sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES – 16ª parte: O Perverso Walmaric (antepenúltimo capítulo)
MILTON MACIEL 

Fim da 15ª parte:
Alline não disse nada. Abaixou a cabeça, colocou as duas mãos na testa, encobrindo os olhos e deixou-se ficar assim por um minuto. Quando retirou as mãos e ergueu a cabeça, os dois romanos viram que a face da gaulesa estava banhada em lágrimas. Mais uma vez ela os surpreendia. Tendo a oportunidade de ganhar terras e uma grande quantia em ouro, ela abria mão de tudo isso por outra pessoa. As lágrimas de Alline eram de comoção e eram de gratidão. Agora ela é que estava grata pela demonstração de amizade – por que era isso mesmo o que estava evidente ali – por parte do General Jovinus e do centurião Marcellus.

Parte 16ª - O Perverso Walmaric (antepenúltimo capítulo)

– Meus caros amigos! Caros amigos! Vocês me comovem com sua solidariedade. Não fazem ideia de como é importante para mim ouvir isso que disseram.

– Alline de Troyes, não pode existir, em todo este acampamento, um só oficial ou soldado que não lhe deva reconhecimento, gratidão e que não seja um grande admirador da sua coragem e dos seus feitos. Você salvou milhares de romanos e Roma terá que mostrar sua gratidão. Toda a nossa tropa, como se fosse um só homem, irá exigir isso do imperador. E ele, para atender aquilo que você coloca para nós como a recompensa única que pede o seu coração, ele terá que dar um jeito naquele seu filho rancoroso.

– General, se isso acontecer, se meu Lucius Dracus for reconduzido à posição de que jamais poderia ter sido removido, eu é que serei eternamente grata aos senhores e a Roma. E deixe que eu lhe diga o quanto aprendi a apreciar sua pessoa, assim como a do centurião Marcellus, antes que eu tenha que ir embora.

– Ir embora? Não me diga que pretende nos deixar em breve, Alline. Quando pensa partir?

–  Hoje mesmo, centurião. Dentro de poucas horas.

– E vai para onde? Vamos sentir demais a sua falta.

– Vou atrás de meus dois homens, general – meu amado e meu mestre. Vou para o sul, pela via Agrippa, para depois me embrenhar naquela floresta, na região onde espero encontrar o grupo de bandidos do cruel Walmaric, que mantém o abade e o druida prisioneiros.

– Ou seja, você vai fazer de novo o caminho pelo qual nos levou quando nos fez sair daqui desta floresta e rumar para o sul, à espera dos alamanos que vinham de Troyes, na noite em que a conhecemos.

– Isso mesmo, centurião. E vou ultrapassar o ponto onde se travou a batalha. Acredito que os alamanos de Walmaric estejam atacando e pilhando muito mais ao sul.

– Mas o que você espera poder fazer? Você, mais os dois prisioneiras, apenas três contra mais de quatrocentos invasores.

– Não, general, invasores eram os outros que nós derrotamos. Estes são apenas um bando de salteadores, de saqueadores, que agem por conta própria. Os alamanos que nós temos prisioneiros aqui me contaram que eles, como invasores, pretendiam conquistar territórios, para trazer sua gente. Pilhavam para terem recursos para comer e se manter. Mas os homens de Walmaric são vistos como proscritos por seu próprio povo. Ele, afirmou-me um oficial alamano que está em convalescença na tenda dos feridos, com quem conversei longamente, era um bandido na terra deles e foi aceito na expedição justamente porque tinha esse grande número de homens armados. Mas, tão logo chegaram à Gália, eles se separaram do exército e voltaram a agir por conta própria. São ladrões, assassinos e seqüestradores, nada mais do que isso. Por isso mesmo é que meu abade e meu druida decidiram ficar com eles, pois têm um plano, que não sei qual seja, de dar um jeito nesse bando.

– General, por favor, me escute: Alline, Lucius e Kelvin são somente três contra quatrocentos. Mas é óbvio que nós podemos – e devemos – dar um jeito de equilibrar essa desigualdade, o senhor não acha?

– Maravilhosa ideia, Caius Marcellus. Sim, não é nada mais do que nossa obrigação para com Alline de Troyes.  Além do que, é nossa obrigação para com o povo da Gália romana, que está sob nossa proteção. E, como se isso tudo ainda fosse pouco, se, depois de termos vencido o exército alamano, deixarmos um bando de salteadores como esse agindo livremente, que vitória completa teremos nós alcançado contra os alamanos?

– Posso então tomar as providências imediatamente, general Jovinus?

– Sem dúvida alguma, meu caro Marcellus. Quantos homens pretende levar?
– General, em condições normais eu levaria 20 manípulos de 60 triarii, uns 1200 homens. Mas, conhecendo como conheço esta moça aqui, que vai combater ao nosso lado, acho que a metade disso já é suficiente. Ela vale sozinha pela outra metade. Levarei uma coorte com apenas 600 homens muito experientes, 600 triarii.

– Magnífico, Marcellus, acho que você tem razão, esses bandos de saqueadores não têm a mínima organização militar, são covardes que só caem sobre os civis desarmados. Quando se defrontarem com seus legionários, tudo o que vão querer é fugir em debandada. E você, minha filha, fica contente com nossa companhia?

– Feliz e honrada, general. Será uma grande satisfação cavalgar outra vez com a legião romana. Há pouco eu só pensava em galopar como louca até encontrar os bandidos de Walmaric e ia fazê-lo completamente só. E só eu ia lutar por meus homens. Agora tudo mudou. Com uma coorte de legionários romanos, as horas desses criminosos estão mais do que contadas.

– Pois então com licença, preciso ir providenciar muitas coisas.

– Tem toda a licença, meu caro tribuno.

– Tribuno ?! O senhor me chamou de tribuno, general?

– Sem dúvida, Caius Marcellus, depois de comandar uma coorte e retornar vitorioso, pode ter certeza que este será o seu novo posto na legião. Vou providenciar a sua imediata promoção, assim que você chegar aqui.

– Senhor, não sei como lhe agradecer. É muita bondade sua.

– Não, Marcellus, digamos que é muita competência sua. E, se você tiver que agradecer a alguém, já sabe, para variar, a quem: a essa moça valente, que vai conduzi-lo diretamente para a glória na floresta de Troyes.

Caius Marcellus saudou Alline e o general Jovinus e retirou-se apressado, com o coração aos saltos. Bendita gaulesa, ia levá-lo à consagração da vitória, vitória fácil contra um bando de salteadores! Sempre tudo o que havia de bom era devido a ela. Não tivesse Roma tal dívida de gratidão a saldar com ela, não poderia ele comandar uma coorte com o fim de aniquilar os saqueadores e resgatar o grande general romano Lucius Dracus.

Cerca de quatro horas depois, tudo organizado, a coorte partiu para o sul. A tarde caía e a marcha levaria dois dias, pela via Agrippa primeiro, e pelas bordas da floresta depois, à medida que se aproximassem de Troyes.

Walmaric enriquece

Enquanto a coorte avançava, o bando de saqueadores alamanos de Walmaric continuava atacando, matando, pilhando e incendiando. A esta altura eles já tinham tanto material pilhado que precisaram roubar diversas carroças com cavalos, para carregarem o farto botim. Isso, evidentemente, lhes reduzia a velocidade de avanço. Estavam todos muito felizes com os resultados de suas investidas contra os gauleses, haviam saqueado três vilas maiores, dezenas de propriedades rurais e uma abadia pobre que, se não rendera quase nada em objetos valiosos, rendera algo muito mais importante: dois religiosos cujo resgate  valia muito ouro.

Na caída da noite o bando acampou novamente. Depois de serem mais uma vez acorrentados pelo tornozelo, em uma tenda especial, os dois religiosos conversavam:

– Lucius, eu tive, há poucos instantes, a visão mais importante pela qual esperava: Alline foi plenamente vitoriosa em sua missão. Ela salvou e liderou os romanos que, por sua vez, venceram definitivamente o exército alamano invasor.

– Que maravilhosa notícia, meu amigo! Porque isso quer dizer, acima de tudo, que minha amada menina está viva e triunfante.

– Sim, Lucius. E, pelo que vi, ela brilha entre os romanos como Alline de Troyes. O senhor Gilles ficou reduzido a uma trouxa de roupas guardada na sela de um cavalo em pleno galope.

– Um cavalo?

– Isso mesmo, abade. Nossa Alline está vindo para nós a todo galope. E traz consigo uma divisão da legião romana.

– Mas isso é extraordinário druida! Facilita totalmente o nosso trabalho aqui.

– Mas coloca nossas vidas em risco pela primeira vez, meu amigo. E isso só pode acontecer em duas hipóteses, veja bem: se Walmaric souber que o exército alamano foi derrotado pela legião romana; ou se ele souber que uma divisão romana está no encalço dele aqui mesmo. Em ambos os casos, meu caro, ele saberá que não terá como cobrar resgate por nossas vidas. Em ambos os casos só lhe restará fugir. E aí, pode ter certeza, a primeira coisa que ele vai fazer será se livrar de nós dois.

– Ah, isso é mesmo preocupante. Nunca me passaria pela cabeça que...

– Mas é muito bom que passe Lucius, porque nós dois temos que nos preparar para o pior. A qualquer momento pode chegar algum remanescente dos alamanos derrotados em Catalaunum. E, no máximo em mais algumas horas, os legionários de Alline estarão caindo em cima do grupo de Walmaric. E, em qualquer dos casos, não teremos quem possa impedir nossa execução.

– Tem razão, amigo druida. Vamos rogar a Deus que não chegue a Walmaric nenhuma notícia da derrota dos alamanos em Catalaunum. Assim teremos um pouco mais de tempo de vida e, quem sabe, um pouquinho mais de esperança.
– Meu caro, a rigor isso não muda nada em termos de risco, apenas de tempo. Portanto, compete a nós dois tomarmos as medidas que pudermos tomar, para defender nossas vidas ameaçadas. Eu tenho algumas ideias que quero discutir com você agora.

Depois de confabularem por mais de duas horas, os dois amigos renderam-se ao sono. De qualquer forma, precisariam estar bem descansados para o dia seguinte. E, afinal, não havia mesmo muito que pudessem fazer por suas vidas. Mas o druida dormiu com um sorriso instalado em seus lábios.

Os romanos chegam
Na noite seguinte, a coorte de Marcellus já estava nas pegadas de Walmaric e os seus. Os gauleses atacados pelos bandidos conduziram os soldados pelas trilhas da floresta de Troyes. Quando esses guias mostraram que já estavam a uma distância suficientemente perigosa para que os alamanos os ouvissem, Alline falou com Marcellus:

– Agora temos que nos deter aqui. Mande seus homens parar, descansar e comer. Daqui em diante avanço eu sozinha. Preciso estar em condições de ajudar os meus homens.

– Mas Alline, isso me parece loucura, é arriscado demais.

– Ora, centurião, viver é arriscado demais. E nem por isso desistimos da vida. Entenda que eu posso me aproximar do acampamento deles, sem ser percebida, sozinha; mas não com uma coorte Romana inteira. Pode ficar tranquilo, quem vai avançar agora é o senhor Gilles de Troyes, um especialista em esconder-se nas árvores. Ninguém pode pegar o senhor Gilles.

– Mas não se esqueça que nós o pegamos no nosso acampamento, na primeira noite.

– Ilusão sua, centurião. Gilles se fez pegar, porque essa era a sua missão. Não esqueça que ele precisava se revelar e convencê-los a sair dali imediatamente.

– É, pelo que vejo, você tem razão. Como sempre, aliás. Mas e eu? Quando saberei que devemos avançar?

– Ora, nada mais simples, Caius Marcellus. Primeiro você vai ter que dispor os seus homens no mais completo cerco ao acampamento dos bandidos. Mantendo a devida distância, é claro. Isso vai levar por volta de duas horas, porque vocês não podem fazer barulho. Quando estiverem em posição, mande tocar as trombetas e comecem o ataque. Os alamanos vão tratar de fugir, qualquer um deles sabe reconhecer o toque da trombeta romana. Correrão apavorados e, para onde quer que se dirijam, encontrarão legionários prontos para recebê-los.

– Brilhante, Aline! Vejo que você aprendeu tudo de táticas da legião com seu general romano. Mas e você? E Lucius e o druida?

– Esqueça de nós, Caius Marcellus. Não haverá nada que possa fazer. Limite-se a vencer sua batalha e aniquilar definitivamente esse odioso inimigo. Nós três teremos nossa própria batalha. Assim que Walmaric perceber que é atacado, ele vai mandar executar imediatamente meus homens. E, nessa hora, eu tenho que estar lá.

– Mas como você pode agir sozinha contra quatrocentos homens?

– Ah, senhor, mas não serão quatrocentos homens! Serão quatrocentos covardes, correndo mortos de medo, para salvar a pele. Se Walmaric em pessoa não comandar um punhado de bandidos na execução, simplesmente não haverá carrascos. Mas eu tenho certeza que esse alamano cruel não vai fugir antes de matar meus homens. Por isso eu tenho que estar lá nesse momento.

– Ainda assim… lutará sozinha contra Walmaric e seu punhado de assassinos.

– Engano seu outra vez, centurião. Não lutarei sozinha. Meus dois homens também lutarão.

– Mas eles são prisioneiros. Estarão manietados, acorrentados!

– Outro engano seu. Eles não são somente prisioneiros. São Kelvin da Bretanha e Lucius Dracus. Eles estarão prontos, pode ter certeza! Eles lutarão. Nós lutaremos.

– Que os deuses os protejam, então, Alline de Troyes. Boa sorte. Vou preparar o cerco agora.

– Boa sorte, centurião. Estou entrando na floresta.

CONTINUA: A luta pela vida (penúltimo capítulo)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES – 15ª parte: O Sacrifício do Abade 
MILTON MACIEL 

Fim da 14ª parte:
A fumaça estava totalmente insuportável. Eu já começa a sufocar seriamente e comecei e me sentir muito tonta. Mesmo assim investi com toda a minha força e com todo o meu peso, arrojando-me com raiva contra a pesadíssima mesa. E ela se mexeu! E, ao mover-se, um ruído diferente veio do chão. Ao mesmo tempo, uma faixa do teto e da lateral superior da sala se abriu: ela era feita de metal e disfarçada com tijoletas finíssimas de pedra lavrada. Acima da minha cabeça, estrelas brilhavam. O ar se fez rapidamente puro e a última madeira que queimava se apagou. Eu estava salva do sufocamento!

15ª parte: O Sacrifício do Abade 
– Quer dizer que a tal pedra mágica, a pedra do mecanismo, não estava na parede, estava no chão!

– Exatamente, centurião. Uma das patas da mesa estava engenhosamente encaixada nela. Quando eu me joguei com raiva sobre a mesa, a pedra foi movida para cima e o mecanismo atuou imediatamente. Na hora eu tive certeza que meu druida sabia, de antemão, que eu chegaria nesse ponto, que eu conseguiria ativar o mecanismo de abertura. Ele sempre teve uma capacidade incomum de ver dentro do futuro. Tudo o que ele e Lucius quiseram foi ganhar tempo, um tempo precioso em que eu ficaria trancada e, portanto, longe do palco dos acontecimentos mais dramáticos, longe dos alamanos que poderiam me desgraçar e matar.

– E foi difícil sair do aposento?

– Muito fácil, general. Tomei distância, corri e saltei, consegui me segurar na borda da abertura lateral, na parede. Então suspendi meu corpo e olhei cuidadosamente para todos os lados. Não vi nada nem ninguém. O silêncio era quase total. Tentei avaliar quanto tempo tinha se passado desde que eu fora trancada naquela sala. Algo entre uma hora e meia e duas horas, concluí. Onde estariam agora os invasores? E as pessoas todas? E meu homem e meu mestre?

A seguir saltei de novo para dentro da peça e apanhei um dos arcos que eu tinha levado para ali. Arremessei-o pela abertura para o lado de fora. Apanhei também as três aljavas cheias de setas e fiz a mesma coisa. Depois voltei a correr, tomar impulso e saltar. Passei outra vez pela abertura. E, desta vez, saltei sobre a grama alta que havia do lado de fora. Apanhei, uma por uma, todas as flechas que tinham se espalhado, enchi as três aljavas, escondi duas delas entre os arbustos. Prendi a terceira às costas, coloquei uma flecha no arco e saí andando com cuidado, sem fazer barulho, em direção à frente do prédio da abadia. Ia preparada para o pior. Na certa eu veria dezenas de cadáveres de servidores e de padres. Estremeci ao imaginar, entre os corpos, meu amor e meu druida. E veria os odiosos invasores. Calculei que tinha quatorze setas na aljava. Antes que me matassem, eu haveria de acabar com quatorze daqueles miseráveis.

Mas, ao chegar à entrada do castelo, não vi ninguém. Fiquei estupefata. Onde estariam todos? Onde estariam os corpos? Foi quando um garoto saiu de trás de uma coluna e veio correndo para mim. E ele me contou o que tinha acontecido.

As pessoas, quando surpreendidas pelos gritos e ruídos dos alamanos, correram todas para a igreja, trancando-se lá dentro. Os invasores levaram um certo tempo, entrando em todos os aposentos e procurando coisas para pilhar. O que eles procuravam era, acima de tudo, objetos de ouro, que acreditavam existir no templo dos católicos. Quando enfim encontraram a pesada porta lavrada que dava acesso ao templo, começaram a gritar para que abrissem a porta. Como ninguém fez isso, passaram a se arrojar contra a ela, em grupos, para arrombá-la. Mas a porta nem se mexia, ela é incrivelmente forte e bem encaixada.

Os alamanos foram então cortar uma árvore bem grossa com seus machados e, depois de um tempo mais ou menos longo, chegaram com o aríete improvisado. Começaram a investir contra a porta e esta começou a ceder. Foi quando chegou, pelas costas deles, um homem alto com vestimentas sacerdotais. Junto com ele, um outro sacerdote, este com vestes tipicamente druídicas. Os dois, falando o idioma alamano, negociaram com o chefe do bando, um certo Walmaric. Ofereceram-se como reféns, dizendo que certamente eles valiam muitas vezes mais do que os modestos vasos e objetos de prata lavrada que havia na abadia. Nada ali era de ouro. Os romanos e os gauleses pagariam por eles dois um bom resgate. A única condição que eles impunham é que os alamanos, livres para pegarem todo e o qualquer objeto ou material que os interessassem na abadia, poupassem e respeitassem todos os seres humanos que estavam dentro da igreja. Nesse caso, os dois sacerdotes se ofereciam como escravos e colaboradores dos alamanos. Caso contrário, lutariam até a morte imediatamente. E puxaram suas espadas.

Os alamanos confabularam por um curto espaço de tempo e acabaram aceitando a proposta dos religiosos. Agradou-os muito o fato de terem ali dois intérpretes, para se comunicarem com os gauleses cujas propriedades viessem a saquear a seguir. E que esses dois fossem homens de religião de um alto nível, que seriam respeitados pelos galo-romanos locais. E, com certeza, haveriam de proporcionar muito ouro como valor de seus resgates.

Abertas as portas do templo, Walmaric e seus homens ignoraram as pessoas ali dentro e se dedicaram a colocar os objetos, adornos e crucifixos de prata em grandes sacos. Outros homens vinham de várias direções, com o mesmo tipo de sacos, onde tinham recolhido as poucas coisas de valor que os habitantes da abadia tinham em seu poder. Então mandaram que os dois religiosos preparassem dois cavalos e montassem. E, tão rápido quanto chegaram, foram embora galopando na madrugada gaulesa. Junto levaram o abade de Troyes e o druida Kelvin.

O menino me levou até à frente da igreja, onde todas as pessoas continuavam ajoelhadas, acompanhando preces de louvor e agradecimento conduzidas pelos padres. Seus poucos pertences de valor, assim como os da igreja, haviam sido pilhados. Mas estavam todos vivos e incólumes, sem um único arranhão. Isso jamais teria acontecido, não fosse a intervenção providencial, milagrosa mesmo, de seu abade e do druida celta. Na certa estariam todos mortos agora. Cânticos e preces foram ofertados, rogando proteção aos dois religiosos, que haviam se oferecido em sacrifício, para salvar as vidas de todos os demais. Um autêntico gesto crístico!

– Realmente uma coisa notável, uma atitude não só de grande coragem e sacrifício, mas, acima de tudo, de grande inteligência. De fato, de dois homens de tal envergadura, como Lucius Dracus e o druida Kelvin, só se poderia esperar atitudes lúcidas incomuns, como essa – comentou o general Jovinus.

– Agora está explicado, para mim, porque você se embrenhou na floresta atrás dos alamanos. E porque os combateu com tanta fúria e determinação.

– Tem toda a razão, centurião Marcellus. O que eu fiz foi ficar observando de longe, sem entrar na igreja, que aquilo que o menino tinha me contado era verdade. Eu estava vestida com uma camisola de mulher, mal oculta pelo manto preto que me cobria. Corri então para os aposentos do abade, nossa alcova de amor, e troquei de roupa, reassumindo minha identidade de Gilles de Troyes. Apanhei meu punhal, algumas frutas para comer no caminho e me embrenhei na floresta a cavalo, levando meu arco e as três aljavas de flechas comigo. Segui os rastros abundantes deixados pelos alamanos. Esperei que eles acampassem e os fiquei observando de longe, do alto das árvores. Meu coração quase saltou do peito quando vi meu abade e meu druida ao redor da fogueira, conversando animadamente com os alamanos. Sim, eles estavam vivos e estavam bem, um grande alívio para mim.

– E, a partir daí, o que aconteceu que fez com que você deixasse de seguir os alamanos que tinham seus dois amigos como prisioneiros e viesse aparecer em nosso acampamento?

– General Jovinus, não fazia nem uma hora que eu estava no meu posto de observação, quando sentinelas alamanos anunciaram a chegada de um outro grupo. De fato, várias dezenas de cavaleiros chegaram, desceram dos cavalos e começaram a conversar com os outros. Eu estava longe demais para ouvir o que disseram, mas o abade e druida tudo ouviram, porque os alamanos tinham certeza que eles não poderiam comentar o que ouviram com ninguém fora daquele acampamento, já que eram mantidos prisioneiros e vigiados. Num certo momento, as vozes foram ficando mais elevadas e os ânimos se alteraram. De repente, o homem que parecia ser o líder dos cavaleiros que chegaram sacou da espada e avançou sobre o chefe Walmaric. Mas os outros homens os seguraram e impediram que os dois entrassem em luta. Então os visitantes foram embora, imprecando contra os que ficaram, visivelmente fazendo ameaças.

Continuei firme em meu posto de observação e fui vendo os homens se recolherem para dentro de suas tendas e para debaixo de seus abrigos improvisados. Meus dois homens foram colocados em uma tenda e dois alamanos ficaram do lado de fora, para vigiá-los. Vi que um outro homem entrou na tenda trazendo dois pedaços de corrente e logo após saiu dali sem elas. Era evidente que ele tinha acorrentado os prisioneiros. Então resolvi que eu iria entrar na tenda deles.

– Uma empreitada impossível, moça! Sentinelas na entrada da tenda, um acampamento cheio de alamanos. Como você poderia se aproximar da tenda?

– Ora, general, uma acampamento cheio de alamanos cansados, que dormiam como pedras. Eu tinha que me preocupar era com os sentinelas. Aqueles dois, já que tinham que guardar a tenda dos prisioneiros, ficaram como vigias daquela parte do acampamento também. Eu precisava fazer algo que os distraísse e os fizesse sair do posto. E que não fosse barulhento, para não acordar os outros. Eu poderia abrir a porteira do potreiro improvisado e soltar alguns cavalos, mas isso iria acordar muitos soldados. Pensei, pensei e no fim só vi uma solução. Desci da árvore, retirei e escondi minhas roupas de Gilles. Fiquei só com a roupa de baixo, seminua, o corpo de mulher se oferecendo. E me aproximei sem fazer ruído, até que os dois homens me viram.

– Mas isso foi loucura!

– Mas foi a única loucura que eu podia fazer na hora, centurião: me oferecer para aqueles homens. De longe fiz sinal a eles que não fizessem barulho e mostrei-lhes uma moeda de cobre grande, presa entre meus dedos. Eles entenderam que esse era o meu preço. Vi que eles tiraram a sorte entre eles, com os dedos, e o vencedor, tirando as sandálias, veio pé ante pé até o ponto onde eu estava. Eu saí andando bem devagar mais para o meio do mato, o homem me seguindo e já passando a mão no meu traseiro. Então parei e me voltei para ele. Fiz sinal que ele esperasse um momento e retirei o pano estreito que cobria meus seios, que surgiram se oferecendo. O home os pegou e, como eu esperava, levou a boca a um dos bicos. Nessa hora ele ficou todo meu. Dei-lhe um tremendo golpe de cutelo, ou seja, bati com a mão direita em forma de cutelo exatamente no ponto que o druida tinha me ensinado, entre o pescoço e a nuca. O alamano caiu de joelhos já desacordado. Roubei a bolsa dele e uma pulseira de ouro que ele tinha, para que pensasse, ao acordar, que tinha sido vítima de roubo apenas.

– E o outro sentinela?

– Bem, como o primeiro ia dormir por um bom tempo, fui buscar minhas roupas de menino. Me esgueirei com elas por trás das tendas, bem no limite do acampamento, até chegar à altura da tenda dos prisioneiros. Escondi ali as minhas roupas de Gilles. Fiz um pequeno ruído, suficiente para que o outro sentinela me visse. Ele deve ter estranhado eu estar sem o colega dele. Mas nessa hora eu apelei de vez: deixei cair toda a minha roupa de baixo, fiquei totalmente nua. O homem quase saiu correndo em minha direção, eu tive que fazer sinal para que ele tomasse cuidado, que não fizesse barulho. Quando ele chegou e foi querendo me agarrar, eu peguei a cabeça dele empurrei para os meus seios. Por sorte aquele ali também mordeu a isca. Levou o golpe na parte de trás da nuca, quase no pescoço, e também emborcou de frente, sem dar um gemido. Agradeci mentalmente outra vez a mestre Kelvin pela lição bem dada. Roubei esse outro homem também. Para me divertir ainda mais, roubei o par de sandálias dele!

– Mas você é capaz de cada coisa, Alline! Que cabecinha!

– Não, centurião, sejamos justos: que treinamento! Meus mestres é que foram excepcionais. Bom, com os dois malogrados fregueses da prostituta de Troyes dormindo como anjinhos, o caminho estava livre para a tenda dos meus dois homens. Vesti as roupas de Gilles novamente. Entrei silenciosamente, com o coração acelerado, ia poder rever e beijar o meu amado. Deixei que meus olhos se acostumassem à escuridão e me preparei para acordar o abade Lucinus. Mas uma voz sussurrada suavemente ao meu ouvido me mostrou que meu druida estava acordado:

– Você demorou, Alline de Troyes! Pensei que você fosse dar um jeito nesses dois sentinelas mais rápido. Aplicou o cutelo neles?

– Mestre! O senhor sabia?

– Bem eu senti que você estava rondando por cima das árvores faz um bom tempo. Aí fiquei esperando que você desse um jeito de entrar aqui. E, como o único obstáculo seriam aqueles dois lá fora, o resto foi fácil de imaginar. Afinal, só havia uma coisa a fazer e aposto que não foi o senhor Gilles que fez.

– Não, foi Alline que se ofereceu aos homens.

– Ótima tática! Você continua sendo o meu orgulho maior como discípula. Mas agora vamos de fato acordar esse dorminhoco. Aliás, tive uma ideia melhor. Vou deixar que você acorde o homem e que vocês façam aqui o que bem entenderem. A tenda é de vocês. Eu vou sair um pouco.

– Mas Mestre, o senhor está acorrentado pelo tornozelo!

–Não me decepcione, Alline. Não subestime o seu professor. Ainda está para ser inventada a corrente que consiga prender Kelvin da Bretanha – e, ante meus olhos atônitos, já acostumados à escuridão, o Mestre retirou a corrente de sua perna como se ela fosse um brinquedo. E disse:

– Quinze minutos no máximo, sejam eficientes. Eu volto em seguida para me acorrentar de novo. E para que nós combinemos o que você tem que fazer.

O druida saiu da tenda e eu me atirei em cima do meu Amor, cobrindo-o de beijos e carícias. Ele acordou encantado e nós fizemos amor com arrebatamento e comoção. Quando enfim nos afastamos alguns centímetros, Mestre Kelvin entrou de volta na tenda.

– Muito bem, meninos, agora já chega. Já mataram as saudades. Agora ouça com atenção, Gilles de Troyes, porque é você que tem que agir. Veja bem: o grupo de alamanos que esteve aqui faz parte de uma grande força que está avançando por esta floresta para atacar a legião romana. Eles vão avançar por três direções diferentes. Uma quarta divisão virá de Troyes, pelo sul, para atacar e servir de isca para os romanos. Quando estes estiverem em combate, os outros três grupos alamanos que avançarão pela floresta vão cair sobre a legião e destroçá-la.

Meu general abade completou:

– Meu amor, se isso acontecer, nada mais vai poder impedir o avanço dos alamanos pela Gália, será uma catástrofe total. Você precisa sair daqui imediatamente e localizar esses grupos de alamanos que avançam pela floresta. E, tendo feito isso, precisa dar um jeito de alertar os romanos enquanto é tempo. Se você conseguir fazer isso, a situação pode se inverter. Se os romanos souberem que vão ser atacados e como, eles podem se antecipar e transformar uma provável derrota numa grande vitória e podem nos livrar dessa praga para sempre.

– Eu quero saber uma coisa: Por que estes alamanos que aprisionaram você brigaram feio com os que vieram visitá-los?

–Ah, você viu! Pois eles queriam que Walmaric e seus homens fossem se juntar a eles. Mas este patife se recusou, disse que ele ataca e pilha por conta própria. E que não vai colocar sua tropa em risco, combatendo a legião. Walmaric e seus homens são apenas um bando de salteadores, eles são cerca de quatrocentos e não se submetem nem se unem a outros alamanos. Por isso saiu aquela briga.

– Mais uma pergunta: Por que, já que nosso druida pode se livrar da corrente quando bem entender, vocês não fogem? Venham comigo agora, o que os impede?

– Alline, meu amor, eu e seu mestre Kelvin temos que continuar com este grupo de alamanos, porque nós temos um plano para acabar de vez com a ameaça que ele representa.

– Isso mesmo, minha discípula. Você se encarrega da legião, nós dois vamos dar um jeito nesse bandido Walmaric. Vai valer a pena. No final, com você e nós vitoriosos, os alamanos serão varridos da Gália e teremos paz. Agora despeça-se do seu marido e vá cumprir sua parte da missão.

E foi o que eu fiz!

– Então foram Lucius Dracus e Kelvin da Bretanha que deram essa missão a você! Por deus Marte, além de devermos nossas vidas a você, as devemos a eles também.

– Bem, general, foram eles os que ouviram os planos dos alamanos em primeiro lugar. Depois eu, durante os três dias em que segui os diferentes grupos na floresta, pude ouvir e confirmar que a estratégia seria essa mesma. E o resto os senhores sabem muito bem como aconteceu.

– O resto é a história de como você nos ajudou, salvou e nos encheu de exemplos de qualidades e virtudes que nós já esquecemos há muito tempo. E, por causa de tudo isso, nós a queremos recompensar em nome de Roma. Pensamos em lhe dar terras e uma grande recompensa em ouro. E isso você não poderá recusar, porque não tem nada a ver com sua arte de curar. É a recompensa por ter salvo milhares de vidas romanas.

– Pois eu troco tudo isso, de bom grado, general, por uma única coisa.

– Pois então diga, Alline, pois nós estamos ansiosos para demonstrar a você que Roma sabe ser grata a seus benfeitores.

– General, general, eu sei o quanto Roma foi grata a Lucius Dracus por trinta anos de dedicação a sua defesa: tornou-o proscrito e expropriou todos os seus bens! Pois é este o meu pedido, general: troco toda a recompensa em bens, se o senhor empenhar todo o seu prestígio e de seus amigos senadores e militares, para lograrem a reabilitação do general Lucius Dracus.

– Mas, minha filha, isso significaria entrar em confronto direto com o mais importante conselheiro do imperador Valentiniano, o detestável Constâncio!

– E o senhor não correria tal risco pelo general Lucius Dracus, não é mesmo, general Jovinus?

– Não, não correria tal risco por ele, porque não devo nada a ele. Mas devo TUDO a você, Alline de Troyes: minha vida, minha vitória sobre os alamanos, o grande impulso que isso representa para a minha carreira. Devo a você, Alline e vou pagar correndo todo e qualquer risco que for necessário. Nem que isso seja o fim da minha carreira, nem que isso signifique o confronto direto com Constâncio. Eu lhe prometo e garanto: de hoje em diante farei ouvir minha voz em defesa de Lucius Dracus. E hei de conseguir dezenas de outras adesões importantes. Constâncio não terá que se haver só comigo, mas com uma grande parte das legiões e do senado também.

– E eu entrarei nessa luta também, Alline de Troyes, mesmo sendo apenas um centurião. Mas sei de alguém de grande influência em Roma, Ravenna e Constantinopla que ficará muito contente por poder enfim mostrar sua gratidão a você. Eudorus e sua família podem mover céus e terras em benefício de uma pessoa, quando querem.

Alline não disse nada. Abaixou a cabeça, colocou as duas mãos na testa, encobrindo os olhos e deixou-se ficar assim por um minuto. Quando retirou as mãos e ergueu a cabeça, os dois romanos viram que a face da gaulesa estava banhada em lágrimas. Mais uma vez ela os surpreendia. Tendo a oportunidade de ganhar terras e uma grande quantia em ouro, ela abria mão de tudo isso por outra pessoa. As lágrimas de Alline eram de comoção e eram de gratidão. Agora ela é que estava grata pela demonstração de amizade – por que era isso mesmo o que estava evidente ali – por parte do General Jovinus e do centurião Marcellus.

CONTINUA: O Perverso Walmaric

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 14ª parte: Os alamanos saqueiam a abadia  
MILTON MACIEL 

Fim da 13ª parte:
– Sim, sim, minha filha, como for melhor para você. Nós nos retiramos então. Tenha uma boa noite.

– Boa noite, general. Boa noite, centurião.

E os dois oficiais romanos se retiraram para poder comentar entre si todos os incríveis acontecimentos que cercavam a vida daquela menina ainda tão jovem.

14ª parte:
Durante a manhã e a tarde do dia seguinte, Alline dedicou-se inteiramente a ajudar a cuidar dos feridos e enfermos, tanto na tenda dos romanos, como na dos alamanos. Entre os romanos, Eudorus, o cunhado de Caius Marcellus, estava em franca recuperação e tinha sua convalescença ajudada pelo misterioso pó de sua benfeitora gaulesa. Recuperando a fala, o decurião não se cansava de repetir a todo momento o quanto era grato à moça, que nada havia que ele pudesse fazer que chegasse para recompensar a teimosia com que ela havia lutado contra a morte dele, já tida como certa por seus enfermeiros romanos.

Proveniente de importante família patrícia e dono de posses de vulto, o oficial oferecia a toda hora recompensas em ouro à gaulesa, que as recusava terminantemente, até  que, por fim, o proibiu de repetir aquela sua ladainha. Caius Marcellus, também ele muito grato à salvadora do marido de sua irmã, tentou em vão convencê-la a aceitar a doação de Eudorus:

– Mas Alline, para mim e para ele não faz o menor sentido essa sua recusa obstinada. Você disse que é de uma família de modestos fazendeiros. E seu marido, perseguido por Constâncio, perdeu todos os seus muitos haveres, resultado de quase três décadas a serviço de Roma. Por que recusar a doação e não permitir que nós demonstremos, com ela, nossa imensa gratidão?

– Centurião, meu druida me ensinou os segredos da Ars Curandi com uma condição: que eu jurasse nunca mercantilizar minha ciência e nunca aceitar dinheiro ou presentes para  curar ou por ter curado um ser humano ou um animal. Eu apenas cumpro o meu juramento. E o faço com muita alegria no coração e com plena gratidão a meu mestre e seus princípios morais. Se eu aceitasse a oferenda de seu cunhado, eu trairia meu juramento, minha moral, meu mestre e minha dignidade. E jamais me perdoaria por isso. Proponho, portanto, que encerremos este assunto de uma vez por todas, centurião.

E foi-se embora para a tenda dos alamanos feridos, deixando o centurião e seu cunhado do boca aberta na tenda-enfermaria dos romanos.

– Essa mulher não existe, Marcellus! Não pode existir! Ofereça o que eu ofereci a ela a qualquer uma das milhares de pessoas neste acampamento, e nenhuma delas, sem exceção, a recusaria. Mas ela o faz com a maior tranqüilidade, como se meu ouro não tivesse nenhum valor. Francamente, será que eu estou delirando ainda e tendo uma miragem? Pode existir uma Alline de Troyes neste mundo, cunhado?

–  Bem, Eudorus, ela existe sim, estava há pouco à nossa frente e, possivelmente, só existe uma como ela no mundo todo: ela mesma! Eu lhe digo que essa moça, a cada dia que passa, nos dá uma nova lição, me faz aprender algo novo, me obriga a repensar meus conceitos estabelecidos há décadas. Que força, que caráter e que maturidade! E é pouco mais do que uma criança na idade...

Alheia a esta conversa, Alline de Troyes, nesse momento, estava em plena conversa, em idioma alamano, com Agenaric, um dos homens que havia conseguido recuperar de um ferimento muito parecido com o do cunhado do centurião Marcellus. Este alamano, também ele um oficial de seu exército, estava embasbacado com aquela gaulesa que, tendo ferido, inclusive mortalmente, alguns de seus camaradas, passava horas a fio agora cuidando dos inimigos feridos:

– Moça gaulesa, nós estivemos ontem em conversa, durante muito tempo, a seu respeito. É mesmo muito difícil entender como você, sendo uma inimiga nossa e uma pessoa de um país que nós invadimos e saqueamos, matando inclusive muita gente da sua população civil, tenha tal misericórdia conosco. Você é cristã e religiosa, por acaso?

– Não, senhor oficial. O que faço, não o faço por religião, mas porque sou fiel a meus princípios e minha moral. Os romanos também estranham minha atitude para com vocês. E eu lhes dou a mesma justificativa: um alamano é meu inimigo quando me enfrenta de arma na mão em campo de batalha. Aí, no campo de honra, que vença o melhor. Para mim tanto faz se vou matar ou se vou morrer. No entanto, fora dessa condição de luta honesta e justa, se um inimigo está tombado e ferido, eu lhe estendo a mão e, tendo eu condições, trato dele, sim. Pois aí ele é somente um outro ser humano como eu, que se encontra momentaneamente desvalido e necessita de ajuda.

– Mas e se, depois, esse homem recuperado volta a atacá-la como um inimigo?

– Acho que é justo e digno da parte dele. Não é porque eu o ajudei que ele tem que me ajudar ou me poupar ou deixar de combater comigo. Porque eu não curo para obter favores ou vantagens, eu curo, se os deuses o permitem, apenas pela obrigação que tenho de curar.

– Você falou “os deuses”. Não é mesmo cristã, portanto.

– Não, não o sou. Ou talvez também o seja. Mas não abjuro minhas crenças de origem e meus deuses que são celtas, gauleses e francos. Como diz meu sábio mestre, o druida Kelvin, por trás de todas as deusas e deuses oculta-se uma só e mesma Essência.

– Monoteísmo então, gaulesa. Mas isso não é ser cristã?

– Monoteísmo em termos, oficial. Existe uma só Essência, mas eu a posso cultuar sob mil nomes e disfarces, em mil templos diferentes. E todos serão válidos, não é mesmo?

– Pensando desse jeito, acho que você tem mesmo razão. É muito profundo tudo isso, para vir de uma pessoa tão jovem como você. Quantos anos tem, afinal?

– Dezessete anos e meio, senhor.

– E ainda aparenta ter menos, desculpe. Sabe, eu nunca vi, em toda a minha vida, uma mulher como você, em nenhum dos povos que eu tenha conhecido, a começar pelo meu próprio povo alamano. Nós tivemos e temos algumas raríssimas mulheres guerreiras. E eu conheci algumas guerreiras entre os gauleses e entre os celtas da Bretanha, onde já estive também. Mas são todas mulheres, rústicas, grosseiras, analfabetas, quase homens – neste caso excetuando-se a celtas bretãs. Mas você, além de ser uma guerreira de técnicas refinadas, é uma pessoa estudada e culta. E é uma grande curadora também. Pelos deuses, todos os milhares deles, ou por todos eles em um só, como você diz, é mesmo difícil acreditar que uma mulher assim existe de verdade. Se eu não tivesse visto e me contassem, pode ter certeza que eu não acreditaria.

– Bem, senhor, isso não tem a menor importância. O que importa é que eu estou aqui e que, com a graça dos deuses, me foi permitido ajudá-lo e a seus companheiros.

– Sim, Alline de Troyes. Eu e eles lhes devemos muito, no meu caso, a própria vida que você arrancou à morte pelo ferimento. Mas não é só isso. Ontem mesmo nós ficamos sabendo aqui que não só os alamanos feridos, mas todos os alamanos ilesos devem a sua vida a você. Nosso enfermeiro romano, que fala um pouco do nosso idioma, não tão bem como você, é claro, nos contou como você defendeu nossas vidas, depois que os oficiais romanos votaram por nossa imediata execução. Isso é uma coisa não só incompreensível para nós, como é, ao mesmo tempo, algo que nós temos a obrigação de lhe retribuir de alguma foram, se os deuses um dia nos permitirem tal coisa.

– Ah, não, oficial! Não vão agora vocês, os alamanos, começarem com essa coisa de novo. Já chega os romanos. Eu não fiz nada mais do que a minha obrigação. Fui apenas fiel a meus princípios. Eu sou contra a covardia simplesmente, tenha ela o disfarce que tiver. Executar homens indefesos é covardia para mim. Então eu apenas fiz os romanos entenderem que, se fizessem como vocês ou os francos fazem com os seus prisioneiros, mantendo-os vivos e forçando-os a trabalhar, eles não teriam que cometer o assassinato covarde de centenas de indivíduos.

–  Mas, ainda assim, centenas de inimigos deles.

– Bom, eles se convenceram, não foi?

– Para nossa sorte, sim, moça gaulesa. Mas isso tudo somente por sua corajosa intervenção. Ficamos sabendo que você até enfrentou um oficial romano por causa de sua posição a nosso favor. E, segundo nos contou o enfermeiro, que assistiu à luta pessoalmente, você venceu o romano tanto com arma como sem arma, um portento.

– Bem, não foi uma coisa tão extraordinária assim. Foi muito fácil e rápido. O homem nem é romano, é um grego. E é um bom homem, voltou atrás em sua posição, pediu desculpas e votou pela não-condenação de vocês. Foi o primeiro a fazer isso.

– Um homem notável esse, também, se agiu assim, tendo a hombridade de se retratar de tal maneira!

– Sim, felizmente estamos cheios de homens e mulheres dignos neste mundo, também.

– Bem, Alline de Troyes, em meu nome e de todos os alamanos que você salvou neste campo, feridos ou não, eu quero lhe declarar nossa eterna gratidão e nossa aliança. Nenhum de nós aceitará combater contra você jamais. E, se um dia formos livres de novo e você precisar de nós, nós seremos seus aliados em qualquer circunstância.

– Ah, mas essa forma de demonstrar gratidão eu aprecio de verdade! Vocês, alamanos, têm demonstrado sempre muito mais inteligência que os romanos.

– Uma grande verdade! E teríamos derrotado esses limitados com certeza, se uma certa guerreira muito mais inteligente do que eles e do que nós não tivesse entrado em cena. E, para nossa infelicidade, não estivesse do nosso lado, mas do lado dos romanos. Você, Alline de Troyes!

– Mas o senhor compreenderá que eu tenho razões de sobra para estar do lado oposto ao dos alamanos.

–Certamente, porque nós somos os invasores de sua terra.

– E o que são os romanos, senhor?

–  E o que são eles, gaulesa?

– São invasores da nossa terra também.

 –  Bem, de um certo modo eles...

– Eles são tão invasores como vocês. Apenas que já o fizeram há muitos séculos e hoje têm acordos de paz que funcionam com os gauleses. Esta é agora não mais a Gália, mas a Gália Romana. Aqui fala-se o latim também, aqui os gauleses se cristianizam tanto quanto os romanos. Somos uma cultura de transição. Um dia também os gauleses, os francos, os visigodos, os alanos, os burgúndios e mesmo vocês, os alamanos, poderemos ser todos aliados entre nós e aliados dos romanos. E só nesse dia é que começaremos a viver em paz.

– Estranha visão, Alline de Troyes! Queiram os deuses que ela seja profética e as coisas aconteçam exatamente assim. Por que eu, particularmente, estou farto de sangue, morte e guerras. Assim que tiver a menor oportunidade, deixarei o exército, seja oficialmente, seja desertando.

– Acho que fará muito bem, oficial. Não só deixará de colocar sua vida em risco, mas poderá parar de tirar as vidas dos outros. Bem, preciso ir agora, cuide-se bem e não exagere nos movimentos ainda. Ah, e procure tomar o dobro da água que toma normalmente.

E, sob o olhar encantado e agradecido dos alamanos feridos, a moça gaulesa se retirou e foi cuidar de outros afazeres.

À noite, como já se tornara hábito, o general e o centurião apareceram na tenda dela. Vinham em busca da continuação da história que os intrigava e fascinava.

– Ah, boa noite, senhores. Entrem, por favor. O mesmo banco incômodo os espera.

Os dois oficiais romanos entraram e sentaram, mantendo o máximo silêncio, como a dizer com isso que esperavam que Alline começasse a narrar sua história em seguida. Ela o fez:

– Vivemos, meu general-abade e eu, dois anos de pura felicidade em Troyes. Nesse tempo, depois de ter me instruído em tudo o que sabia, desde manejo de armas até equitação, desde luta-livre até camuflagem de campo, nós começamos a discutir estratégias de combate e estudar as grandes batalhas. Aquilo me encantou. O general Lucius era um notável estrategista e tinha buscado aprender com os mais diversos estrategistas militares do mundo: romanos, gregos, macedônios, persas, egípcios, citas, hunos, francos, godos, alanos, gauleses, bretões e muitos outros. Nós lemos juntos o De Bello Gallico, de Júlio Cesar, um dos muitos livros que existiam na biblioteca da abadia. E, durante esses dois anos, eu atingi o limite máximo de ensino que havia na escola regular, de forma que o bondoso e sábio irmão Ildasius tomou-me sob sua responsabilidade e começou a instruir-me em Aristóteles e outros filósofos gregos. Ildasius era um religioso diferente, não era dado a delírios místicos cristãos, era muito mais um filósofo recém-egresso do paganismo grego. Aprendi com ele muita coisa de lógica, retórica e moral. Ensinou-me também uma visão do estudo comparado das religiões, o que me fez acreditar no quanto estava certa a concepção de meu druida, que todos os deuses e deusas se continham em uma única Essência.

– Que notável o seu progresso intelectual nesse curto intervalo de tempo!

– De fato, general, eu tive mesmo a grande felicidade de ter grandes mestres como instrutores. Meu druida continuou o tempo inteiro me ensinando suas artes e suas quase-mágicas, influências estas que a mente humana pode exercer sobre a natureza e que, ensinou-me ele, só devemos empregar em casos de absoluta emergência. Meu abade não tinha nada mais a me ensinar, a não ser a maravilhosa lição do seu amor maduro, calmo e constante, que me fez conhecer todos os céus e todos os deleites da alma que é amada com devoção. Lucius dizia sempre que o seu amor era cheio de gratidão, porque ele era imensamente grato a mim, por ter aparecido no outono de sua vida e ensinado a ele o que era o amor verdadeiro. E afirmava que foi a força do meu enorme amor por ele que o salvou do deserto estéril em que a vida religiosa o estava confinando. Para mim era uma coisa notável que aquele homem, de uma compleição tão forte e de uma beleza tão grande, de uma posição tão importante também, sentisse por mim tudo o que demonstrava todos os dias, eu que era apenas pouco mais do que aquela molecota rústica, que ele tirara de uma fazendola para convertê-la no senhor Gilles de Troyes. Mas meu amado me fez sentir, o tempo inteiro, que ele se sentia inferior a mim e que era infinitamente grato a mim por eu existir em sua vida. Isso, mais do que tudo o que ele fazia, me levava a me sentir profundamente amada e muito, muito segura. Até o dia em que os alamanos chegaram, caíram sobre nós como uma praga e puseram por terra todo esse nosso edifício de amor e segurança.

– E quando foi isso?

– Pouco dias atrás, centurião. Exatamente uma semana antes que eu aparecesse neste acampamento pela primeira vez, como Gilles de Troyes.

Uma invasão. Um ataque de surpresa!

– Isso mesmo, general. Exatamente na calada da noite, como eles iam fazer aqui contra vocês.

– O que você evitou, salvando a todos nós.

– Bem, eles atacaram de repente, um pouco depois de meia-noite. A abadia não tinha defesas militares, há quase um século que o castelo que ali existia tinha passado a ser usado só por ordens religiosas, sendo a última delas a que meu abade dirigia. Os alamanos passaram pelos campos, saquearam fazendas – felizmente a de minha família não estava no caminho deles – e vieram tomar a abadia, que imaginavam teria muitas riquezas para serem pilhadas.

– E a defesa do castelo?

– Era inexistente, senhor. Nunca se esperou que a abadia fosse atacada e nunca invasores haviam assolado aquela região. Mas agora eles estavam ali. Já mencionei antes que as muralhas do castelo eram baixas e que estavam muito mal conservadas. Na verdade elas tinham muitas brechas. Os alamanos, no silêncio da noite, passaram por elas e abriram o grande portão. Quando os cães e os gansos começaram a fazer seus alaridos, os cruéis invasores já estavam atacando, pilhando e matando. A abadia tinha uma população de cerca de cinquenta pessoas, nenhuma delas era militar, exceto meu general-abade. Dezoito eram religiosos, homens da mais absoluta paz. Os demais eram empregados e alguns pobres que eram momentaneamente acolhidos. Foi um massacre total.

– E o general Lucius, o que fez?

– Fomos acordados pelo grande alarido e alguns homens entraram correndo em nosso aposentos para nos dar conhecimento da invasão. Lucius me pegou pela mão e nós corremos, pela passagem secreta, para a sala de treinamento, para pegar armas. Como ele esperava, ali já estava o druida Kelvin. Lucius me mandou escolher três arcos e encher três aljavas com flechas. Enquanto isso, vi que ele e mestre Kelvin confabulavam em voz baixa. Em seguida, o mestre veio até mim, ajudou-me com as aljavas e disse que teríamos que passar por um novo compartimento secreto. Ele achou uma alavanca secreta e uma porta se abriu na parede de pedra, mostrando um aposento de uns dez passos por dez. O druida deu-me uma tocha e me mostrou que, no teto, havia uma passagem estreita para o ar e para a fumaça. E falou algo que achei muito estranho:

– Neste aposento há uma pedra que é mágica. E sua mágica é mostrar o céu. Agora fique aqui, que eu vou buscar mais armas e Lucius virá para cá imediatamente.

Ele saiu e eu ouvi, surpresa, o barulho da porta secreta se fechando com muita rapidez, empurrada com força por dois homens: meu Amor e meu Mestre. Eles me deixaram trancada ali e eu comecei a gritar. Queria ir com eles aonde fossem, queria combater os inimigos e defender as pessoas do castelo. Mas meus gritos não podiam vazar as largas paredes de pedra. Então compreendi que eles me prenderam ali para me proteger. Eu era mulher, a única mulher dentro da abadia e minhas roupas agora eram a roupas de dormir, eu não tivera tempo de me vestir como Gilles, tinha apenas colocado um manto comprido para disfarçar minha camisola feminina. Se os alamanos me encontrassem, eu seria estuprada por dezenas deles até à morte. Meu amor e meu mestre quiseram me poupar desse destino horrível. E me deixaram presa ali.

Eu estava numa peça pequena, totalmente sem janelas e que tinha uma porta secreta cujo mecanismo só podia ser acionado pelo lado de fora, pela sala de treinamento. Meus protetores contavam que, mesmo que os alamanos descobrissem a passagem secreta para a grande sala de armas, dificilmente eles poderiam localizar a alavanca secreta que acionava o mecanismo de abertura da porta. Eu tinha uma tocha comigo, que se extinguiria em pouco mais de uma hora. Percebi que a fumaça da tocha subia quase verticalmente em direção ao buraco no teto muito alto da sala. Pensei nas palavras do druida e as repeti diversas vezes, para gravá-las:

– Nesta aposento há uma pedra que é mágica. E sua mágica é mostrar o céu.

Era evidente que uma das pedras, uma só dentre aquelas centenas de pedras lavradas iguais, tinha também acesso a um mecanismo que podia abrir outra passagem. Que mostraria o céu... Possivelmente uma passagem para cima ? Aquilo era a parte estranha do enigma. De qualquer forma, a primeira coisa a fazer era achar a tal pedra. Coloquei a tocha na argola da parede e comecei a apalpar as pedras da parede uma por uma, à minha altura, freneticamente. Não consegui nada, nenhuma pedra se movia. Então raciocinei: a pedra especial não deve ter sido colocada tão alto, deve estar mais embaixo. E estabeleci um plano de exploração sistemática, fui tocando nas pedras rentes ao chão, depois na segunda camada, depois na terceira e assim por diante, subindo lentamente.

Só que angústia que eu sentia ia ficando cada vez mais forte. Enquanto eu perdia tempo ali, incapaz de ir ajudar os dois homens mais importantes da minha vida, onde estariam aqueles dois? Teriam saído sozinhos, com armas, para enfrentar um inimigo numeroso e cruel? Se o fizessem, teriam sido mortos imediatamente. Eram só dois homens contra um exército de invasores. Comecei a entrar em pânico e só então percebi como o amor que eu sentia por meu abade era tão imensamente maior do que eu imaginara até então. Minha sensação de desgraça, de perda iminente, foi tomando conta de mim e eu fui ao desespero. Comecei a urrar de dor, chorar em pânico, orar aos deuses e ao deus cristão, suplicar a Jesus Cristo, mas minha percepção era de que meu homem estava morto. Então me entreguei à dor e à desesperança. Desisti de procurar a tal pedra mágica, deixei-me cair ao chão e esperei que a tocha se extinguisse. Se meu amado estivesse morto, de que me valeria sair dali? Porque haveria eu de querer viver sem ele? Que aquela peça fosse o meu sepulcro. E, se num verdadeiro milagre, ele não tivesse sucumbido, então ele voltaria e me resgataria dali. Havia ar renovado pelo pequeno buraco no teto. Podia respirar. E morreria de sede ao cabo de alguns dias.

– Céus, eu fico arrepiado só em pensar nisso, tenho pavor de lugares pequenos e fechados.

– E a situação dela, centurião era mesmo desesperadora. Que aconteceu então, Alline?

– Creio que o que aconteceu foi que meu druida me conhecia melhor do que eu mesma. Depois de alguns minutos naquela letargia desesperada, eu reagi! Pensei no meu Mestre e pensei no meu Amor: como eles ficariam decepcionados se me vissem desistir de lutar daquele jeito e me entregar à morte, como uma pessoa fraca qualquer. Segurei meu choro, dei um salto, voltei a me ajoelhar no chão e prossegui a busca pela tal pedra móvel. Era uma corrida contra o tempo, porque a tocha em breve iria se apagar. E eu havia perdido muito tempo derreada no chão. Observei a velha mesa de madeira e as quatro cadeiras no aposento pela primeira vez, com atenção. E então, antes que a tocha se extinguisse, eu comecei a quebrar a cadeiras, batendo-as com força contra as paredes e contra o chão. Obtive assim pedaços estreitos e compridos de madeira, que comecei a queimar um por um, acendendo o primeiro na tocha e os outros, cada um no que se consumia antes. A queima da madeira produzia muita fumaça e eu comecei a tossir. Mas agora não havia o que me fizesse parar. Tossindo, eu avançava pelas paredes, batendo com força em cada pedra. Nada! Em pouco tempo, as cadeiras já  estavam quase inteiramente queimadas.

–  Pelos deuses, criatura, que angustiante!

– Só me restava a mesa. Mas cortá-la em pedaços seria uma operação muito mais difícil. Ela era muito grossa e pesada demais. Tentei movê-la e não consegui. Só que era ela ou eu! E eu não queria que meus amados soubessem, ainda que fosse do outro lado da vida, que sua gaulesa havia desistido de lutar. Peguei um dos últimos pés de cadeira e ataquei a mesa com toda a fúria. Pedaços do tampo estilhaçaram e caíram ao chão. Eu gritei:

– Está vendo, maldita! Eu quebro você!

A fumaça estava totalmente insuportável. Eu já começa a sufocar seriamente e comecei e me sentir muito tonta. Mesmo assim investi com toda a minha força e com todo o meu peso, arrojando-me com raiva contra a pesadíssima mesa. E ela se mexeu! E, ao mover-se, um ruído diferente veio do chão. Ao mesmo tempo, uma faixa do teto e da lateral superior da sala se abriu: ela era feita de metal e disfarçada com tijoletas finíssimas de pedra lavrada. Acima da minha cabeça, estrelas brilhavam. O ar se fez rapidamente puro e a última madeira que queimava se apagou. Eu estava salva do sufocamento!

Continua: O sacrifício do abade

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES – 13ª parte: Um casamento druída
MILTON MACIEL

Fim da 12ª parte:
– Ele convenceu o abade Lucinus que estava sendo severo demais consigo mesmo e que estava me impondo um sofrimento cruel demais, que eu não merecia. E então ele fez uma coisa maravilhosa?

– O que?

– Ele nos casou segundo o rito druída celta!

13ª parte:
– Casou vocês?! Mas que coisa mais incrível, considerando que Lucius se esforçava para se manter dentro do voto de celibato e castidade de sacerdote católico!

– Mas a verdade, general, é que nem ele nem eu aguentávamos mais aquilo. Nos últimos tempos era um terrível tormento estarmos dormindo nos mesmos aposentos, a poucos passos um do outro e não podermos nos tocar. Mas, ao mesmo tempo, quando podíamos nos tocar, durante os treinamentos de luta livre, o tormento era termos que parar o contato ao fim de um determinado movimento. Estávamos nesse desespero quando o sábio Kelvin mandou nos chamar a sua habitação.

Ali, ele nos fez ver o absurdo da nossa situação. E garantiu que nós nos amávamos com toda a força do espírito, coisa que – explicou – o general Lucius jamais havia conhecido na vida, com o que este imediatamente concordou. E então ele disse que era melhor que o abade parasse de manter aquela luta irracional e injusta contra o general e contra os sentimentos da moça gaulesa:

–Você simplesmente não tem o direito de fazer esta pobre menina sofrer do jeito que sofre, por causa de um voto que não tem pé nem cabeça.

– Mas eu jurei a meu tio que seguiria todos os votos que fiz ao aceitar a minha sagração como padre. E, ainda mais, quando fui feito abade, pois então, mais do que nunca, eu tenho que ser um exemplo para meus subordinados.

– E exemplo de que, Lucius? De ser capaz de obedecer a uma norma anacrônica, absurda e antinatural? Pois é isso que o celibato e a castidade forçados representam para os padres, meu amigo. Tanto isso é verdade que você não tem mais capacidade de resistir a seu fascínio por Alline. Você está nos últimos estertores de sua força. Logo sucumbirá. Pois então, antes que isso aconteça de uma forma intempestiva e incontrolável – portanto tola – deixe que eu prepare a noiva.

– Noiva?! – estranhamos os dois ao mesmo tempo.

– Noiva, sim. Vocês sabem que eu sou um sumo-sacerdote dentro da religião dos celtas. E que, portanto, posso oficiar casamentos como uniões abençoadas pelos deuses. Inclusive o seu Deus, meus caro, pois todos os deuses e deusas são, na verdade, manifestações de uma única Essência. Pois muito bem, é minha intenção realizar imediatamente o casamento de vocês dois.

Eu fiquei maravilhada com a proposta do druida. Lucius Dracus ficou em estado de choque. Mas o druida completou:

– Para sua conveniência, meu caro abade, o casamento druídico de vocês permanecerá desconhecido por seus padres e estudantes. E a consumação do mesmo se dará sem problemas, basta que, trancada a porta do amplo aposento de vocês, Alline passe a dormir na grande cama do abade.

Eu não me contive mais: ajoelhei-me e beijei com gratidão as duas mãos do mago Kelvin. Ele me ergueu do chão com suavidade e conduziu-me até a frente de Lucius. E então fez com que eu passasse meus braços ao redor dele.

Eu o abracei com força e me colei inteira ao seu corpo, trêmula de paixão. Foi o último instante de resistência do abade Lucinus. No segundo seguinte, o general Lucius Dracus emergiu como vencedor da longa batalha. Abraçou-me e beijou-me com paixão, pela primeira vez na vida. O druida Kelvin retirou-se para dentro de sua habitação, para deixar que nossa primeira explosão de amor e de paixão fluísse livremente, sem sua presença.

Depois de uns dez minutos, ele fez ruídos demonstrando que voltava e falou:

– De hoje em diante, general e abade, você vai dormir sozinho, até o dia de seu casamento, Sua noiva vai passar a pernoitar aqui em minha casa, para que eu possa prepará-la para a cerimônia celta. Isso é absolutamente imprescindível. Há muita coisa que esta mocinha precisa aprender sobre a vida de casada e sobre o seu próprio corpo. Eu fiz meus cálculos enquanto lhes dava tempo para  a manifestação de amor e concluí: vou casá-los no dia da próxima lua cheia, exatamente no momento do ocaso, quando o sol se põe e a lua cheia nasce. Teremos o sol na sétima casa e a lua subindo no ascendente, um bom motivo astrológico para uma união matrimonial.

E, afastando-nos um do outro, disse, para completar:

– Pode ir embora, caro amigo. Mas sua noiva fica aqui comigo a partir de agora. Mande trazer suas roupas e pertences, mas para apenas 5 dias, que é o quanto falta para o dia da lua cheia. E explique que o senhor Gilles de Troyes não comparecerá às aulas e a suas outras atividades até a semana seguinte. Que estará imerso em uma grande atividade de treinamento com seu druida. O que, afinal, será a pura realidade.

Meu general-abade foi-se embora triste e eu fiquei tremendo de paixão. Mas sabia que nosso druida estava fazendo exatamente aquilo que era o melhor para nós dois.

Nos dias seguintes, o sábio Kelvin me ensinou tudo sobre sexualidade feminina e masculina. Mostrou, fez desenhos e depois, coisa que talvez as outras pessoas veriam com malícia, mostrou-se ao espelho meu próprio sexo, que ele abriu com suas mãos, expondo à minha visão inexperta o que era cada uma daquelas partes. Depois, deixou-me ver e apalpar o próprio sexo dele em todas as suas porções, explicando como funcionaria aquilo na relação com meu marido. Instruiu-me que, neste, o órgão se tornaria rígido e dobraria de tamanho, para que pudesse entrar em mim, numa atividade que eu não devia temer como dolorosa, porque só me daria um grande prazer. E explicou que nele aquilo não acontecia naquele momento, não por ele ser velho, mas porque ele tinha total controle sobre sua energia sexual e jamais se permitiria ter uma ereção comigo, por que me respeitava como ser humano e como sua discípula, muito mais do que por ser a amada de seu amigo Lucius.

Dessa forma, eu entrei em meu casamento completamente preparada – coisa que jamais poderia esperar por parte de minha mãe – porque o druida me ensinou também, de forma teórica e com desenhos desta vez, muitas das artes e técnicas de fazer amor com um homem. Chegou a dizer que me preparava para que eu ensinasse meu marido, porque ele, como os homens em geral, não havia aprendido a associar sexo com amor profundo e espiritual. Eu teria que ser a verdadeira iniciadora dele, exatamente o contrário do que ele mesmo estaria esperando.

– Noto que você fala desses assuntos, com dois homens como nós, sem sentir qualquer embaraço ou vergonha, minha filha.

– Isso foi também o druida que me ensinou, ao retirar de mim todos os pudores e falsos moralismos que minha mãe e minha irmã tinham tentado me inculcar na mente. Ele me ensinou a ter orgulho de ser mulher, lembram-se? E, portanto, me ensinou a ter orgulho também das partes do meu corpo que me fazem mulher. E eu aprendi a lição muito bem.

– Não resta a menor dúvida, guerreira. Você é a mulher mais altiva e consciente de seu valor que eu já conheci na vida. Alline de Troyes, conviver com você, ver os exemplos que você dá quase todos os dias, me obriga a repensar minha ideias a respeito das mulheres em geral.

– Que bom, centurião Marcellus. Fico muito feliz em ouvi-lo dizer isso.

– Mas continue, por favor. Desculpe pela nossa interrupção. Sua história é fascinante até mesmo para dois indivíduos rústicos como nós.

–  Bem, então veio aquela outra parte muito importante da minha preparação, quando o druida me levou para a floresta e me ensinou a reconhecer e colher duas plantas que ele nunca me havia apresentado. Com elas, me ensinou a preparar um líquido e um pó. E, com eles, eu ganhei o controle total sobre minha fertilidade, o poder de engravidar somente quando eu quiser.

– Por Júpiter, isso é possível?

–Perfeitamente, general. Eu, por exemplo, nunca quis engravidar. Além do que, explicou-me o druida, não só eu era muito jovem ainda e podia esperar, como ele disse que não via nenhuma gravidez no meu futuro próximo, nem nas suas visões, nem no meu mapa astrológico. E Mestre Kevin era apenas infalível. Mas a verdade é que eu nunca tive vontade de ter filhos e, como ele recomendou, Lucius e eu respeitamos minha vontade.

– Jovem Alline, tudo em você e sua história é completamente diferente, foge de todos os padrões que eu tenha conhecido. Não é verdade, general?

– Sem dúvida, Marcellus. Sem dúvida. Mas prossiga, por favor.

– Então, passados os cinco dias, em que eu fui completamente preparada e o abade passou a maior parte do tempo em práticas de meditação e oração, chegou a tarde/noite gloriosa do nosso casamento. Uma cerimônia druida tocante, que Mestre Kevin celebrou em plena floresta, sob um enorme carvalho. O mago me fez vestir uma roupa matrimonial celta, branca e semitransparente, lindíssima, que ele tinha guardada entre seus pertences. A floresta foi nosso altar e o céu estrelado, nosso pálio. A lua surgiu majestosa acima das copas, apagando o esperado brilho das estrelas; e abençoou nossa união. Lucius Dracus, deixando de lado todos os temores e pruridos religiosos para sempre, se deu a mim como um amante, um cúmplice, um complemento, fez sua entrega total, seguindo as determinações de nosso mestre druida. Eu fiz exatamente a mesma coisa e nossa união foi anunciada pelo mestre como indissolúvel. Depois da cerimônia, nos despedimos do druida e fomos para nosso aposento, que funcionou, pela primeira vez, como nossa alcova nupcial.

– Notável! Chega a ser tocante mesmo, minha filha.

– Sim, eu entrei ali vestida como o senhor Gilles de Troyes e fui para a frente do espelho, colocar minha melhor roupa feminina, também ela branca e esvoaçante. Foi essa roupa que meu amado me ajudou a retirar de sobre mim, quando me tomou nos braços pela primeira vez para fazermos amor. Foi uma experiência maravilhosa, sem qualquer tipo de medo ou dor de minha parte, tão bem preparada estava eu por meu mestre para tudo. Os sentimentos e os prazeres foram muito, muito maiores do que eu poderia ter imaginado. E, daquela noite em diante, por dois anos, nós nos amamos com encantamento e paixão. Até o dia em que chegaram os invasores alamanos. Então nosso paraíso e nosso mundo de idílio e sonho desmoronaram. E, por causa disso, eu estou hoje aqui, com os senhores e seus romanos.

– Mas o que foi que aconteceu exatamente?

– Ah, senhores, uma tragédia que não quero comentar no dia de hoje. Sinto-me cansada demais para poder aguentar o desgaste dessa narrativa agora. Peço-lhes que tenham paciência, amanhã haveremos de achar uma hora boa para continuar.

– Sim, sim, minha filha, como for melhor para você. Nós nos retiramos então. Tenha uma boa noite.

– Boa noite, general. Boa noite, centurião.

E os dois oficiais romanos se retiraram para poder comentar entre si todos os incríveis acontecimentos que cercavam a vida daquela menina ainda tão jovem. E tão absolutamente notável!

Continua: A praga dos alamanos