quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

 O INEBRIANTE AMOR    

MILTON MACIEL 

 


Olhos profundos, 

Castanhos.

São meus encantos, 

São sonhos.

 

Gestos tranquilos,

Dolentes.

São meus espelhos, 

Calmantes.

 

Passos de corça, 

Elegantes.

São meus enleios, 

Requintes.

 

Versos de amor,

Delirantes.

São meus caminhos,

Sofrentes.

 

Braços de enlace,

Carentes.

São meus refúgios, 

Famintos.

 

Lábios de cismo, 

Absintos.

São meus abismos, 

Frementes.

 

Musa perfeita, 

Inebriante.

Me faz devoto, 

Temente.

 

Me faz cativo 

E amante...

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

 A SENTINELA DO ONOFRE (Humor gaúcho, com muitas surpresas!)

MILTON  MACIEL 

Bueno, esta aconteceu quando correu a notícia que o Onofre tinha morrido. Todo mundo um dia bate com as dez. O Onofre bateu com as duas – as duas guampa no chão! 

Falseô o pé numa escadita de nada, foi ajudá a pegá um rolo de fumo na pratelera de riba, no bolicho do Clemente, e paft! Lá se veio o índio velho, com todo aquele tamanho e peso e estatelou-se no chão. De cabeça! 

Diz que fez um barulho de porongo rachando tão forte que assustô os vivente tudo que tava por lá charlando e tomando canha. Mas nunca que ele acordô mais!

Bueno, por estas banda não tem médico, tu sabe, que dirá hospital! Mandaram chamá Siá Balbina, benzedera respeitada, uma tripa coalhera velha de quase cem ano, prá benzê e vê se dava pra salvá o home. 

Mas Siá Balbina, nem bem botô a mão na testa do Onofre, garantiu, com toda a sua autoridade, maior que a de qualqué dotorzinho da cidade: "Tá morto, foi acertá as conta com o Patrão Velho lá de Cima; Pode velá e enterrá!"

Entonces levaram o Onofre pra casa mesmo e deitaram o índio velho nuns pelego no meio do galpão. É que do jeito que o home era conhecido e relacionado, ia aparecê miles de gentes pra assuntá a sentinela, tomá umas canha, contá causo, mateá e comê uma boa costela. Nunca que o Onofre ia querê que no seu velório faltasse boa carne, bom chimarrão e muita canha!

Tanta gente veio que a viúva até se animô: mandô o Terêncio buscá a cordeona, o Ademar, o violão, e barbaridade! O vanerão correu solto até de madrugada, em honra do finado, que parecia más regalado que nunca, ali espalhado nos pelego, só ouvindo as vanera, as milonga, as ranchera. E, com certeza, arriscando um olho pra dentro das saia das china dançando, que ele podia enxergá lá do chão. Tu precisava vê a cara de feliz do índio velho. Oigalê, velório animado!

Quando se alembraram que tinha que enterrá o defunto, tão distraído tava todo mundo com o baile e com a charla, que o dia já tinha acabado há muito tempo. E a noite também. Não dava pra segui o enterro, já era mui de madrugada. E, pra maior dos pecado, desabô o maior temporal, horas e horas de chuva da grossa que era um causo mui sério.

Não dá, disseram uns, se abrí cova, enche de água na mesma hora, o finado não havéra de gostá, ia pensá que morreu afogadoNão dá, falaram outros, não se pode enterrá cristão em noite alta, vira boitatá! Não dá, disseram mais outros aindaaliás a maioria, que é pecado pará o baile agora que ta tão bom, o falecido não havéra de gostá. Concordaram todos.

Bueno, entonces seguiram com o baile e, como a toda hora chegava mais gente e as carreta com as guria e as china não pararam de cruzá pela portera a tarde toda, tiveram que tirá o Onofre do meio do galpão, que tava atrapalhando. 

E também que tava levando muita pisotada de bota e espora, que os índio já tava tudo mui mamado e dançava a  lo loco nomás, a toda hora eles tropicava e pisava em cima do defunto sem querê. Os mais borracho dançavam uns com os otro, crente que bailavam com mulher, achando que o poncho do otro vivente era o vestido da china. Por aí tu vê....

Aí não houve outro jeito, tiveram que jogá o Onofre do lado de fora, na chuva, pra mode ele não atapalhá o salão de baile – o galpão. Acomodaram o índio velho debaixo de uma carreta, no barro mesmo, que não valia a pena sujá os pelego. De manhã, antes de levá pra cova, jogava-se uns dois baldes d’água no bruto e pronto: lá ia s’imbora ele, limpito nomás, pra baixo dos sete palmo, todo feliz e orgulhoso da grandeza do seu velório.

Bueno, pensando bem, por que velório? Pois se não tinha vela nenhuma, nem gentes de rezas por ali, todo mundo mui animado bebendo, comendo e dançando. Tinha era um monte de lampeão a querosese e a única vela que acenderam, foi um toquinho pro Negrinho do Pastoreio, pra ele ajudá a achá a pá cavadera boa, pra hora de abri a cova, que  tava sumida. E claro que o Negrinho achô!

Mas aí aconteceu uma cosa que acabô com aquela alegria toda da morte do Onofre. Pois não é que o Terêncio, que o que tinha de bom gaitero tinha também de borracho, já tinha mamado uns dois litro de canha? Entonces teve uma hora que ele não aguentou más e desabô, com cordeona e tudo, no chão. Ainda tocô uma última marca deitado ali mesmo, mas depois se apagô. 

Dormiu que nem com um monte de pontapé nas costela acordava mais. Aí o Ademar largô o violão e foi vê se ainda podia corrê umas china, já que o ruim de sê tocador é que tu só pode ficá vendo os outro apertá as mulher e tu mesmo não pode fazê nada!

Entonces, como já devia sê pra lá de três da madrugada, o pessoal, sem a música pra dançá, acabô se desanimando e as canha foram fazendo mais efeito ainda, porque eles tava tudo de corpo quente e pararam de dançá. Não deu nem meia hora e todo mundo tava dormindo embolado por ali. 

A única coisa que lembraram foi que a viúva do Onofre deu uns grito com os home antes de dormí, que ela não queria sem-vergonhice na sentinela do marido, mandô os home desafastá das guria e das china. E eles que não se fresqueassem, que o Onofre na certa tava olhando tudo ali de riba. Bueno, deu certo, que os bagual e os maula se aquietaram e foram dormi mais pro canto dos arreio. As mulher se espalhô nos pelego do Onofre e nas carreta adonde vieram.

Entonces o dia amanheceu, mas nada do povo acordá cedo pra tocá o enterro do Onofre, que já devia de tá impaciente pra ir s’imbora pra nova morada lá em cima. Só lá pelas sete, com o sol já meio alto naquele verão, é que a indiada começô a levantá e a corrê pra trás dos tronco das árvore, pra descarrega as bexiga. As mulher, a viúva teve que levá pra perto de casa e elas formaram fila pra usá a casinha, cosa que muitas não agüentaram esperá e entonces se desapertaram por ali mesmo, no meio dos eucalipto.

Aí, é claro, o pessoal tava com fome e com sede, entonces botaram as chalera nas trempe de novo, pro chimarrão, fizeram fogo e já aproveitaram pra assá mais umas costela, que era aquilo o café da manhã naqueles tempo. 

Quando terminaram de mateá e trinchá os dente nas carne, era bem pra lá de nove e meia. Bueno, era hora de pegá o Onofre e levá pro campo em frente ao potrero, que ali é que iam fazê a cova do bruto. Mas o home tava sujo barbaridade, era um barro só, que nem dava pra vê o rosto debaixo de tanta lama. O bueno é que, ao menos, tinha parado de chovê.

O Aldrovando pegô dois balde grande e foi pro poço, puxá água pra lavá o defunto. Ô, água más fria aquela, tchê! Em pleno verão, parecia gelo. Coitado do Onofre, ia ficá incomodado de levá aquela água gelada pelas fuça. Mas não tinha otro remédio. 

O Gaudêncio veio ajudá e jogô o primero balde no defunto, depois de puxá ele pelas perna de debaixo da carreta O barro respingô pra tudo que é lado, a barba e a cara do Onofre ficô quase limpa, mas sujô uma barbaridade de gente que tava assuntando a lavação ao redor.

Aí o Aldrovando se achegô e falô: "Desculpe, meu padrinho, mas é por boa causa". E jogô o outro balde de água gelada. Pra quê!

Pois nessa hora o Onofre deu um pulo, incomodado com a água fria, pos-se de pé na mesma hora e gritô um monte de palavrão. Cuepucha, que foi só paisano espirrando pra tudo quanto é lado!!!

Uns deitaram a corrê pro potrero, pegaram os cavalo sem arreio, pularam em pelo mesmo e saíram a galope berrando com as montaria, tudo trocada, não importava quem era o dono do cavalo. As mulher que estava por perto nem fugiram. 

Umas quantas desmaiaram na mesma hora, as outra tão ocupadas estavam em gritá, que não pararam mais de fazê isso, até que o Aldrovando, quase ensurdecido, sacô do revólver e deu seis tiro pro ar.  

Funcionô, que o cagaço foi maior e a mulherada parô de berrá! E os guasca que não tinha fugido ainda, pararam pra olhá o que era o tiroteio. E foi aí que o Aldrovando botô as cosa no lugar:

– Seus burro, suas égua, vancês não vê que o padrinho não morreu?! Que ta vivinho da silva aqui na nossa frente!

– Que eu não MORRÍ?! Mas que barbaridade cabeluda é essa, compadre? Me explica o que faz todo esse povo todo aqui na estância, numa hora dessas da manhã.

Compadre Gaudêncio, feliz da vida, correu a abraçá compadre Onofre e começou a contá o que tinha acontecido. O Onofre mal que acreditava.

– Sim senhor, iam me enterrá vivo, que barbaridade! Então eu dei uma chifrada no chão lá no Clemente, apaguei e vocês já acharam que eu tava morto, seus maula!

– Foi Siá Balbina, padrinho. Foi ela.

Mas nessa hora a gritaria recomeçô, que agora era a viúva que tava chegando, foram contá a novidade pra ela em casa, que ela tava se emperequetando toda pro enterro e tentando lembrá como é que se fazia as choradera e os grito na hora das pá de terra. Quando chegô e viu que o Onofre tava vivo, ela soltô as gritaria da despedida mesmo, que era o que ela tinha ensaiado. 

Se agarrô no marido e fez um tal berrero de "me leva junto" que o Onofre perdeu a paciência e deu-le um pisão com toda a força com o tacão da bota, enlameando todo o chinelo novo e amassando o pé da mulher. A viúva, qué dizê, a mulher do Onofre, deu um baita dum grito de dor e parô na mesma hora a ladainha.

– Caturrita! – ainda rosnou o Onofre entre os dentes.

Mas foi aí que ele se deu conta de toda a barbaridade, da cosa más estranha que tinha se passado com ele. E alegrou-se! Mandô acendê os fogo tudo de novo, que o gaitero tocasse (o do violão, nessa hora, tava na casinha), mando buscá más carne pro churrasco e más canha e aí foi o Onofre que mateô, charlô, churrasqueô e dançô o resto da manhã e a tarde intera com as china e com as guria. Tinha que festejá! 

E como! Pois se estivera a ponto de ser enterrado vivo...

 


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

 SER FELIZ É SABER OLHAR PARA  TRÁS -  

E saber AGRADECER. Mas é também
olhar para a frente e NÃO TER MEDO!
MILTON  MACIEL

O verdadeiro amor, por exemplo, está muito mais em ter tido a felicidade de partilhar doces e duros momentos, os altos e baixos do simples dia-a-dia; está muito mais no acumular de experiências e vivências, que constroem um passado de compreensão e tolerância, amizade e carinho, em que pese termos vivido desencantos e desilusões, arrufos e brigas, porque isso é simplesmente o NORMAL da vida.

As pessoas nem sempre percebem que ser feliz é OLHAR PARA TRÁS. Ao contrário..., elas tendem a ficar infelizes com um veneno chamado MEDO DO FUTURO, medo de perder. Só que aquilo que você já tem dentro de si não pode mais ser perdido. É tesouro. É Indestrutível. Uma relação pode acabar, o afeto de amanhã pode mudar. Mas tudo o que foi vivido não muda, está guardado para SEMPRE, per omnia secula seculorum. Portanto, ser feliz é, acima de tudo, um estado contínuo de GRATIDÃO pelo que de bom já vivemos na vida. E isso, certamente, todos nós tivemos e muito.

Quantos são os que dizem, merecidamente: EU ERA FELIZ E NÃO SABIA. Pois é, isso é bem do ser humano: não saber reconhecer um estado de felicidade que está escondido numa aparente calmaria, num dia-a-dia sem sobressaltos, sem eventos novelescos e excitantes. Foi pensando nisso que um dia escrevi um poema muito simples(*), mas que retrata essa realidade, a qual fica oculta aos olhos das pessoas no dia-a-dia de suas vidas agitadas, em que elas não se permitem reconhecer a sutileza dos bons momentos que permeiam os menos agradáveis – a porque a VIDA É ASSIM, simplesmente.

Contudo, é da natureza humana, por causa do EFEITO SOMBRA que ataca do fundo do inconsciente, dar um peso diferente aos momentos infelizes, muito maior do que o atribuído aos momentos felizes. É o mesmo fenômeno que faz os jornais e os telejornais estamparem as desgraças e os crimes, as baixarias e as fofocas, preferencialmente a outros temas. Isso vende jornal, isso faz as TV’s faturarem horrores com excrescências tipo BBB. De uma certa forma, nós estamos preparados para o que é ruim, esperamos por ele, pela mediocridade inclusive
.
As pessoas não costumam – porque ninguém lhes ensinou isso – apreciar a felicidade que está no que já passou, de onde nasce o sentimento de plenitude que se chama GRATIDÃO. Exatamente por causa desse que é, como Jung tão bem o demonstrou, o maior medo dos seres humanos: O MEDO DE SOFRER!  É por medo de sofrer que nós deixamos passar muitas das melhores oportunidades na vida. E deixamos de nos livrar de relações negativas, quer na família, no trabalho ou no amor. E deixamos de encetar outras tantas relações novas. Em suma, como ser humano, VOCÊ MORRE DE MEDO DE SER INFELIZ. MORRE DE MEDO DE SOFRER. MORRE DE MEDO DE PERDER.

Um dia Clarice Lispector perguntou a Hélio Pelegrino, o grande psicanalista brasileiro: Viver é bom?

A resposta de Hélio Pelegrino ela anotou e colocou em livro:

“Viver, essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos alguma coisa de extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder acumula ferrugem nos olhos e se torna cego – cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom --se torna fascinante."

(*) ODE A UMA DIA COMUM
MILTON MACIEL

Ontem não aconteceu nada,
Foi só um dia comum.

Ontem nada foi certo;
Porém, nada deu errado.
Se nada teve conserto,
Nada também foi quebrado.

Tive alegrias? Que nada!
Mas nada me incomodou.
Fiquei chateado? Que nada!
No entanto, nada mudou.

Nada de novo na esquina,
Nada fugiu da rotina.
Nada houve de horroroso...
Que dia MARAVILHOSO!!!

ODE A UMA DIA COMUM

MILTON MACIEL

 


Ontem não aconteceu nada,

Foi só um dia comum.

 

Ontem nada foi certo,

Porém nada deu errado.

Se nada teve conserto,

Nada também foi quebrado.

 

Tive alegrias? Que nada!

Mas nada me incomodou.

Fiquei chateado? Que nada!

No entanto, nada mudou.

 

Nada de novo na esquina,

Nada fugiu da rotina.

Nada houve de horroroso...

Que dia MARAVILHOSO!!! 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

 CONVERSA DE GENTE LOUCA

(Ou: EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS EM PORTUGUÊS)

MILTON MACIEL

O pai mandou o filho de 10 anos procurar por um vizinho. A esposa dele atendeu e disse: 

Ele NÃO SE ENCONTRA, deve estar MATANDO TEMPO por aí, ENCHENDO LINGUIÇA, como se a vida fosse UM MAR DE ROSAS.  Mas é um CABEÇA-DURA, se quer algo mesmo, aí vai de CECA A MECA até conseguir. Só que anda sempre COM A CORDA NO PESCOÇO, fazendo coisas SEM PÉ NEM CABEÇA, que ATÉ DEUS DUVIDA. E a gente é que PAGA O PATO. Mas agora ele BOTOU AS BARBAS DE MOLHO, pediu ajuda, entendeu que UMA MÃO LAVA A OUTRA.  

Anda mais paciente, não se importa de TOMAR CHÁ DE CADEIRA, de ficar ENGOLINDO SAPO. Só que às vezes ainda FICA FORA DE SI e, nessas horas costuma ABRIR O JOGO, sem FAZER RODEIOS, é um SAI DE BAIXO. Ele é atrapalhado, vive TROCANDO AS BOLAS, mas logo, logo está PENDURANDO A CHUTEIRA. Imagine só, uma vez ele foi TIRAR ÁGUA DO JOELHO em plena rua, imagine! Aí um cara não gostou, acabou QUEBRANDO O MAIOR PAU e ele ENTROU PELO CANO.

Pois é: ponha-se no lugar da criança e considere se o que a mulher falou não é uma coisa de gente maluca! O menino voltou para casa e foi falando ao pai o que entendeu daquela conversa doida toda:

Pai, o seu Otávio está viajando, vai de Ceca para Meca, pelo mar cor de rosa, mas está perdido, ele não se encontra. Parece que antes ele não foi no rodeio porque teve que abrir um jogo. Caiu molho na barba dele, e aí ele ficou fora dele mesmo, por isso é que não se encontra também. Ele foi ver se conseguia matar o tempo a cabeçadas, com a cabeça dura dele. Mas quase ficou sem essa cabeça (e o pé), porque estavam puxando uma corda no pescoço dele. Acho que ele anda doente, porque anda tomando chá de cadeira. Ele gosta de comer sapo e pato, que ele compra, mas é a mulher dele que tem que pagar o pato. Ele joga futebol, mas não gosta das bolas que compra, vive trocando e tem a mania de pendurar as chuteiras no vestiário. E ele tem problema de água no joelho, não pode jogar muito, não sai de baixo e usa uma mão para lavar a outra. Uma vez quebrou um pau por onde ele estava passando e ele caiu dentro de um cano grandão. Acho que é isso. Ah, e ela disse que Deus anda com dúvidas, mas eu não entendi bem por que... (MM)

Ele não se encontra, deve estar matando tempo por aí, enchendo linguiça, como se a vida fosse um mar de rosas.  Mas é um cabeça-dura, se quer algo mesmo, aí vai de Ceca a Meca até conseguir. Só que anda sempre com a corda no pescoço, fazendo coisas sem pé nem cabeça, que até Deus duvida. E a gente é que paga o pato. Mas agora ele botou as barbas de molho, pediu ajuda, entendeu que uma mão lava a outra.  Anda mais paciente, não se importa de tomar chá de cadeira, de ficar engolindo sapo. Só que às vezes ainda fica fora de si e, nessas horas costuma abrir o jogo, sem fazer rodeios, é um sai de baixo. Ele é atrapalhado, vive trocando as bolas, mas logo, logo está pendurando a chuteira. Uma vez ele foi tirar a água do joelho em plena rua, imagine! Aí um cara não gostou, acabou quebrando o maior pau e ele entrou pelo cano.(MM)

 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

 ASSINTO QUE VOCÊ PARTA

MILTON MACIEL


Assinto que você parta,

pois sinto você de mim,

assim,

tão farta!

 

Assente fique que eu compreendo.

Ah, sente meu coração, sofrendo,

o acento lúgubre de sua ausência.

 

Assento então minha resistência:

Hei de sobreviver,

mas, não, viver.

Não mais vir ver

seu rosto amado.

será inclemência,

dor, penitência...

E tudo quanto

eu receber

será meu fado.

 

Assinto que você parta.

Assente fique que eu compreendo...

domingo, 18 de fevereiro de 2024

 FELIZ ANIVERSÁRIO, PLUTÃO

MILTON MACIEL

Foi num 18 de fevereiro, mais exatamente no ano de 1930, que o jovem Clyde Tombaugh, 24 anos (foto), então ainda sem nenhum treinamento formal em Astronomia, descobriu o planeta Plutão. Foi no Observatório Lowell, em Flagstaff, Arizona, usando um modesto telescópio de 33 cm.

A descoberta de Plutão nasceu de um erro e de uma obstinação. Obstinado o jovem Clyde, determinado a encontrar um planeta desconhecido na região do céu que era indicada pelos cálculos do famoso astrônomo norteamericano Percival Lowell, fundador do Observatório de Flagstaff, onde falecera 14 anos antes (1916), aos 61 anos.

Nos seus 8 últimos anos de vida, Lowell, um matemático por formação, obstinou-se em estimular a procura, pelos astrônomos, de um novo planeta, na região do céu que seus cálculos apontavam. Isso devido aos efeitos que um outro astro desconhecido, então chamado planeta X, provocava sobre a órbita de Netuno.

Mas os cálculos de Lowell estavam errados, constatou-se depois. Contudo, o jovem Clyde acreditava neles, contratado que fora para esquadrinhar diariamente aquela região do céu, em Flagstaff, comparando chapas fotográficas. E então aconteceu o impossível: o Planeta X estava efetivamente na região apontada pelos cálculos equivocados de Percival Lowell!

“Atualmente, a maioria dos cientistas concorda que o Planeta X, como Lowell o descreveu, não existe. Em 1915, Lowell fez previsões da posição do Planeta X, que foi próxima da posição real de Plutão naquela época; no entanto, Ernest W. Brown concluiu que isso foi apenas uma coincidência.” (The Astronomical Society of the Pacific)

Clyde tornou-se astrônomo profissional, descobriu diversos asteroides e empenhou-se em pesquisas científicas sérias sobre OVNIs, sendo o primeiro astrônomo de renome a confirmar ter feito avistamentos pessoalmente.

Tombaugh faleceu em 1996, aos 90 anos de idade. Nove anos depois, foi lançada de Cabo Canaveral a sonda espacial New Horizons, construída especificamente para sobrevoar o planeta Plutão. E ela levou, junto com todo os seus equipamentos, nada menos que as cinzas de Clyde Tombaugh, que manifestara, pouco antes de morrer, o desejo de ter suas cinzas levadas ao Espaço. A New Horizons fotografou Plutão no seu sobrevoo do dia 14 de julho de 2015, a 12 500 Km de distância, após 9 anos e meio de viagem.

Passando Plutão, a sonda segue cada vez mais para fora no Cinturão de Kuiper e, após sobrevoar e fotografar o objeto 486958 Arrokoth, vai sair do sistema solar. Clyde Tombaugh será, assim, o primeiro ser humano a ter suas cinzas levadas para fora do sistema solar.

Sabe-se hoje que Plutão não tem apenas Caronte como seu satélite, mas que tem também outras luas menores: Nix, Hidra, Cérbero e Estige.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

 PARA QUEM VOCÊ ESCREVE?

MILTON MACIEL

Comecemos pela cozinha, onde eu, por sinal, sou péssimo. Você vai fazer um arroz com legumes a la carbonara. Vai usar a receita de sua falecida avó, porque ela é a que mais satisfaz o seu paladar.

 Horas depois você a está servindo a seus familiares e convidados. Sua sogra incluída. O pessoal se divide. Uns adoram, outros devoram por pura fome, uns comem por cortesia, outros disfarçam dizendo que estão de regime. 

Sua sogra não gosta. Ela é a crítica. E ali, na frente de todos, desanca o seu arroz à carbonara, mostrando o que, para ela, são os seus erros óbvios.

Ela é a crítica, já disse. E se você também for, já aviso: esse tal arroz com legumes à carbonara não existe. Eu é que inventei – não a receita, só o nome. Até porque, se depender de mim, todo arroz deveria ser, obrigatoriamente, à carreteiro. Que eu não sei fazer, é óbvio. Na verdade, só sei fazer – e bem feito, como gaúcho da fronteira que sou, ainda que hoje arranchado nesta Europa – um acompanhamentozinho simples para esse arroz: churrasco de costela, picanha e linguiça.

Pois é, para quem você fez o arroz? Para todos, é óbvio. Mas fez qual receita: aquela de que você mais gosta. E gostos são tão diferentes quanto são diferentes as pessoas. Logo, se você fez o arroz para agradar a todos, não podia dar certo mesmo. 

Você vai agradar muito algumas pessoas e pouco a outras. Vai desagradar a mais algumas e ainda vai ter que passar pela avaliação do crítico de gastronomia de plantão. No caso, sua sogra.

Agora vamos fazer uma troca. O que você está cozinhando – e dificilmente será na cozinha – é o seu LIVRO. Para quem você o está preparando? Para TODOS? Pois então prepare-se para a mesma recepção que seu arroz à carbonara recebeu. Agrada a uns, desagrada a outros, uns amam, outros odeiam e, ainda por cima, os críticos vão fazer o papel para o qual foram projetados.

Isso nos leva ao fundamental ponto de partida, que tem que ser definido antes que você comece sua obra. Para QUEM você escreve?

A tendência do escritor, ainda mais do inexperiente, é pensar que está escrevendo para todos. Ora, esse todos simplesmente não existe, é impossível! Você terá um tema e um estilo. O tema jamais interessará a todos e seu estilo jamais agradará a todos. 

Por causa do seu tema e do seu estilo, você escreve sempre para um NICHO de leitores, um nicho do mercado. Veja o exemplo dos mais bem sucedidos vendedores da atualidade, como Tolkien, Rowling ou Paulo Coelho. Eles têm legiões inteiras de leitores e admiradores, vendem milhões de livros mas... são também detestados por outras legiões inteiras.

Então prepare-se, é assim que a coisa funciona. Joan Rowling, depois de pastar meses a fio na maior dureza, escrevendo sua história do bruxinho Harry Poter em trens e lanchonetes, não conseguiu que nenhum editor aceitasse publicar seu livro. 

Até que um deles, que não achou graça nenhuma no que leu, deu o primeiro capítulo para sua filha de 12 anos ler. No outro dia a garota já o tinha devorado e pedia entusiasmada para ler o resto do livro. Estava ali o nicho para o livro, o esperto editor percebeu na hora. Bem, o resto é História...

A primeira pessoa que você tem que agradar é você mesmo. Você tem que ter prazer, entusiasmo, para poder perseverar na criação da sua obra. A seguir, defina o seu nicho e adapte-se a ele. Nunca escreva pensando em seus colegas escritores, em meio acadêmico, em crítica. Escreva pensando no seu público leitor, no seu particular nicho. Nas filhas adolescentes dos editores, se você se chama Joan Rowling ou escreve ficção Jovem Adulto. Entenda: seus colegas escritores, o meio acadêmico e os críticos...  não vão comprar seus livros! Se Paulo Coelho tivesse pensado em agradar àqueles ou tivesse temor da crítica desfavorável, jamais teria chegado a um centésimo do que alcançou.

Pois então escolha se você quer ser Marcel Proust ou Paulo Coelho. Ou, muito melhor do que ser eles, ser você mesmo. E mantenha-se firme, persevere. Aí escreva só para você e para o seu público leitor. Os outros que se danem, mande-os para aquele lugar, não são eles que vão pagar as suas contas. Mas seus leitores vão! 

São eles e só eles os seus legítimos patrões. E, como diz o ditado argentino que adoro repetir, “el que paga que lo mande”. Dê bastante atenção a essa gente boa – para você muito boa! – que vive por aí, espalhada por todo este vasto mundo, e se pergunte: Caramba, quem se dispõe a gastar do seu dinheiro para comprar o que eu publico?

Pois é nesta gente boa que você tem que se centrar. Conheça a fundo como são essas pessoas, do que elas gostam, por que compram os livros que você escreve. Conheça-as pessoalmente, fale com elas nas feiras de livros, nos eventos, nos lançamentos, nas suas palestras; e, nacional e internacionalmente, com enorme facilidade, pela Internet. 

Cultive o seu público e procure se preparar cada vez mais para prestar a essas pessoas um serviço cada vez melhor, levando-lhes entretenimento, emoção, informação e educando-as enquanto leitoras, sem querer se fazer grande às custas dos seus leitores, arrotando erudição desnecessariamente para cima deles. E, ao mesmo tempo, sem nivelar por baixo.

Se você quer ser um escritor que vende livros, pense nisto em primeiro lugar: PARA QUEM VOCÊ ESCREVE?

 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

 O  ‘GRANDE ESCRITOR’ NESTE PAÍS

MILTON MACIEL 

Atualmente a realidade do mercado de livros é bem diferente. O ‘Grande Escritor’ é previamente escolhido em dois palcos apenas: o do marketing e o dos concursos literários, sendo que este se subordina totalmente àquele.

Como consultor, atuo há 3 anos como editor de aquisição e de desenvolvimento, assim como ghostwriter, para uma editora muito grande de São Paulo. Quando ainda estava no Brasil, participei de reuniões presenciais em que decidíamos quem seria transformado em ‘Grande Escritor’ – ou seja, em bestseller. Hoje, só participo online.

Na Editoria fazemos a avaliação do potencial do texto e o Marketing faz a avaliação do potencial do candidato e do nicho específico. Se o Marketing dá o sinal verde, faz-se o acolhimento e o pré-contrato. E a obra entra em lapidação:

Um dos editores de desenvolvimento reordena e recorta boa parte do texto, tornando-o o mais alinhado possível às exigências específicas do nicho, pois um desalinhamento será sempre fatal para as vendas depois. E, inúmeras vezes, um ghostwriter vai reescrever o texto com competência literária e, ao mesmo tempo, mercadológica.

Aprovado o produto lapidado, a arte cria uma capa altamente profissional, de novo adequada aos cânones rígidos do nicho. E são feitos os textos mortalmente vitais de capa, orelhas, última capa e Blurbs, bem como as adequações das palavra-chave, igualmente mortalmente vitais, que permitirão que o livro obtenha um alto ranking de encontro na Amazon, outras livrarias online e motores de busca (SEO) – sem o que vamos ter fracasso de vendas.

Tudo isso exige muito conhecimento técnico especializado e muito investimento. E a casa publicadora só vai apostar em cavalo vencedor, porque vai ter que colocar muito, muito dinheiro adiantado e, depois de feita a publicação do livro impresso, ainda vai ter que gastar muito nos fronts das livrarias das grandes redes, espaços pagos também muito caros.

Vai daí que esses senhores investidores, no que tange ao mercado de FICÇÃO, prefiram mais de 85% de textos ESTRANGEIROS, que já se mostraram geradores de bons lucros lá fora. Há o custo da tradução, o preço da aquisição é maior, porém... o retorno é garantido e generoso.

Então fica muito difícil para o autor nacional virar bestseller, condição sine qua non para atingir o status de ‘Grande Escritor’ – que deixou de ser um título de qualidade, para se tornar um medidor de quantidade: quantidade de livros vendidos, condição obrigatória de ser bestseller.

Por outro lado, os concursos são manobrados pelas grandes editoras, sendo o nosso maior, o Jabuti, uma grife da Câmara Brasileira do Livro, uma organização de editores e livreiros de grande porte. Não digo que os julgamentos sejam feitos na base do conchavo ou da roubalheira, mas que os padrões comerciais criam uma norma e dentro dela é que esses livreiros e editores escolhem – e pagam – aqueles que serão os jurados.

E, como dizem os argentinos “El que paga que lo mande”.

Assim, tendo máxima ou relativa qualidade o texto, acaba sendo o potencial mercadológico que dita, na imensa maioria dos casos, quem será ‘Grande Escritor’ neste começo de século XXI.

Termino pedindo perdão às colegas por seguir a norma machista da língua; subentenda-se que  ‘Grande Escritor’ quer dizer também ‘Grande Escritora’ (MM, 13/02/24)

domingo, 11 de fevereiro de 2024

 SCHILIKMANN E A RAINHA DE SABÁ

Ou: o racismo punido na hora! (CONTO)

MILTON MACIEL

Sede da Teles Automóveis, revenda de carros de luxo e importados em Amarante, Santa Catarina. A equipe de venda é formada por quatro mulheres deslumbrantes, altamente treinadas e muito competentes.

Jennifer, a vendedora que chegara horas atrás de Ribeirão Preto, junto com sua colega Paula, não era loira, nem morena, nem mulata. Jennifer era NEGRA! Sua pele brilhava naturalmente, com um preto quase azulado, lindo de se ver. E, como todas as quatro vendedoras da equipe da Teles, era uma mulher de uma beleza impressionante.

Traços africanos característicos, uma boca carnuda que era puro rasgo de sensualidade, alta de um porte altivo e elegante, uma bunda cinematográfica, a maior da equipe. O torneado das pernas era também uma coisa de cinema. Tudo nela inspirava classe e superioridade natural, sem qualquer pose ou afetação. Carmen De Rios, a gerente geral, gostava de chamá-la “minha Rainha Negra”, “Rainha de Sabá”, “Deusa Africana”. 

Até porque, muito mais do que isso, Jennifer tinha algo que a fazia a favorita total de sua chefe: Jennifer era uma mulher muito culta. Formada e doutorada em Letras, tinha sido antes professora de inglês em escolas secundárias e depois professora universitária em Ribeirão Preto, especializada em literatura portuguesa de Portugal e das ex-colônias. Trabalhava, nas horas vagas, como tradutora e escrevia contos, que esperava poder publicar um dia, quando achasse que atingira a maturidade que visava.

Mesmo assim, os seus proventos eram muito limitados. Só soube o que foi ganhar dinheiro de verdade quando, a instâncias e insistências de Carmen, começou a trabalhar na Teles Automóveis de Ribeirão Preto, como vendedora.

Em pouco tempo, uma espécie de Miss Simpatia nata e uma incontestável Rainha Africana, tornou-se, também ela, uma das campeãs de vendas. 

Agora, como Paula e as duas De Rios, preferira transferir-se para a filial de Santa Catarina, em Amarante. Naturalmente, muitas vezes enfrentava problemas com racistas. 

Era isso o que Gládis De Rios, subgerente da loja e filha de Carmen De Rios, queria testar agora. Teve um lampejo de inspiração e fez sinal para Jennifer, que estava entrando na loja naquele momento, para que ela atendesse Adolfo Schlikmann. Lamentou pela colega, mas precisava ver se aconteceria o que estava imaginando. Seria uma lição e tanto! 

Quando aquela negra alta e elegante foi atendê-lo, Schlikmann fechou ainda mais a cara, já de normal tão amarrada que parecia amarrotada. Era um homem muito alto, com um metro e oitenta e cinco, magro, com uma face branca de cera muito enrugada. De idade, andava na casa dos setenta e cinco anos. 

O cabelo era curto e ralo, totalmente branco, mantido no corte escovinha típico dos militares, o que ele nunca tinha sido. Por incrível que pudesse parecer, não precisava usar óculos. Seus olhos azuis acinzentados, frios e penetrantes, eram, por isso mesmo, a parte mais destacada no todo do seu rosto.

Seu porte mostrava um homem levemente encurvado para a frente, mas que tinha um passo estugado e rígido. Era tido por todos como um homem muito antipático e orgulhoso. 

O orgulho provinha, obviamente, de sua posição de chefe da família mais importante do lugar, descendente direto dos primeiros Schlikmann, alemães fundadores da cidade, junto com os italianos da Calábria, os Piacenzi. Mas estes tinham entrado em declínio e só a estirpe dos alemães sobrevivera ao duro passar do tempo, tornando-se, estes alemães, cada vez mais influentes e poderosos. 

É claro que trabalhar ele nunca tinha trabalhado, era uma coisa indigna de um Schlikmann, de um nobre da linhagem dos fundadores. Horrorizava-se só em pensar que poderia ter uma empresa, que, obrigatoriamente, por causa de sua importância, teria que ser muito grande. 

Ou seja, teria que ter preocupações infinitas, dor de cabeça atrás de dor de cabeça, como têm os empresários. Que vida iria ter? Se esfalfar no trabalho dia e noite, sem tempo para poder gozar a vida, ir à Europa comprar boas roupas, fazer safáris na África, ir a New York ou passar férias (do que?) no Taiti? 

Assim, quando naquela tarde a Rainha de Sabá se aproximou dele e da esposa, recebendo-os com um gentil discurso, o velho Adolfo respondeu como seria de se esperar de alguém como ele. 

– Boa tarde, senhor. Boa tarde, senhora – disse a moça – Sua preferência pela Teles Automóveis nos deixa muito satisfeitos e orgulhosos. Eu sou a atendente Jennifer, uma consultora de vendas especializada, à sua inteira disposição. Diga o que gostaria de ver e nós faremos até o impossível para satisfazê-lo. 

Ríspido e seco, Schlikmann falou: 

– Vá chamar sua PATROA, prefiro falar com ela! – sibilou, acentuando a palavra patroa. 

Mais direto impossível. Mais racista e ofensivo também. Até mesmo para a experiente e tranquila Jennifer, o direto na boca do estômago pesou, deixou-a sem fala na hora. O velho a chamá-la de empregada doméstica simplesmente, para colocá-la no seu lugar, segundo o conceito dele. Humilhava e já colocava as coisas como tinham que ser, estabelecia a hierarquia e a distância. 

Gládis não desgrudara um só instante a sua atenção da cena ao seu lado. Dirigindo-se ao cliente importante de Jennifer, o mais importante de Amarante, uma espécie de rainha da Inglaterra do lugar, disse-lhe gentilmente: 

– Boa tarde, senhor. Eu sou Gládis de Rios, subgerente da loja e chefe imediata de nossa Jennifer aqui. Em que poderia servi-los? 

O velho dragão abriu um sorriso de satisfação e, vitorioso, usufruindo o prazer de ter pisado na cabeça daquela negra insolente, metida a sebo, respondeu: 

– Eu quero um carro alemão como eu, um Mercedes, o melhor e mais caro que vocês tiverem por aqui – disse isso lançando um olhar de superioridade para aquela moça branca, de uma beleza estonteante, beleza que fez sumir-lhe a superioridade do olhar, diluindo-a numa conotação de admiração e desejo.

– Senhor Schlikmann – respondeu Gládis – temos vários veículos Mercedes, todos zero quilômetro, certamente o senhor poderá encontrar uma excelente opção, é só fazer sua própria escolha técnica e econômica. 

O alemão cerrou o cenho, mas depois voltou a sorrir. Ora, o modelo e as características não tinham assim tanta importância, desde que ninguém pudesse desfilar com um carro tão caro quanto ele em Amarante. 

Gládis, a subgerente, saboreou então a vitória que sua intuição prodigiosa lhe fizera antever. O olhar que lançou ao alemão desconcertou-o: parecia ser o de alguém que se divertia com alguma coisa, quando ela lhe falou:

– Nesse caso, o senhor teve muita sorte, porque foi atendido de imediato justo por nossa única especialista em Mercedes na empresa. A Jennifer tem vários cursos e estágios de especialização. Aproveite o privilégio, ela irá orientá-lo sobre todas as características técnicas e mercadológicas dos cinco modelos que temos hoje em desembarque. Com licença. 

E afastou-se, deixando-o entregue irremediavelmente à Rainha de Sabá. 

Schlikmann falou, contrariado, para a esposa, em alemão, para não ser entendido por aquela doméstica, aquela empregadosa metida a grande coisa: 

– "Werde ich von dieser Schwarzen bedient werden? 

Jennifer sorriu satisfeita, entendendo agora toda a extensão da armadilha preparada por Gládis para o imbecil. Ela havia entendido perfeitamente o que ele dissera à esposa: 

-- Eu vou ter que ser atendido por essa negra? 

Ah, ia ter sim! E como... 

A bela atendente deu alguns passos até sua mesa, abriu uma gaveta e retirou uma coleção de folhetos promocionais e catálogos técnicos, todos em inglês. Colocou-os sobre a ampla mesa à frente deles e respondeu ao homem, com um semblante iluminado, sorridente e sereno. 

Respondeu em ALEMÃO perfeito, escorreito, sem sotaque: 

– Receio que, para poder adquirir um Mercedes zero em nossa empresa, o senhor terá que se submeter ao incômodo de ser atendido por mim pessoalmente. Acontece que eu sou a única especialista em Mercedes aqui, com dois estágios de seis meses cada um na própria fábrica, em Bremen e em Stuttgart, na Alemanha. De qualquer forma vai lhe compensar o extremo sacrifício, porque eu vou, como lhe disse, fazer até o impossível para ajudá-lo a fechar o melhor negócio. No caso, a melhor escolha. 

E estendeu-lhe o primeiro folheto, com fotos e gráficos coloridos deslumbrantes, em um primoroso caderno de oito páginas. Para Schlikmann, totalmente inútil, tudo escrito naquela maldita língua dos bastardos ingleses! E a jovem especialista começou a discorrer, sempre em alemão, mostrando um impressionante conhecimento sobre os detalhes técnicos do motor, sua evolução ao longo dos últimos seis anos, os estágios da fabricação do mesmo, os exaustivos testes de qualidade, para deixá-los adequados à ultra rígida norma alemã. Depois passou a discorrer sobre os diversos tipos de câmbios automáticos e por que razão cada um deles era usado em determinado modelo e, não, em outro. 

Fez isso para cada um dos automóveis Mercedes que tinham em estoque, o que custou ao alemão – que, afinal, não era alemão coisíssima nenhuma, mas somente e no máximo neto de alemães – uma aula de mais de 20 minutos, em que ele ouvia, arregalava os olhos, fazia um esforço imenso para entender aquele alemão tão perfeito, pois o dele era de colono. 

E, nas poucas vezes em que ousou falar, o fez em português, pois se sentia inseguro com a pronúncia de certas palavras em alemão, além de ter um vocabulário muito restrito, pouco mais do que o coloquial. 

Indiferente a isso, toda vez que Schlikmann dizia algo em português, numa evidente tentativa desesperada de fazer aquela negra do demônio parar de falar em alemão, era neste idioma que ela respondia e continuava sua dissertação técnica. 

Por fim, dando-se por satisfeita, Jennifer pediu, finalmente em português, que o cliente fizesse enfim a sua escolha soberana. A esta altura, o homem já estava todo confuso com tanto dado técnico, tanta performance econômica, tanta tabela de desvalorização e depreciação, que nem sabia mais o que queria. Por preços não poderia perguntar, senão o que iriam pensar dele, que não era suficientemente rico para ter que escolher por preço, pechinchar como um mascate? 

Resolveu passar o abacaxi para a esposa: 

– Marion pode escolher, mulher tem instinto para essas coisas, acaba escolhendo bem sem saber por que – Sabia que estava dizendo uma grande besteira, mas o que fazer... 

– Então eu quero o azulzinho. É a minha cor, é o mais bonito – numa demonstração perfeita do tal “instinto para essas coisas”. 

Mas ambos, nesse momento, foram interrompidos por uma voz muito familiar: 

– Ora, por que vocês não deixam a moça escolher? Ela acabou de mostrar que entende de Mercedes mais do que o senhor, do que eu e do que todos os homens de Amarante juntos, nunca vi uma coisa assim. Moça, você é um prodígio! Qual é o seu nome? 

– Jennifer Oliveira, para servi-lo, senhor. 

– Muito prazer, senhorita. Eu sou Leon Schlikmann. É uma honra conhecer uma mulher tão inteligente. E, como se não bastasse, tão bonita. 

– Encantada, senhor. Muito obrigada. É da família do senhor Adolfo? 

– É nosso filho – falou a surpresa e contrariada Marion, ao ver que Leon estivera assistindo possivelmente a maior parte da demonstração de conhecimento e perícia daquela africana surpreendente. Contrariada por ver que um herdeiro dos Schlikmann, a nata da sociedade de Amarante, tinha acabado de chamar uma negra de bonita! 

Só então o velho Adolfo Schlikmann percebeu que ele estava no centro de um amplo círculo de pessoas: os Silva – o tampinha, a madame e a filha – um monte de gente, o próprio paulista dono da loja, um japonês baixinho e gordão, e, o pior de tudo, seu próprio filho, que tinha acabado de falar aquela barbaridade. 

Pelo jeito o pessoal foi passando por ali e parando, ao ver aquela negra alta falando um alemão muito melhor que o dele, por tanto tempo, e mostrando entender aquele despropósito de automóveis. 

Humilhação maior do que aquela não poderia ter-lhe acontecido nessa cidade. Imediatamente deu meia volta, dizendo: 

– Bom. Você escolhe então. Você ou sua mãe, tanto faz. Desde que eu troque meu carro hoje, está tudo certo. Você pode dar um cheque seu, que eu faço a transferência depois.

Afastou-se rapidamente rumo ao estacionamento. Sua úlcera mordia-o impiedosamente por dentro. Mas não se dobrou nem gemeu até estar sentado dentro do carro. Nunca iria dar esse gosto àquela gentinha! 

Por hoje já tivera o suficiente. Maldita negra! E não podia esquecer o olhar de gozação daquela outra moça, aquela sim, branca e bonita, que era a subgerente. Por que ela o havia olhado assim antes, muito antes que aquela humilhação toda tivesse acontecido com ele?

Com a saída de Adolfo, seguido imediatamente pela esposa Marion, sobrou para Leon escolher o automóvel novo do pai. Coerente com o que afirmara de público, ele pediu que Jennifer fizesse a escolha tecnicamente, sem considerar preços, Não precisava ser o mais caro, como sabia que o pai preferiria. Mas que fosse o melhor, segundo o discernimento abalizado de uma especialista.

Feliz da vida, Jennifer concluiu toda a tramitação. Começava bem naquela cidade: uma vitória de gala sobre um racista nojento e uma polpuda comissão logo no primeiro dia. Leon assinou os papeis e o cheque para o pagamento à vista. 

De repente, uma surpresa para Leon: 

– Parabéns, Leonzinho, estou orgulhosa de você – era Larissa, sua amiga e agora uma vendedora da Teles também, que se abaixava sobre a cadeira e dava-lhe um beijo na face.

– Oi, Larissa. Obrigado. Parabéns pelo carro? Não vale, esse é pro velho. Eu vou seguir com o meu Porsche usado, tá mais do que bom. 

– Não, seu bobo. Parabéns pela atitude! Pela maturidade, ao dizer que quem devia escolher o carro era a Jennifer. E também pelas coisas bonitas que você disse pra ela. Eu adorei. 

– Olha, pois eu adorei também. Adorei a moça, meu bem! Você me conhece, sabe como eu sou galinha... Mas essa aí me deixou de queixo caído. Que cabeça! Que rosto,,, que... 

– Que bunda, seu tarado! – sussurrou, bem baixinho, uma sorridente Larissa, iniciando um diálogo em murmúrios – Ela é linda mesmo. Eu também acho. Mas o que eu gostei de ver, o melhor de tudo, foi como você enfrentou o seu pai com aquela frase. O velho ficou mais branco do que nunca, depois avermelhou de pura raiva. 

– Ah, sim. E raiva pra ele quer dizer dor na úlcera, na mesma hora. É que o diabo do velho não demonstra agora, mas vai passar horas a fio, depois, abaixo de remédio. E vai me encher o saco amanhã. Hoje eu dou um jeito de voltar tarde para casa, só pro coroa não pegar no meu pé, o desgraçado dorme com as galinhas. Mas, em compensação, acorda com os galos e começa a encher todo mundo antes do café. 

(Ah, que atroz, que terrível, que catastrófica dor de úlcera teria Adolfo Schlikmann, naquele dia, se pudesse adivinhar que, apenas oito meses depois, a provinciana Amarante assistiria, dividida entre racistas contrariados e progressistas entusiasmados – estes em pujante maioria! – o casamento de Leon Schlikmann, o branco delfim, o príncipe herdeiro da cidade, com sua maravilhosa Rainha de Sabá). 

(Extraído do capítulo 17 do livro LUA OCULTA (Milton Maciel, IDEL, 2016 – romance, 1088 páginas)