ESPELHO, ESPELHO MEU
MILTON MACIEL
– Espelho, espelho meu: existe alguém mais lindo do que
eu?
Hum... parece mentira, mas eu ainda estou tão bêbado que
acabei de fazer essa pergunta idiota pra este espelho aqui do quarto, neste
três estrelas mofado de Florianópolis.
Bem, em primeiro lugar preciso admitir que eu estou é meio bêbado...
ainda. Mas na certa dei vexame, pode apostar. A última coisa que eu lembro é
que estava com ela, com a... com a... no restaurante. Onze da noite? Sei lá.
Caramba, qual era mesmo o nome dela?
Como será que eu vim parar de volta no hotel? Alguém me
trouxe, quer dizer alguém deve ter me enfiado num Uber... Ou será que alguma
alma de Deus me trouxe até aqui? Mas... como é que eu subi para este oitavo
andar? E, pensando bem, eu tô só de cuecão agora.
Bem, ou eu tive capacidade de tirar toda a roupa (Lembro, estava
de terno e gravata e agora tá tudo espalhado pelo chão!) ou alguém me...
Caramba, estou a meio caminho entre bebedeira e ressaca. Não
lembro das coisas e já estou com dor de cabeça; e com este gosto esquisito na
boca... Deve ser do que eu comi. O que, afinal? Sei lá. Deve ter sido muito, porque tá pesando
demais...
Bom, espera aí, eu falei com um espelho?! Puxa, olha só o
que eu fiz. E, pior, olha só o que eu disse:
– Espelho, espelho meu: existe alguém mais lindo do que
eu?
Pois nesse exato momento o espelho riu. Sim, senhor, foi o
espelho, não estou mentindo! Riu, não: gargalhou. Eu não esperava, me ofendi:
– Seu abusado! Eu estou bêbado, posso perguntar o que eu
quiser; e você tem obrigação de responder. Existe alguém ou não?
– Bem, já que você insiste em saber. Vejamos... cerca de
93,7 a 94,5 por cento de toda a humanidade.
– Cara de pau! Tá me chamando de feio, é?
– Tecnicamente, bem mais do que isso, convenhamos. Sabe,
estatísticas não são assim tão exatas e há sempre uma margem de erro, então
pode ser até um pouco pior e...
– Tá bom, cale a boca, você não se enxerga mesmo. Ora, como
é que espelho vai se enxergar?. Pois você é um espelho feio pra burro também.
– Ainda bem que você usa a palavra também. Mas, pelo
menos, eu sou um espelho novo. Já você...
– Eu tenho só 53 anos, pô! Tô novo, nos cascos, mulher é o
que não falta pra mim. Já você...
– Ora, e você acha que falta mulher pra mim? Você não
sabe que mulher tem verdadeiro fascínio por espelho?
Fechei a cara. É, essa eu tinha perdido, mulher e espelho...
Mas voltei a ordenar:
– Cale-se. Eu mando, você obedece, a bebedeira é minha, faço
o que eu quiser, bico calado!
O espelho gargalhou novamente. Abusado mesmo! E continuou a
falar, ignorando minha ordem e meu direito de dono do devaneio:
– Tá ruinzinho, hein, cara. Você é fraco pra bebida, tá se
vendo – o tom do espelho agora era mais calmo, diria até que compreensivo.
Concordei com ele:
– Sou mesmo. Quer dizer, não é que eu não... Bem, o que eu
não sei é quando parar. Começo certo que vou saber quando é o bastante, mas vou
entontecendo devagar e aí não sei mais o que acontece.
– Danou-se, ó xente! – exclamou o espelho. Reconheci aquele sotaque
enfim:
– Cara, você é nordestino.
– Fui fabricado em Campina Grande, Paraíba. Pra você ver
como eu sou um espelho viajado.
Resolvi que era hora de aproveitar o tom apaziguador dele e
soltei um elogio:
– Bem, até que você não é feio, não. Desculpe o mau jeito.
– Legal, camarado. Desculpe eu... quer dizer, desculpe não
poder dizer o mesmo de você. Sabe como é, espelho mágico nunca pode mentir,
senão quebra na mesma hora.
A essa altura achei que aquele papo estava ficando real
demais e perguntei:
– Pera aí. Você não tá falando de verdade, não é?
–– Tô, sim. Na sua cabeça, é claro. Mas, sim.
–– Mas é muito esquisito, você parece que sabe das coisas.
Como pode?
–– Ora, é você que sabe das coisas, eu falo de
dentro da sua cabeça. Seu inconsciente, cara! Ou seja, você é muito
menos burro do que parece. Mesmo meio bêbado, como agora.
Magoei de novo. Fechei a cara. Olhei pro espelho. Aí me vi e
corei: Pô, eu tinha feito beicinho, o que o cara não ia pensar de mim? Tentei
forçar um riso o melhor que pude.
–– Tá bom, então eu sou menos burro, é isso?
–– É, é essa coisa de inconsciente de vocês, os humanos.
Vocês são muito complicados.
–– Tá certo, concordo; acho que todo inconsciente é assim
meio malucão. Ou malucão e meio. Por isso você não entende o doido. Veja a
salada que ele faz com os sonhos. Quem é que compreende? O inconsciente é muito
porra louca! Parece sério e esquisito ao mesmo tempo.
–– Como assim?
–– Pô, espelho, como um padre num confessionário. Mas com
diarreia, sacou?
O espelho voltou a gargalhar e respondeu:
–– O inconsciente é sério e é doidão, é como um padre num
confessionário, sério, mas com uma baita diarreia. É isso?
–– E não é?
––Deixa pra lá, vou dar um desconto porque você ainda está
uns 33,4% bêbado.
Esse espelho paraibano tem mania de estatística, todo
metido a ciências exatas, pensei.
Para minha surpresa, ele leu meu pensamento e tacou:
–– Claro, fui fabricado à máquina, não pense que algum artesão
botou a mão em mim. Volte um dia aqui com uma trena laser e confira a precisão
das minhas medidas.
Taí, espelho também tem vaidade... não imaginava. Mas aí
lembrei de perguntar pro cara se ele sabia como é que tinha vindo parar ali no
quarto; e só de cueca.
Tive certeza que, se ele tivesse cabeça, ia sacudir para os
lados, em reprovação. Bom que não tinha. Mas ele me atendeu:
–– Você não lembra nada porque estava muito bêbado, mas foi
uma mulher que trouxe você para o quarto. Aliás, uma tremenda de uma loiraça.
Fechei os olhos, sentei na cama com a mão na testa... não
adiantou, não lembrava.
–– Uma loira alta, delgada, muito bonita, bem-vestida,
distinta, uma senhora.
–– Uma coroa? –– achei que tinha lembrado algo.
–– Uma senhora distinta –– foi a resposta séria do espelho.
O que seria uma senhora distinta para um espelho de hotel? Resolvi arrancar
mais informação:
–– Tinha bunda?
–– Ora, e você já viu uma mulher sem bunda?
–– Não é isso! Eu quero saber se era uma mulher com bunda
gostosa e...
Ele me interrompeu com mais veemência:
–– Ora, e você acha que um espelho tem como saber o gosto do
derrière de alguém?
Desisti, era óbvio que espelho não entende o que é mulher
gostosa, pra ele é uma coisa de paladar. Saco!
Mas, ao menos, ele continuou me ajudando a lembrar das
coisas:
–– Tá bom, vou contar. Era por volta de uma da madrugada
quando ela abriu a porta do quarto, carregando você escarrapachado no ombro dela.
Uma mulher alta e forte, sim senhor. Ela acendeu a luz, jogou você na cama e
começou a beijar você na cara, na boca, pescoço, em tudo.
–– Hein?! Que história mais maluca é essa? Como que eu não
lembro?
–– Uísque, cachaça, vodca? Vinho? –– foi a única resposta do
espelho.
–– Vinho... –– reconheci humilhado –– Nunca sei parar. Mas e
aí, o que se deu? Eu comi essa mulher?
–– Não –– disse o espelho.
Fiquei na mesma, sem entender. Mas ele emendou:
–– Ela que comeu você, seu bebum. Deve gostar de pudim de
cachaça –– E gargalhou de novo, orgulhoso de sua tirada. Bolas, um lugar-comum.
–– Ela é que me...
–– Comeu.
–– Mas como? Que história é essa? Eu sou muito do macho, me
garanto muito numa cama e não tem mulher que vá...
O espelho não me deixou continuar.
–– Muito do macho? –– e riu de novo. Demais. –– Você ficava
pedindo para ele apagar a luz, todo pudico.
Não tive coragem de me olhar no espelho, senti a cara
ficando quente e vermelha. Puta vexame! Perguntei, meio que gaguejando:
–– E... E ela?
–– Ora, ela seguiu em frente, tirou toda a sua roupa e a
dela e o resto foi como eu estou cansado de ver os casais fazerem aqui toda
semana.
Hesitei, ainda mais inseguro:
–– Como todos, é? Quer dizer, eu não fiz nada de especial,
de diferente? De melhor?
–– Ora, você não é melhor nem pior que os outros.
Tecnicamente, pela minha experiência, você se comportou como 84,3% dos outros
homens; nada muito bom, dentro da média, ou seja, medíocre. Já ela era uma
competência, eu diria que nem 13,4 % das mulheres que já vi desempenharem aqui
tem um comportamento tão livre e exuberante. Uma artista!
Senti de novo o peso da humilhação. O espelho não afrouxava,
era seco, objetivo, matemático, não perdoava. E o pior é que ele tinha dito que
espelho mágico não pode mentir!
Resolvi curtir minha derrota para a loira desconhecida em
silêncio. Fiquei quieto e calado por alguns instantes. Mas o espelho sabia da
minha curiosidade, da minha necessidade urgente de saber o resto da história. E
não se fez de rogado:
–– Olhe, eu sei que você está com medo do que eu vou lhe
contar, mas não é pra tanto. Além do que eu não preciso contar mais nada, a
moça deixou uma cartinha pra você. Olhe ali sobre a mesa da sala da suíte.
Se ele tivesse dedo, sei que ele apontava. Não tinha,
calou-se.
Dei um pulo da cama, fiz a volta e corri para mesa da sala.
De fato, ali havia uma folha de papel dobrada em quatro, com uma mensagem
escrita em caligrafia incrivelmente uniforme e simétrica, sentia-se força
naquela estrutura. Abri meio enregelado. Na certa ia passar vergonha de novo,
agora pra valer, com o espelho ia ser fichinha.
Imagine só: chegar bêbado de não saber o que fazer, ser
carregado, despido, abusado (juro que pensei nessa palavra! Claro que é
cretinice, quem não quer ser abusado assim por uma mulher gostosa? Mas
bêbado... Dá vexame duplo, não opera com competência, ela opera e você nem
lembra do bem bom. Cadê o clássico buraco no chão pra eu me enfiar?).
Só que não tinha como enrolar mais. Então firmei a visão e li. Li o seguinte:
“Oi, Vlado
(Não, não errei a grafia do seu nome, sei que é Valdo.
Mas eu te chamo de Vlado e você vai entender o porquê daqui a pouco). Menino, você
estava impossível, manguaçado de dar dó: ora me chamava de Soninha-Minha-Gatinha,
ora me chamava de Conceição-Meu-Bundão.
Bem, eu não sou nenhuma, nem outra; sou a Ingrid. Ingrid
Müller, caso você não consiga lembrar só pelo nome. Da Farmácia Müller, sou a
dona, tá conseguindo lembrar?
A gente tá namorando, é bom você ficar sabendo. Você que
me pediu em namoro. Você divorciado, eu divorciada, resolvi experimentar. Aí
você veio de Blumenau e marcamos aqui em Floripa, perto da minha farmácia. Eu
que escolhi este hotel pra você.
Na verdade, escolhi para nós. Porque, como eu disse
acima, resolvi experimentar. E você sabe, tenho farmácia e laboratório,
experimentar para mim é algo científico. Estou sempre fazendo experiências.
Então escolhi este hotel perto da farmácia para
experimentar você. Sabe, para mim não funciona essa babaquice de que mulher
séria não dá na primeira vez. Eu dou! Logo de primeira vou vendo se o cara é
bom de cama. Se não for da primeira, não vai ser nunca mais, não tem jeito
depois, não perco mais meu tempo; você sabe como ele é escasso, já expliquei.
Bem, para seu alívio posso dizer que você passou na experiência;
com muitos descontos, mas concedo que foi por causa da bebedeira. Então eu lhe
digo: se você fizer sóbrio metade do que acabou fazendo bêbado, você será
bem-vindo esta noite na minha cama de casal, lá em casa. Apareça às 9:40 e não
se atrase. E nem vá antes, porque eu só fecho a farmácia às 8 horas todos os
dias. Sou a última a sair, lógico. E preciso tempo para banho, me arrumar,
essas coisas de mulher.
Você se foi bem, meio encabulado, me chamando de
Soninha-Minha-Gatinha. Mas foi obediente, foi fazendo tudo o que eu mandava,
aproveitando, é claro, da sua bebedeira. Mas depois você foi desencabulando,
ficando mais ativo e começou a me chamar de Conceição-Meu-Bundão. E aí queria
porque queria me executar pelo lado reverso. E taí uma coisa que você precisa
aprender, menino, um código de primeiro encontro: não tente faturar o reverso
de uma mulher no primeiro encontro. Eu não dou! Meu código.
Mas, em compensação, face a sua bêbada persistência, pelo
menos você ganha um apelido: Vlado, o Empalador. Ah, se você não souber a
história desse romeno maluco, o tal de Vlad III, o Empalador, eu te conto hoje
à noite.
Outra coisa, meu namoradinho: Você começou a comer com
elegância lá no restaurante, ontem à noite. Mas bastou a terceira taça de vinho
e você foi se transformando. Começou e engolir sem mastigar, a comer como um
boia-fria faminto. Mais uma garrafa e você já estava bebadaço. E comendo como
um porco!
Menino, como é que você consegue comer tudo aquilo?
Pior, como é que você consegue comer aquilo? Quantidade assustadora de
comida catastrófica. Não admira que você tenha esse excesso de peso e que sofra
do intestino.
Como eu sei? Ora, na primeira folga que eu dei pra você
aqui no quarto, você correu pro banheiro e fechou a porta, para eu não ver o
que você ia fazer. Mas você fechou uma porta de ar, imaginária, seu tonto, a do
banheiro seguiu escancarada. E aí você pegou uma cartela e engoliu dois
comprimidos quase a seco. Saiu do banheiro, voltou correndo, fechou de novo a
porta imaginária e tomou mais dois comprimidos.
Confesso que gelei: Esse maluco tomou quatro comprimidos
de uma vez! Na primeira desmaiada que você deu, quando arriou, eu corri ao
banheiro para ver se a cartela era de Viagra ou de Cialis.
Meu Deus, era de carvão ativado, aquele tipo específico
para gases, flatulência! Você não estava com medo de brochar, estava com medo
de peidar!
Menino, vamos ter que mudar essa sua alimentação
horrorosa. Pra ficar comigo, além das condições que eu vou lhe apresentar esta
noite –– depois do bem bom, tranquilize-se –– você vai ter que perder uns 20
quilos e resolver de vez esse problema de gases. Enquanto isso você pode vir
morar comigo, mas o meu quarto servirá somente de alcova.
Depois do amor, você vai dormir no quarto de hóspedes,
por óbvias razoes. Pelo menos até resolvermos esse seu problema crônico de
gases, ou seja, até você parar de comer como um porquinho gordo.
Hoje você janta comigo. Minha casa, minha comida. Comida
de verdade. Eu sou vegana, você sabe, me viu comendo ontem no restaurante. Mas
você não precisa ser. Só que precisa mudar o que, o quanto e como você come.
Espero você com comidinha quente. Comida de verdade, não
porcaria (porcaria é comida de porco).
Aliás, nem só a comidinha vai estar te esperando
quentinha, tá entendendo?
De chegada pode me chamar de sua gatinha. Mas acho que
você já deve ter entendido que as unhas da gata aqui são bem afiadas e a pata é
grande e comprida.
Quanto a me chamar de Conceição... Bem, a gente ainda
conversa.
Ingrid-Sua-Gatinha
Miau..."
Terminei de ler a carta –– era uma carta, sim, daquele
tamanhão, e a danada escrevia muito bem. Fiquei um tempo parado, sem saber o
que pensar. Aí ouvi um pigarro. Era o espelho. Lembrei que ele era meu facha
agora e perguntei:
–– O que você acha de tudo isso? Acha que eu devo ir ao tal
jantar? Cara, a mulher é mandona pra caralho, quer que eu leia a carta para você?
–– Ora, como seu eu não soubesse tudo o que está escrito ali.
Já sabia antes de você ler. Seu inconsciente, cara, lembra? Todo inconsciente é
isso que vocês chamam de paranormal e...
–– Mas então? Melhor não ir, cair fora, não é? Aquela coisa
de gata de pata grande, unha afiada, essa mulher vai querer me botar cabresto.
Viu só a hora que ela marcou? Exata! E ainda manda eu não me atrasar. Se agora
no começo já é assim, imagina só depois.
Para minha enorme surpresa o espelho se saiu com essa:
–– E não é o que você precisa?
–– Eu?! Tá louco? Eu sei muito bem me determinar, mando no
meu próprio destino.
–– Manda tão bem que está essa bagunça toda na sua vida, não
é?
–– Como assim?
–– Ora, você é todo uma desordem, uma bagunça só. Gordo,
peidorreiro, com dor nas juntas, óculos grau 4, mau hálito, fumante, sempre
atrasado, procrastinador e ainda por cima...
–– Chega, pô. Chega! Quer me aniquilar de vez? Eu só tenho
defeito, é, não vê todas as minhas qualidades?
–– Realismo, rapaz, realismo. Pare de se enganar. Vamos ao
cômputo, é fácil. Vlado, o Empalador (e o espelho caiu na gargalhada de novo!):
qualidades positivas 17,8%; negativas 82,2%. Ou seja, você é um homem bem
comum, um medíocre, como eu já lhe disse antes.
–– Mas eu vou bem nos negócios, tenho um patrimônio.
–– E isso é quase todo o seu 17,8%.
Murchei.
–– É?
–– É isso aí, aceite –– o espelho era um baita dum
psicólogo, afinal. Um biduzão.
–– Mas... e o que eu faço? Vou ou não vou?
–– Ora, seu esculhambado, você vai, sim. Essa mulher caiu do
céu pra você, é tudo o que você precisa para entrar na linha, ganhar um pouco
de vergonha na cara e de saúde no corpo. Vá lá, chegue exatamente na hora
marcada e reconheça que está se colocando sob a autoridade da gata de unhas
compridas. Aprenda a comer, a se exercitar, a ser pontual. A ter saúde. E deixe
de ser a desgraça que você foi para a coitada da Elisa.
Gelei de novo! Elisa...a minha primeira mulher. O raio do
espelho sabia tudo!!! Eu tava ferrado, porque ele tinha acabado de chamar a
Elisa de coitada. Então... estava me condenando!
Pra variar, ele como que adivinhou meu pensamento:
–– Claro que estou. A culpa foi toda sua. Não reconhece?
–– Lógico que não. Num casamento que fracassa, a culpa é
sempre dos dois, fifty-fifty.
–– Ah, é? quem foi que enfiou chifre em quem?
–– Bom, eu. Mas só duas... três... quer dizer, eh, quatro
vezes. Só...
–– Nove. Acha que pode mentir pra mim? Eu falo de dentro da
sua cabeça, já esqueceu?
–– Tá, nove então. Não tô lembrando de tudo isso, mas se
você diz. Chifrei ela nove vezes e ela não me chifrou nenhuma, é isso? Hum, melhor
você não dizer.
–– Duas.
–– O quê?!!! Você está dizendo que ela também me traiu?
Aquela... aquela...!
–– Melhor você não dizer. Ela não merece. Já você, merece.
–– Mas com quem ela me traiu? Quando? Onde foi? Fale,
desembuche!
–– Ah, agora você fica nervosinho, é? Vai dar uma de machão,
de marido traído injustamente. Pois saiba que você mereceu cada guampinha que
adornou essa sua cabeça meia careca. E tem mais, já que você não sabe nada, vai
continuar sem saber. Não leio, não digo!
Fiquei arrasado. Então eu era um corno. Um corno, chifrudo.
Eu, justamente eu! Ah, mas aquela Elisa, com aquele jeito de santinha, uma
puta, uma...
–– Melhor você não pensar –– o espelho lia de novo o meu pensamento –– Você bem que mereceu seus cornos; ela não merecia, foi você quem começou. Quando estava 8 x 0 pra você, ela descobriu, quer dizer, teve certeza, teve provas. Aí ela foi à forra, só pra se vingar. Já estava 9 a 1 pra você.
–– E então...
–– Então ela tomou gosto, foi pra segunda partida dela, e ganhou. E resolveu que podia pedir o divórcio. Só que você continuou sendo você, um safado: passou ela pra trás na partilha, escondeu bens, não dividiu nem 30%. Vai negar?
Não ia. Pra quê?, o desgraçado sabia tudo, conhecia todos os meus podres. Maldita hora em que eu vim pra este hotel!, pensei.
Fez-se um longo silêncio. Achei que o espelho tinha enfim voltado ao seu natural. Afinal, espelhos não falam.
–– Eu falo –– disse a voz plana.
Bem, o resultado de tudo isso é que estou aqui em frente da casa da Ingrid, esperando o relógio marcar 9:40 pontualmente, para poder tocar a campainha. Claro, fechei a conta do hotel, não volto lá nunca mais na vida, não passo nem na mesma calçada.
Se não me acertar com a Ingrid, volto pra minha cidade. Se me acertar, bem... aí é ela que decide o que eu devo fazer. Ou melhor, que manda...
–– Tá achando o quê? Ora, vá se catar! O espelho tá com a razão. E fim
de papo.
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