domingo, 4 de fevereiro de 2024

 ESPELHO, ESPELHO MEU

MILTON MACIEL

– Espelho, espelho meu: existe alguém mais lindo do que eu?

Hum... parece mentira, mas eu ainda estou tão bêbado que acabei de fazer essa pergunta idiota pra este espelho aqui do quarto, neste três estrelas mofado de Florianópolis.

Bem, em primeiro lugar preciso admitir que eu estou é meio bêbado... ainda. Mas na certa dei vexame, pode apostar. A última coisa que eu lembro é que estava com ela, com a... com a... no restaurante. Onze da noite? Sei lá. Caramba, qual era mesmo o nome dela?

Como será que eu vim parar de volta no hotel? Alguém me trouxe, quer dizer alguém deve ter me enfiado num Uber... Ou será que alguma alma de Deus me trouxe até aqui? Mas... como é que eu subi para este oitavo andar? E, pensando bem, eu tô só de cuecão agora.

Bem, ou eu tive capacidade de tirar toda a roupa (Lembro, estava de terno e gravata e agora tá tudo espalhado pelo chão!) ou alguém me...

Caramba, estou a meio caminho entre bebedeira e ressaca. Não lembro das coisas e já estou com dor de cabeça; e com este gosto esquisito na boca... Deve ser do que eu comi. O que, afinal?  Sei lá. Deve ter sido muito, porque tá pesando demais...

Bom, espera aí, eu falei com um espelho?! Puxa, olha só o que eu fiz. E, pior, olha só o que eu disse:

– Espelho, espelho meu: existe alguém mais lindo do que eu?

Pois nesse exato momento o espelho riu. Sim, senhor, foi o espelho, não estou mentindo! Riu, não: gargalhou. Eu não esperava, me ofendi:

– Seu abusado! Eu estou bêbado, posso perguntar o que eu quiser; e você tem obrigação de responder. Existe alguém ou não?

– Bem, já que você insiste em saber. Vejamos... cerca de 93,7 a 94,5 por cento de toda a humanidade.

– Cara de pau! Tá me chamando de feio, é?

– Tecnicamente, bem mais do que isso, convenhamos. Sabe, estatísticas não são assim tão exatas e há sempre uma margem de erro, então pode ser até um pouco pior e...

– Tá bom, cale a boca, você não se enxerga mesmo. Ora, como é que espelho vai se enxergar?. Pois você é um espelho feio pra burro também.

– Ainda bem que você usa a palavra também. Mas, pelo menos, eu sou um espelho novo. Já você...

– Eu tenho só 53 anos, pô! Tô novo, nos cascos, mulher é o que não falta pra mim. Já você...

– Ora, e você acha que falta mulher pra mim? Você não sabe que mulher tem verdadeiro fascínio por espelho?

Fechei a cara. É, essa eu tinha perdido, mulher e espelho... Mas voltei a ordenar:

– Cale-se. Eu mando, você obedece, a bebedeira é minha, faço o que eu quiser, bico calado!

O espelho gargalhou novamente. Abusado mesmo! E continuou a falar, ignorando minha ordem e meu direito de dono do devaneio:

– Tá ruinzinho, hein, cara. Você é fraco pra bebida, tá se vendo – o tom do espelho agora era mais calmo, diria até que compreensivo. Concordei com ele:

– Sou mesmo. Quer dizer, não é que eu não... Bem, o que eu não sei é quando parar. Começo certo que vou saber quando é o bastante, mas vou entontecendo devagar e aí não sei mais o que acontece.

– Danou-se, ó xente! – exclamou o espelho. Reconheci aquele sotaque enfim:

– Cara, você é nordestino.

– Fui fabricado em Campina Grande, Paraíba. Pra você ver como eu sou um espelho viajado.

Resolvi que era hora de aproveitar o tom apaziguador dele e soltei um elogio:

– Bem, até que você não é feio, não. Desculpe o mau jeito.

– Legal, camarado. Desculpe eu... quer dizer, desculpe não poder dizer o mesmo de você. Sabe como é, espelho mágico nunca pode mentir, senão quebra na mesma hora.

A essa altura achei que aquele papo estava ficando real demais e perguntei:

­– Pera aí. Você não tá falando de verdade, não é?

–– Tô, sim. Na sua cabeça, é claro. Mas, sim.

–– Mas é muito esquisito, você parece que sabe das coisas. Como pode?

–– Ora, é você que sabe das coisas, eu falo de dentro da sua cabeça. Seu inconsciente, cara! Ou seja, você é muito menos burro do que parece. Mesmo meio bêbado, como agora.

Magoei de novo. Fechei a cara. Olhei pro espelho. Aí me vi e corei: Pô, eu tinha feito beicinho, o que o cara não ia pensar de mim? Tentei forçar um riso o melhor que pude.

–– Tá bom, então eu sou menos burro, é isso?

–– É, é essa coisa de inconsciente de vocês, os humanos. Vocês são muito complicados.

–– Tá certo, concordo; acho que todo inconsciente é assim meio malucão. Ou malucão e meio. Por isso você não entende o doido. Veja a salada que ele faz com os sonhos. Quem é que compreende? O inconsciente é muito porra louca! Parece sério e esquisito ao mesmo tempo.

–– Como assim?

–– Pô, espelho, como um padre num confessionário. Mas com diarreia, sacou?

O espelho voltou a gargalhar e respondeu:

–– O inconsciente é sério e é doidão, é como um padre num confessionário, sério, mas com uma baita diarreia. É isso?

–– E não é?

––Deixa pra lá, vou dar um desconto porque você ainda está uns 33,4% bêbado.

Esse espelho paraibano tem mania de estatística, todo metido a ciências exatas, pensei.

Para minha surpresa, ele leu meu pensamento e tacou:

–– Claro, fui fabricado à máquina, não pense que algum artesão botou a mão em mim. Volte um dia aqui com uma trena laser e confira a precisão das minhas medidas.

Taí, espelho também tem vaidade... não imaginava. Mas aí lembrei de perguntar pro cara se ele sabia como é que tinha vindo parar ali no quarto; e só de cueca.

Tive certeza que, se ele tivesse cabeça, ia sacudir para os lados, em reprovação. Bom que não tinha. Mas ele me atendeu:

–– Você não lembra nada porque estava muito bêbado, mas foi uma mulher que trouxe você para o quarto. Aliás, uma tremenda de uma loiraça.

Fechei os olhos, sentei na cama com a mão na testa... não adiantou, não lembrava.

–– Uma loira alta, delgada, muito bonita, bem-vestida, distinta, uma senhora.

–– Uma coroa? –– achei que tinha lembrado algo.

–– Uma senhora distinta –– foi a resposta séria do espelho. O que seria uma senhora distinta para um espelho de hotel? Resolvi arrancar mais informação:

–– Tinha bunda?

–– Ora, e você já viu uma mulher sem bunda?

–– Não é isso! Eu quero saber se era uma mulher com bunda gostosa e...

Ele me interrompeu com mais veemência:

–– Ora, e você acha que um espelho tem como saber o gosto do derrière de alguém?

Desisti, era óbvio que espelho não entende o que é mulher gostosa, pra ele é uma coisa de paladar. Saco!

Mas, ao menos, ele continuou me ajudando a lembrar das coisas:

–– Tá bom, vou contar. Era por volta de uma da madrugada quando ela abriu a porta do quarto, carregando você escarrapachado no ombro dela. Uma mulher alta e forte, sim senhor. Ela acendeu a luz, jogou você na cama e começou a beijar você na cara, na boca, pescoço, em tudo.

–– Hein?! Que história mais maluca é essa? Como que eu não lembro?

–– Uísque, cachaça, vodca? Vinho? –– foi a única resposta do espelho.

–– Vinho... –– reconheci humilhado –– Nunca sei parar. Mas e aí, o que se deu? Eu comi essa mulher?

–– Não –– disse o espelho.

Fiquei na mesma, sem entender. Mas ele emendou:

–– Ela que comeu você, seu bebum. Deve gostar de pudim de cachaça –– E gargalhou de novo, orgulhoso de sua tirada. Bolas, um lugar-comum.

–– Ela é que me...

–– Comeu.

–– Mas como? Que história é essa? Eu sou muito do macho, me garanto muito numa cama e não tem mulher que vá...

O espelho não me deixou continuar.

–– Muito do macho? –– e riu de novo. Demais. –– Você ficava pedindo para ele apagar a luz, todo pudico.

Não tive coragem de me olhar no espelho, senti a cara ficando quente e vermelha. Puta vexame! Perguntei, meio que gaguejando:

–– E... E ela?

–– Ora, ela seguiu em frente, tirou toda a sua roupa e a dela e o resto foi como eu estou cansado de ver os casais fazerem aqui toda semana.

Hesitei, ainda mais inseguro:

–– Como todos, é? Quer dizer, eu não fiz nada de especial, de diferente? De melhor?

–– Ora, você não é melhor nem pior que os outros. Tecnicamente, pela minha experiência, você se comportou como 84,3% dos outros homens; nada muito bom, dentro da média, ou seja, medíocre. Já ela era uma competência, eu diria que nem 13,4 % das mulheres que já vi desempenharem aqui tem um comportamento tão livre e exuberante. Uma artista!

Senti de novo o peso da humilhação. O espelho não afrouxava, era seco, objetivo, matemático, não perdoava. E o pior é que ele tinha dito que espelho mágico não pode mentir!

Resolvi curtir minha derrota para a loira desconhecida em silêncio. Fiquei quieto e calado por alguns instantes. Mas o espelho sabia da minha curiosidade, da minha necessidade urgente de saber o resto da história. E não se fez de rogado:

–– Olhe, eu sei que você está com medo do que eu vou lhe contar, mas não é pra tanto. Além do que eu não preciso contar mais nada, a moça deixou uma cartinha pra você. Olhe ali sobre a mesa da sala da suíte.

Se ele tivesse dedo, sei que ele apontava. Não tinha, calou-se.

Dei um pulo da cama, fiz a volta e corri para mesa da sala. De fato, ali havia uma folha de papel dobrada em quatro, com uma mensagem escrita em caligrafia incrivelmente uniforme e simétrica, sentia-se força naquela estrutura. Abri meio enregelado. Na certa ia passar vergonha de novo, agora pra valer, com o espelho ia ser fichinha.

Imagine só: chegar bêbado de não saber o que fazer, ser carregado, despido, abusado (juro que pensei nessa palavra! Claro que é cretinice, quem não quer ser abusado assim por uma mulher gostosa? Mas bêbado... Dá vexame duplo, não opera com competência, ela opera e você nem lembra do bem bom. Cadê o clássico buraco no chão pra eu me enfiar?).

Só que não tinha como enrolar mais. Então firmei a visão e li. Li o seguinte:

“Oi, Vlado

(Não, não errei a grafia do seu nome, sei que é Valdo. Mas eu te chamo de Vlado e você vai entender o porquê daqui a pouco). Menino, você estava impossível, manguaçado de dar dó: ora me chamava de Soninha-Minha-Gatinha, ora me chamava de Conceição-Meu-Bundão.

Bem, eu não sou nenhuma, nem outra; sou a Ingrid. Ingrid Müller, caso você não consiga lembrar só pelo nome. Da Farmácia Müller, sou a dona, tá conseguindo lembrar?

A gente tá namorando, é bom você ficar sabendo. Você que me pediu em namoro. Você divorciado, eu divorciada, resolvi experimentar. Aí você veio de Blumenau e marcamos aqui em Floripa, perto da minha farmácia. Eu que escolhi este hotel pra você.

Na verdade, escolhi para nós. Porque, como eu disse acima, resolvi experimentar. E você sabe, tenho farmácia e laboratório, experimentar para mim é algo científico. Estou sempre fazendo experiências.

Então escolhi este hotel perto da farmácia para experimentar você. Sabe, para mim não funciona essa babaquice de que mulher séria não dá na primeira vez. Eu dou! Logo de primeira vou vendo se o cara é bom de cama. Se não for da primeira, não vai ser nunca mais, não tem jeito depois, não perco mais meu tempo; você sabe como ele é escasso, já expliquei.

Bem, para seu alívio posso dizer que você passou na experiência; com muitos descontos, mas concedo que foi por causa da bebedeira. Então eu lhe digo: se você fizer sóbrio metade do que acabou fazendo bêbado, você será bem-vindo esta noite na minha cama de casal, lá em casa. Apareça às 9:40 e não se atrase. E nem vá antes, porque eu só fecho a farmácia às 8 horas todos os dias. Sou a última a sair, lógico. E preciso tempo para banho, me arrumar, essas coisas de mulher.

Você se foi bem, meio encabulado, me chamando de Soninha-Minha-Gatinha. Mas foi obediente, foi fazendo tudo o que eu mandava, aproveitando, é claro, da sua bebedeira. Mas depois você foi desencabulando, ficando mais ativo e começou a me chamar de Conceição-Meu-Bundão. E aí queria porque queria me executar pelo lado reverso. E taí uma coisa que você precisa aprender, menino, um código de primeiro encontro: não tente faturar o reverso de uma mulher no primeiro encontro. Eu não dou! Meu código.

Mas, em compensação, face a sua bêbada persistência, pelo menos você ganha um apelido: Vlado, o Empalador. Ah, se você não souber a história desse romeno maluco, o tal de Vlad III, o Empalador, eu te conto hoje à noite.

Outra coisa, meu namoradinho: Você começou a comer com elegância lá no restaurante, ontem à noite. Mas bastou a terceira taça de vinho e você foi se transformando. Começou e engolir sem mastigar, a comer como um boia-fria faminto. Mais uma garrafa e você já estava bebadaço. E comendo como um porco!

Menino, como é que você consegue comer tudo aquilo? Pior, como é que você consegue comer aquilo? Quantidade assustadora de comida catastrófica. Não admira que você tenha esse excesso de peso e que sofra do intestino.

Como eu sei? Ora, na primeira folga que eu dei pra você aqui no quarto, você correu pro banheiro e fechou a porta, para eu não ver o que você ia fazer. Mas você fechou uma porta de ar, imaginária, seu tonto, a do banheiro seguiu escancarada. E aí você pegou uma cartela e engoliu dois comprimidos quase a seco. Saiu do banheiro, voltou correndo, fechou de novo a porta imaginária e tomou mais dois comprimidos.

Confesso que gelei: Esse maluco tomou quatro comprimidos de uma vez! Na primeira desmaiada que você deu, quando arriou, eu corri ao banheiro para ver se a cartela era de Viagra ou de Cialis.

Meu Deus, era de carvão ativado, aquele tipo específico para gases, flatulência! Você não estava com medo de brochar, estava com medo de peidar!

Menino, vamos ter que mudar essa sua alimentação horrorosa. Pra ficar comigo, além das condições que eu vou lhe apresentar esta noite –– depois do bem bom, tranquilize-se –– você vai ter que perder uns 20 quilos e resolver de vez esse problema de gases. Enquanto isso você pode vir morar comigo, mas o meu quarto servirá somente de alcova.

Depois do amor, você vai dormir no quarto de hóspedes, por óbvias razoes. Pelo menos até resolvermos esse seu problema crônico de gases, ou seja, até você parar de comer como um porquinho gordo.

Hoje você janta comigo. Minha casa, minha comida. Comida de verdade. Eu sou vegana, você sabe, me viu comendo ontem no restaurante. Mas você não precisa ser. Só que precisa mudar o que, o quanto e como você come.

Espero você com comidinha quente. Comida de verdade, não porcaria (porcaria é comida de porco).

Aliás, nem só a comidinha vai estar te esperando quentinha, tá entendendo?

De chegada pode me chamar de sua gatinha. Mas acho que você já deve ter entendido que as unhas da gata aqui são bem afiadas e a pata é grande e comprida.

Quanto a me chamar de Conceição... Bem, a gente ainda conversa.

Ingrid-Sua-Gatinha

Miau..."

 

Terminei de ler a carta –– era uma carta, sim, daquele tamanhão, e a danada escrevia muito bem. Fiquei um tempo parado, sem saber o que pensar. Aí ouvi um pigarro. Era o espelho. Lembrei que ele era meu facha agora e perguntei:

–– O que você acha de tudo isso? Acha que eu devo ir ao tal jantar? Cara, a mulher é mandona pra caralho, quer que eu leia a carta para você?

–– Ora, como seu eu não soubesse tudo o que está escrito ali. Já sabia antes de você ler. Seu inconsciente, cara, lembra? Todo inconsciente é isso que vocês chamam de paranormal e...

–– Mas então? Melhor não ir, cair fora, não é? Aquela coisa de gata de pata grande, unha afiada, essa mulher vai querer me botar cabresto. Viu só a hora que ela marcou? Exata! E ainda manda eu não me atrasar. Se agora no começo já é assim, imagina só depois.

Para minha enorme surpresa o espelho se saiu com essa:

–– E não é o que você precisa?

–– Eu?! Tá louco? Eu sei muito bem me determinar, mando no meu próprio destino.

–– Manda tão bem que está essa bagunça toda na sua vida, não é?

–– Como assim?

–– Ora, você é todo uma desordem, uma bagunça só. Gordo, peidorreiro, com dor nas juntas, óculos grau 4, mau hálito, fumante, sempre atrasado, procrastinador e ainda por cima...

–– Chega, pô. Chega! Quer me aniquilar de vez? Eu só tenho defeito, é, não vê todas as minhas qualidades?

–– Realismo, rapaz, realismo. Pare de se enganar. Vamos ao cômputo, é fácil. Vlado, o Empalador (e o espelho caiu na gargalhada de novo!): qualidades positivas 17,8%; negativas 82,2%. Ou seja, você é um homem bem comum, um medíocre, como eu já lhe disse antes.

–– Mas eu vou bem nos negócios, tenho um patrimônio.

–– E isso é quase todo o seu 17,8%.

Murchei.

–– É?

–– É isso aí, aceite –– o espelho era um baita dum psicólogo, afinal. Um biduzão.

–– Mas... e o que eu faço? Vou ou não vou?

–– Ora, seu esculhambado, você vai, sim. Essa mulher caiu do céu pra você, é tudo o que você precisa para entrar na linha, ganhar um pouco de vergonha na cara e de saúde no corpo. Vá lá, chegue exatamente na hora marcada e reconheça que está se colocando sob a autoridade da gata de unhas compridas. Aprenda a comer, a se exercitar, a ser pontual. A ter saúde. E deixe de ser a desgraça que você foi para a coitada da Elisa.

Gelei de novo! Elisa...a minha primeira mulher. O raio do espelho sabia tudo!!! Eu tava ferrado, porque ele tinha acabado de chamar a Elisa de coitada. Então... estava me condenando!

Pra variar, ele como que adivinhou meu pensamento:

–– Claro que estou. A culpa foi toda sua. Não reconhece?

–– Lógico que não. Num casamento que fracassa, a culpa é sempre dos dois, fifty-fifty.

–– Ah, é? quem foi que enfiou chifre em quem?

–– Bom, eu. Mas só duas... três... quer dizer, eh, quatro vezes. Só...

–– Nove. Acha que pode mentir pra mim? Eu falo de dentro da sua cabeça, já esqueceu?

–– Tá, nove então. Não tô lembrando de tudo isso, mas se você diz. Chifrei ela nove vezes e ela não me chifrou nenhuma, é isso? Hum, melhor você não dizer.

–– Duas.

–– O quê?!!! Você está dizendo que ela também me traiu? Aquela... aquela...!

–– Melhor você não dizer. Ela não merece. Já você, merece.

–– Mas com quem ela me traiu? Quando? Onde foi? Fale, desembuche!

–– Ah, agora você fica nervosinho, é? Vai dar uma de machão, de marido traído injustamente. Pois saiba que você mereceu cada guampinha que adornou essa sua cabeça meia careca. E tem mais, já que você não sabe nada, vai continuar sem saber. Não leio, não digo!

Fiquei arrasado. Então eu era um corno. Um corno, chifrudo. Eu, justamente eu! Ah, mas aquela Elisa, com aquele jeito de santinha, uma puta, uma...

–– Melhor você não pensar –– o espelho lia de novo o meu pensamento –– Você bem que mereceu seus cornos; ela não merecia, foi você quem começou. Quando estava 8 x 0 pra você, ela descobriu, quer dizer, teve certeza, teve provas. Aí ela foi à forra, só pra se vingar. Já estava 9 a 1 pra você.

–– E então...

–– Então ela tomou gosto, foi pra segunda partida dela, e ganhou. E resolveu que podia pedir o divórcio. Só que você continuou sendo você, um safado: passou ela pra trás na partilha, escondeu bens, não dividiu nem 30%. Vai negar?

Não ia. Pra quê?, o desgraçado sabia tudo, conhecia todos os meus podres. Maldita hora em que eu vim pra este hotel!, pensei.

Fez-se um longo silêncio. Achei que o espelho tinha enfim voltado ao seu natural. Afinal, espelhos não falam.

–– Eu falo –– disse a voz plana.

Bem, o resultado de tudo isso é que estou aqui em frente da casa da Ingrid, esperando o relógio marcar 9:40 pontualmente, para poder tocar a campainha. Claro, fechei a conta do hotel, não volto lá nunca mais na vida, não passo nem na mesma calçada.

Se não me acertar com a Ingrid, volto pra minha cidade. Se me acertar, bem... aí é ela que decide o que eu devo fazer. Ou melhor, que manda...

–– Tá achando o quê? Ora, vá se catar! O espelho tá com a razão. E fim de papo.

 

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