que aquela água quase gelada corresse ao redor da sua cabeça quente, não de seus pés frios. Estava há semanas naquele terrível dilema, cansara de considerar todos os prós e contras e não conseguia chegar a uma definição.

Continuar com Wanda? Seria respeitar o compromisso de um casamento de 22 anos, preservar a estabilidade doméstica para os dois filhos já moços, manter intacto o patrimônio. Mas seria também continuar suportando uma relação que já estava morta há anos, nenhum dos dois sentia qualquer atração pelo outro, toleravam-se civilizadamente, tanto que, há tempos, já nem brigavam mais.

Do outro lado estava Veruska. Quente, sensual, fogosa, linda, esguia, meiga, culta. E doze anos mais moça que Wanda. Esperando e pressionando pela definição. O caso deles já tinha dois anos e continuava de vento em popa. Sim, tinha que admitir, estava profundamente envolvido com Veruska. Ou seja, amava-a.

Mas não queria dar aquele desgosto a Wanda. Não queria que ela se visse trocada por uma mulher muito mais bonita e mais jovem. Wanda não merecia aquilo. Não ficaria abalada pela perda de um homem a quem claramente não amava mais. Mas havia o problema da vergonha social, era isso o que, ele tinha certeza, faria Wanda sofrer muito. E por causa desse sofrimento dela, vinha adiando uma decisão há meses.

Mas esta era a semana decisiva: Ou ela ou eu! Veruska lhe apresentara o ultimato na segunda-feira. Ele tinha mais um dia somente para optar. Conhecia Veruska o bastante, agora, para saber que não haveria uma segunda chance, por mais que ela viesse a sofrer. Acreditava que ela realmente o amasse, mas é evidente que estava cansada daquilo tudo. Ou ele sabia o que queria, ou não sabia e, nesse caso...

A água corria gélida entre suas pernas, a cabeça parecia que ia explodir. Abaixou-se colheu água entre as mãos, jogou-a sobre os cabelos, sentiu o frio reconfortante descer pelo seu rosto e pelo pescoço. E então decidiu!

Tirou do bolso da camisa o celular e ali mesmo, de pé dentro do seu riacho, ligou para o celular de Wanda. Foi lacônico:

– Olha, não dá mais. Vai ser melhor pra nós dois. O Dr. Carlos de Olivença vai me representar, o escritório dele vai te procurar. Estou pedindo o divórcio. Hoje já vou para um hotel. Acabou, Wanda, me perdoe.

Do outro lado, a voz de Wanda foi surpreendentemente tranqüila:

– É, a coisa vai mal, mesmo. Mas... Você tem certeza? Porque não vai existir uma segunda chance.

– Tenho, sim. Pensei muito. Pode ter certeza que eu não vou prejudicar você na partilha. Você sabe que o Carlos, além de meu advogado, é o meu melhor amigo. Vou dar instruções para ele cuidar bem de você, dos seus interesses.

– Bem, se você quer e tem certeza, então tá.

Calaram-se os celulares. O marido, dentro do seu riacho, sentiu uma imensa alegria. Tinha sido mais fácil do que imaginara, Wanda não iria sofrer tanto assim. Não resistiu e jogou-se por inteiro, de paletó e gravata, dentro do rio. Os documentos, o celular? Depois se dava um jeito. Hoje ele era apenas um menino feliz!

Pouco depois, do celular de Wanda partiu mais uma chamada:

– Olivença, Medeiros & Borba, Advogados Associados, boa tarde.

– O Dr. Carlos, por favor.

Instantes depois:

– Dr. Carlos de Olivença, às suas ordens.

– Amor! Deu certo, meu amor! ELE falou que vai pedir o divórcio. ELE! E vai pedir para VOCÊ cuidar de tudo. Que maravilha, resolve todos os nossos problemas, não é?

– Puxa, melhor impossível, querida! Vou tirar até as cuecas dele pra você. Aliás, nesse caso, pra nós. Pois hoje mesmo eu saio de casa também! Pobre da Manuela, vai levar um susto. Mas... é a vida. Se alguém vai sofrer, antes ela do que eu. E já faz dois anos que você e eu estamos nesta lengalenga, não é, meu anjo?

É, esse tal de Dr. Carlos confirma mesmo a velha frase: “Amigo é pra essas coisas!”