REBECCA
MILTON MACIEL
Não sou muito de observar as
pessoas quando ando. Aliás, quando não ando também. Em resumo, não sou bom
observador. Nunca. Mas, na manhã daquela segunda-feira, andando ao Deus-dará para
exercitar as pernas, minha atenção foi chamada por uma menina no parque.
De longe, vi que ela estava em pé
junto a um banco e que tentava falar com as pessoas que passavam. Concluí que devia
estar pedindo dinheiro, pois as pessoas passavam por ela e fingiam não vê-la,
simplesmente a ignoravam. Notei que ela tinha uma carinha afligida. Ou
assustada, talvez.
Decidi que não ia ignorá-la. Eu a
ouviria e responderia delicadamente que não podia atendê-la.
De fato, quando cheguei junto a
ela, a menina falou comigo. Era branca, de perto parecia muito mais moça, não
lhe dei mais que doze anos, embora fosse alta e delgada. Tinha cabelos
castanhos muito claros, lisos, um casaquinho de linha de cor âmbar, uma saia típica
de estudante, sapatos pretos.
— O senhor pode me ouvir? — Notei
que a voz era um tanto trêmula, como se esperasse uma resposta agressiva. Ou,
como me parecera de longe, nenhuma resposta.
— Sim, claro. O que você quer?
Os olhos da garota brilharam, ela
pareceu alegrar-se com minha atenção e disse:
—Ninguém quis parar para me ouvir,
era como se não me vissem. O senhor pode me ver; pode me ouvir um instante só?
Como um gesto inequívoco de concordância,
simplesmente sentei no banco. Notei que isso a entusiasmou a falar.
Ela sentou-se a meu lado, virada
para mim e percebi então, no rosto iluminado por um sorriso de alívio, que era
como se o próprio rosto da menina fosse também iluminado por um brilho todo
seu. Estranho aquilo, pois, ao mesmo tempo, senti que aquela menina era do bem,
completamente do bem. Perguntei o seu nome.
— Rebecca. Com dois C, coisa da
minha mãe — ela sorriu com aquela carinha de gente boa e eu emendei:
—Sua idade?
—Doze anos, 6 meses e... 3 dias até
hoje. Quer dizer, até ontem. Até ontem.
Resposta esquisita, mas achei que
era resultado do seu senso de humor, pois a maneira como ela enunciava as
palavras, com uma dicção muito correta, parecia traduzir um inteligência vivaz
e, certamente, algum estudo.
—Muito bem, Rebecca, estou ouvindo.
Em que posso ser útil?
—Bem... Vai lhe parecer estranho,
eu sei, mas eu queria lhe pedir que fosse até a minha casa – é aquela ali, a de
janelas verdes, de frente pra praça, ali na altura do coreto. É pra falar algo
pra minha mãe. Algo muito importante, muito importante mesmo, mas ela não quer
saber de me escutar.
—Está brava com você, brigada, de
mal?
—Não, é outra coisa, o senhor vai
entender se for ali comigo. Por favor é um instantinho só, juro que não demora,
o senhor nem precisa entrar, basta chamar minha mãe; ela aparece e o senhor lhe
diz as palavras ali na calçada mesmo.
Claro que achei aquilo mais do que
estranho, mas se sou pouco dado a prestar atenção nas pessoas, sou um sujeito
curioso demais. E aquela situação esquisita estava me dando engulhos de
curiosidade. Fosse o que fosse, resolvi ver como é que aquilo ia terminar,
pagar pra ver.
—Muito bem, vamos então.
Rebecca saltou do banco e caminhou
à minha frente com passos tão leves como se flutuasse. Via-se que estava feliz
e aliviada com minha atitude de aceitação e cooperação. Atravessamos o pedaço
de praça e a rua e ela mostrou-me o botão da campainha.
—Agora vamos combinar o seguinte:
É uma brincadeira, um jogo, uma coisa inocente, eu juro. O senhor toca a
campainha e chama Dona Olga, bem alto. Quando ela abrir a porta, diga que veio
lhe trazer um recado da Rebecca.
—Como?! Mas que sentido tem...
—Por favor, faça isso, é fácil.
Minha mãe vai fazer que não me vê. Não ligue, é parte do jogo. E aí o senhor
repete tudo o que eu disser. Só isso.
—E aí?
—Aí o senhor vai ver a reação
dela, a fala dela, e vai entender tudo, vai compreender qual é o jogo. E, mais
importante, o senhor vai me ajudar muito, muito, muito. Por favor!
Toquei a campainha e gritei:
— Dona Olga?!
Segundos depois uma jovem mulher,
aparentando uns trinta e poucos anos e muito parecida com Rebecca, abriu a
porta e falou:
— Sim, o que o senhor deseja? — notei-lhe o cenho franzido, um ar de extrema preocupação, de sofrimento mesmo.
A casa tinha uma reentrância com
dois degraus antes da porta. Eu fiquei na calçada, como combinado com Rebecca,
e percebi que sua mãe de fato não olhava para ela.
—Vim lhe trazer um recado de sua
filha Rebecca.
A mulher foi como que atravessada
por um choque elétrico, arregalou os olhos, saltou do pórtico para a calçada e
bradou:
—Minha filha? Onde está ela, por
favor, me diga! Ela sumiu desde sexta-feira. Onde está Rebecca?! — e agarrou
minhas mãos entre as delas com uma força que chegava a machucar.
Foi a minha vez de arregalar os
olhos, surpreso. Que jogo era esse? A reação de Olga era desproposital, coisa
de atriz dramática. Voltei-me para Rebecca, procurando explicação.
A carinha dela agora não estava mais
alegre e brilhante. Estava triste, chorosa, dolorida, mas ainda assim me
parecendo muito determinada. E ela me disse:
—Fale que eu estou no pé da
escada, ao lado dela, descreva o que vê, as minhas roupas.
Bem, vai ver a Olga era mesmo atriz
e eu devia seguir com a encenação combinada. Então falei:
—Ela está aí ao pé da escada, no primeiro
degrau. Está usando um casaquinho de cor âmbar, uma saia azul marinho, sapatos
baixos de cor preta, tem um colarzinho dourado e... ah, uma fita bem pequena no
cabelo.
A mãe pareceu enlouquecer,
sacudiu-me pelos ombros, gritou comigo:
—O que você fez com minha filha,
seu monstro? Foi você quem raptou? Fale!!
Então, enfim, tudo ficou claro para
mim, quando Rebecca me disse o que falar a seguir e eu o repeti suas palavras:
—Não foi ele, mãe. Ele não me
raptou, eu não fui raptada. Eu estou em coma, mãe! Estou caída no laboratório
de química da escola, no terceiro andar. Estava lá e não vi quando fecharam,
quando quis sair não dava mais. Bati, chamei, gritei, ninguém ouviu, era sexta
de tarde, todos tinha ido embora. E eu não levo celular pra escola. E as
janelas do laboratório são seladas, por causa de furtos que fizeram lá, coisa
de drogados.
Olga apenas tremia, segurei-a
firme, pois ela podia desfalecer a qualquer instante. E continuei a repetir as
palavras de Rebecca.
—Então tive a ideia de quebrar o
vidro grande da janela da salinha de reagentes químicos. Peguei o maior frasco de
reagente que achei, um vidrão escuro com rolha de vidro. E arremessei com
toda a força contra a janela.
Aí a minha curiosidade foi quem
perguntou, Olga ainda estava em choque, entre incrédula e assustada:
— E aí? Quebrou o vidro?
—Quebrou. Só que não o da janela, deve
ser muito grosso. Quebrou aquele enorme vidro de reagente, espalhou um líquido
espesso por todo canto e, imediatamente, começou a se formar um vapor intenso,
estranho, de cheiro forte e eu... eu comecei a ficar tonta, mais tonta. E não
atinei mais em chegar à saída da sala, caí ali mesmo e... bem estou lá até
agora. Morta desde ontem... Bem, acho eu...
Quando repeti essa última frase,
eu mesmo agora estremecendo, Olga acabou de desabar em meus braços. Nessa hora,
felizmente, tive uma presença de espírito que é muito rara em mim. Avistei um taxi
na praça, fiz sinal, berrei, um homem que estava num banco da praça entrou no carro e
dirigiu rapidamente em nossa direção. Por indicação de Rebecca, dei-lhe o
endereço da escola, era perto dali.
Coloquei Olga desacordada no banco
de trás, sentei-me colocando sua cabeça no meu colo, o motorista corria o
quanto lhe permitia o trânsito, pensando que eu ia socorrer a mãe, quando em estava
indo para socorrer a filha. Afinal, Olga estava desmaiada, mas Rebecca estava...
em coma. Ou morta...
Rebecca estava no banco de
passageiro, na frente, o tempo todo. Olhava-me com olhos tranquilos, límpidos,
de gratidão.
Chegando na escola, deixei Olga
ainda desacordada com o taxista e invadi o prédio, gritando:
— Tem um incêndio no laboratório,
no terceiro andar, dá para ver da rua!
Corri pela escada mesmo, algumas pessoas
correram comigo. O laboratório estava fechado, não tinha aula de química prática
na segunda. Os que subiram comigo não tinham a chave. Meti o pé na porta com
raiva, ela desabou inteira para dentro.
Em pouco segundos voltei com o
corpo de Rebecca nos braços. Lívida, não respirava.
—Esse era o incêndio! — berrei eu,
enquanto descia pelas escadas equilibrando Rebecca.
No taxi, motorista assombrado, Olga
deitada no banco de trás, eu no banco da frente com o corpo de Rebecca inerte
em meu colo. E Rebecca, sorridente, rosto iluminado, mas iluminado mesmo, como
que emitindo uma luz esbranquiçada e suave, estava atrás, sentada SOBRE o corpo
de Olga!
Depois, estranhamente, ela surgiu
na parte da frente, levou as duas mãos ao meu rosto, mas elas passaram por mim,
não as senti. Então ela me deu um sorriso radioso, o mais lindo que eu vi em
toda a minha vida e se dissolveu em direção ao corpo dela no meu colo.
No hospital entreguei os dois corpos inertes ao pessoal da emergência. Coloquei as duas para dentro na marra, com a ajuda do taxista, Onofre o nome dele, soube depois, outro cara do bem. E fui fazer o maior estardalhaço com o pessoal da administração: não sabia o sobrenome delas, se tinham ou não plano de saúde, nada.
O que funcionou para a aceitação
das pacientes foi a história esquisita que eu contei sobre o espírito da filha,
que só eu tinha visto, e como ela me levara a todas as minha ações. Queriam
saber se eu era sensitivo, seu eu era espírita, essas coisas. Fiquei
irritadíssimo: ora, eu sensitivo, eu religioso! Era só o que me faltava.
Curioso com o que veio depois? Pois
agora é a hora de você sentar, meu camarada.
SIM! Eles reviveram Rebecca. Levou
quase um mês, mas, ela se recuperou totalmente, Olga o tempo todo ali no
hospital, ao pé da filha. E eu. Eu ia todos os dias, quando saia do trabalho, saber
da Rebecca. E ia sábado e domingo. Até que ela acordou. E continuei indo, agora também por causa da mãe.
Um mês inteiro conversando com
Olga, 36 anos, decoradora, divorciada de um patife, uma única filha. Agora eu
sei o sobrenome dela: Nogueira. O mesmo meu, é, acertou.
Coincidência? Não: eu, Paulo Nogueira,
oito meses depois, casei com Olga, o amor de Rebecca, o mais lindo sorriso do
mundo, nos uniu. Essa mesma menina que a gente veio trazer ao aeroporto agora,
que você está vendo dar tchau lá da fila de embarque. Está com 19 anos, vai
fazer faculdade na Califórnia, bolsa integral, engenharia química. Faz sete anos
que ela quase morreu. E só não morreu porque eu, que não sou sensitivo nem
nada, fui a única pessoa capaz de ver o seu espírito naquele bendito dia. Não,
nunca mais vi o de ninguém, só o dela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário