SCHILIKMANN E A RAINHA DE SABÁ
Ou: o racismo punido na hora!
(CONTO)
MILTON MACIEL
Sede da Teles Automóveis, revenda
de carros de luxo e importados em Amarante, Santa Catarina. A equipe de venda é
formada por quatro mulheres deslumbrantes, altamente treinadas e muito competentes.
Jennifer, a vendedora que chegara horas atrás de Ribeirão Preto, junto
com sua colega Paula, não era loira, nem morena, nem mulata. Jennifer era NEGRA!
Sua pele brilhava naturalmente, com um preto quase azulado, lindo de se ver. E,
como todas as quatro vendedoras da equipe da Teles, era uma mulher de uma
beleza impressionante.
Traços africanos característicos, uma boca carnuda que era puro rasgo de
sensualidade, alta de um porte altivo e elegante, uma bunda cinematográfica, a
maior da equipe. O torneado das pernas era também uma coisa de cinema. Tudo
nela inspirava classe e superioridade natural, sem qualquer pose ou afetação.
Carmen De Rios, a gerente geral, gostava de chamá-la “minha Rainha Negra”,
“Rainha de Sabá”, “Deusa Africana”.
Até porque, muito mais do que isso, Jennifer tinha algo que a fazia a
favorita total de sua chefe: Jennifer era uma mulher muito culta. Formada e doutorada
em Letras, tinha sido antes professora de inglês em escolas secundárias e
depois professora universitária em Ribeirão Preto, especializada em literatura
portuguesa de Portugal e das ex-colônias. Trabalhava, nas horas vagas, como
tradutora e escrevia contos, que esperava poder publicar um dia, quando achasse
que atingira a maturidade que visava.
Mesmo assim, os seus proventos eram muito limitados. Só soube o que foi
ganhar dinheiro de verdade quando, a instâncias e insistências de Carmen,
começou a trabalhar na Teles Automóveis de Ribeirão Preto, como vendedora.
Em pouco tempo, uma espécie de Miss Simpatia nata e uma incontestável
Rainha Africana, tornou-se, também ela, uma das campeãs de vendas.
Agora, como Paula e as duas De Rios, preferira transferir-se para a
filial de Santa Catarina, em Amarante. Naturalmente, muitas vezes enfrentava
problemas com racistas.
Era isso o que Gládis De Rios, subgerente da loja e filha de Carmen De
Rios, queria testar agora. Teve um lampejo de inspiração e fez sinal para
Jennifer, que estava entrando na loja naquele momento, para que ela atendesse
Adolfo Schlikmann. Lamentou pela colega, mas precisava ver se aconteceria o que
estava imaginando. Seria uma lição e tanto!
Quando aquela negra alta e elegante foi atendê-lo, Schlikmann fechou
ainda mais a cara, já de normal tão amarrada que parecia amarrotada. Era um
homem muito alto, com um metro e oitenta e cinco, magro, com uma face branca de
cera muito enrugada. De idade, andava na casa dos setenta e cinco anos.
O cabelo era curto e ralo, totalmente branco, mantido no corte escovinha
típico dos militares, o que ele nunca tinha sido. Por incrível que pudesse
parecer, não precisava usar óculos. Seus olhos azuis acinzentados, frios e
penetrantes, eram, por isso mesmo, a parte mais destacada no todo do seu rosto.
Seu porte mostrava um homem levemente encurvado para a frente, mas que
tinha um passo estugado e rígido. Era tido por todos como um homem muito
antipático e orgulhoso.
O orgulho provinha, obviamente, de sua posição de chefe da família mais
importante do lugar, descendente direto dos primeiros Schlikmann, alemães
fundadores da cidade, junto com os italianos da Calábria, os Piacenzi. Mas
estes tinham entrado em declínio e só a estirpe dos alemães sobrevivera ao duro
passar do tempo, tornando-se, estes alemães, cada vez mais influentes e
poderosos.
É claro que trabalhar ele nunca tinha trabalhado, era uma coisa indigna
de um Schlikmann, de um nobre da linhagem dos fundadores. Horrorizava-se só em
pensar que poderia ter uma empresa, que, obrigatoriamente, por causa de sua
importância, teria que ser muito grande.
Ou seja, teria que ter preocupações infinitas, dor de cabeça atrás de
dor de cabeça, como têm os empresários. Que vida iria ter? Se esfalfar no
trabalho dia e noite, sem tempo para poder gozar a vida, ir à Europa comprar
boas roupas, fazer safáris na África, ir a New York ou passar férias (do que?)
no Taiti?
Assim, quando naquela tarde a Rainha de Sabá se aproximou dele e da esposa, recebendo-os com um gentil discurso, o velho Adolfo respondeu como seria de se esperar de
alguém como ele.
– Boa tarde, senhor. Boa tarde, senhora – disse a moça – Sua preferência
pela Teles Automóveis nos deixa muito satisfeitos e orgulhosos. Eu sou a
atendente Jennifer, uma consultora de vendas especializada, à sua inteira
disposição. Diga o que gostaria de ver e nós faremos até o impossível para
satisfazê-lo.
Ríspido e seco, Schlikmann falou:
– Vá chamar sua PATROA, prefiro falar com ela! – sibilou, acentuando a
palavra patroa.
Mais direto impossível. Mais racista e ofensivo também. Até mesmo para a
experiente e tranquila Jennifer, o direto na boca do estômago pesou, deixou-a
sem fala na hora. O velho a chamá-la de empregada doméstica simplesmente, para
colocá-la no seu lugar, segundo o conceito dele. Humilhava e já colocava as
coisas como tinham que ser, estabelecia a hierarquia e a distância.
Gládis não desgrudara um só instante a sua atenção da cena ao seu lado. Dirigindo-se
ao cliente importante de Jennifer, o mais importante de Amarante, uma espécie
de rainha da Inglaterra do lugar, disse-lhe gentilmente:
– Boa tarde, senhor. Eu sou Gládis de Rios, subgerente da loja e chefe
imediata de nossa Jennifer aqui. Em que poderia servi-los?
O velho dragão abriu um sorriso de satisfação e, vitorioso, usufruindo o
prazer de ter pisado na cabeça daquela negra insolente, metida a sebo,
respondeu:
– Eu quero um carro alemão como eu, um Mercedes, o melhor e mais caro
que vocês tiverem por aqui – disse isso lançando um olhar de superioridade para
aquela moça branca, de uma beleza estonteante, beleza que fez sumir-lhe a
superioridade do olhar, diluindo-a numa conotação de admiração e desejo.
– Senhor Schlikmann – respondeu Gládis – temos vários veículos Mercedes,
todos zero quilômetro, certamente o senhor poderá encontrar uma excelente opção,
é só fazer sua própria escolha técnica e econômica.
O alemão cerrou o cenho, mas depois voltou a sorrir. Ora, o modelo e as
características não tinham assim tanta importância, desde que ninguém pudesse
desfilar com um carro tão caro quanto ele em Amarante.
Gládis, a subgerente, saboreou então a vitória que sua intuição
prodigiosa lhe fizera antever. O olhar que lançou ao alemão desconcertou-o:
parecia ser o de alguém que se divertia com alguma coisa, quando ela lhe falou:
– Nesse caso, o senhor teve muita sorte, porque foi atendido de imediato
justo por nossa única especialista em Mercedes na empresa. A Jennifer tem
vários cursos e estágios de especialização. Aproveite o privilégio, ela irá
orientá-lo sobre todas as características técnicas e mercadológicas dos cinco
modelos que temos hoje em desembarque. Com licença.
E afastou-se, deixando-o entregue irremediavelmente à Rainha de Sabá.
Schlikmann falou, contrariado, para a esposa, em alemão, para não ser entendido por aquela doméstica, aquela empregadosa metida a grande coisa:
– "Werde ich von dieser Schwarzen
bedient werden?
Jennifer sorriu satisfeita, entendendo agora toda a extensão da
armadilha preparada por Gládis para o imbecil. Ela havia entendido
perfeitamente o que ele dissera à esposa:
-- Eu vou ter que ser atendido
por essa negra?
Ah, ia ter sim! E como...
A bela atendente deu alguns passos até sua mesa, abriu uma gaveta e
retirou uma coleção de folhetos promocionais e catálogos técnicos, todos em
inglês. Colocou-os sobre a ampla mesa à frente deles e respondeu ao homem, com
um semblante iluminado, sorridente e sereno.
Respondeu em ALEMÃO perfeito, escorreito, sem sotaque:
– Receio que, para poder adquirir um Mercedes zero em nossa empresa, o
senhor terá que se submeter ao incômodo de ser atendido por mim pessoalmente.
Acontece que eu sou a única especialista em Mercedes aqui, com dois estágios de
seis meses cada um na própria fábrica, em Bremen e em Stuttgart, na Alemanha.
De qualquer forma vai lhe compensar o extremo sacrifício, porque eu vou, como
lhe disse, fazer até o impossível para ajudá-lo a fechar o melhor negócio. No
caso, a melhor escolha.
E estendeu-lhe o primeiro folheto, com fotos e gráficos coloridos
deslumbrantes, em um primoroso caderno de oito páginas. Para Schlikmann,
totalmente inútil, tudo escrito naquela maldita língua dos bastardos ingleses!
E a jovem especialista começou a discorrer, sempre em alemão,
mostrando um impressionante conhecimento sobre os detalhes técnicos do
motor, sua evolução ao longo dos últimos seis anos, os estágios da fabricação
do mesmo, os exaustivos testes de qualidade, para deixá-los adequados à ultra
rígida norma alemã. Depois passou a discorrer sobre os diversos tipos de
câmbios automáticos e por que razão cada um deles era usado em determinado
modelo e, não, em outro.
Fez isso para cada um dos automóveis Mercedes que tinham em estoque, o
que custou ao alemão – que, afinal, não era alemão coisíssima nenhuma, mas
somente e no máximo neto de alemães – uma aula de mais de 20 minutos, em que
ele ouvia, arregalava os olhos, fazia um esforço imenso para entender aquele
alemão tão perfeito, pois o dele era de colono.
E, nas poucas vezes em que ousou falar, o fez em português, pois se
sentia inseguro com a pronúncia de certas palavras em alemão, além de ter um
vocabulário muito restrito, pouco mais do que o coloquial.
Indiferente a isso, toda vez que Schlikmann dizia algo em português,
numa evidente tentativa desesperada de fazer aquela negra do demônio parar de
falar em alemão, era neste idioma que ela respondia e continuava sua
dissertação técnica.
Por fim, dando-se por satisfeita, Jennifer pediu, finalmente em
português, que o cliente fizesse enfim a sua escolha soberana. A esta altura, o
homem já estava todo confuso com tanto dado técnico, tanta performance
econômica, tanta tabela de desvalorização e depreciação, que nem sabia mais o
que queria. Por preços não poderia perguntar, senão o que iriam pensar dele,
que não era suficientemente rico para ter que escolher por preço, pechinchar
como um mascate?
Resolveu passar o abacaxi para a esposa:
– Marion pode escolher, mulher tem instinto para essas coisas, acaba
escolhendo bem sem saber por que – Sabia que estava dizendo uma grande
besteira, mas o que fazer...
– Então eu quero o azulzinho. É a minha cor, é o mais bonito – numa
demonstração perfeita do tal “instinto para essas coisas”.
Mas ambos, nesse momento, foram interrompidos por uma voz muito
familiar:
– Ora, por que vocês não deixam a moça escolher? Ela acabou de mostrar
que entende de Mercedes mais do que o senhor, do que eu e do que todos os
homens de Amarante juntos, nunca vi uma coisa assim. Moça, você é um prodígio!
Qual é o seu nome?
– Jennifer Oliveira, para servi-lo, senhor.
– Muito prazer, senhorita. Eu sou Leon Schlikmann. É uma honra conhecer
uma mulher tão inteligente. E, como se não bastasse, tão bonita.
– Encantada, senhor. Muito obrigada. É da família do senhor Adolfo?
– É nosso filho – falou a surpresa e contrariada Marion, ao ver que Leon
estivera assistindo possivelmente a maior parte da demonstração de conhecimento
e perícia daquela africana surpreendente. Contrariada por ver que um herdeiro
dos Schlikmann, a nata da sociedade de Amarante, tinha acabado de chamar uma
negra de bonita!
Só então o velho Adolfo Schlikmann percebeu que ele estava no centro de
um amplo círculo de pessoas: os Silva – o tampinha, a madame e a filha – um
monte de gente, o próprio paulista dono da loja, um japonês baixinho e gordão,
e, o pior de tudo, seu próprio filho, que tinha acabado de falar aquela
barbaridade.
Pelo jeito o pessoal foi passando por ali e parando, ao ver aquela negra
alta falando um alemão muito melhor que o dele, por tanto tempo, e mostrando
entender aquele despropósito de automóveis.
Humilhação maior do que aquela não poderia ter-lhe acontecido nessa
cidade. Imediatamente deu meia volta, dizendo:
– Bom. Você escolhe então. Você ou sua mãe, tanto faz. Desde que eu
troque meu carro hoje, está tudo certo. Você pode dar um cheque seu, que eu
faço a transferência depois.
Afastou-se rapidamente rumo ao estacionamento. Sua
úlcera mordia-o impiedosamente por dentro. Mas não se dobrou nem gemeu até
estar sentado dentro do carro. Nunca iria dar esse gosto àquela gentinha!
Por hoje já tivera o suficiente. Maldita negra! E
não podia esquecer o olhar de gozação daquela outra moça, aquela sim, branca e
bonita, que era a subgerente. Por que ela o havia olhado assim antes, muito
antes que aquela humilhação toda tivesse acontecido com ele?
Com a saída de Adolfo, seguido
imediatamente pela esposa Marion, sobrou para Leon escolher o automóvel novo do
pai. Coerente com o que afirmara de público, ele pediu que Jennifer fizesse a
escolha tecnicamente, sem considerar preços, Não precisava ser o mais caro,
como sabia que o pai preferiria. Mas que fosse o melhor, segundo o
discernimento abalizado de uma especialista.
Feliz da vida, Jennifer concluiu
toda a tramitação. Começava bem naquela cidade: uma vitória de gala sobre um
racista nojento e uma polpuda comissão logo no primeiro dia. Leon assinou os
papeis e o cheque para o pagamento à vista.
De repente, uma surpresa para
Leon:
– Parabéns, Leonzinho, estou
orgulhosa de você – era Larissa, sua amiga e agora uma vendedora da Teles também,
que se abaixava sobre a cadeira e dava-lhe um beijo na face.
– Oi, Larissa. Obrigado.
Parabéns pelo carro? Não vale, esse é pro velho. Eu vou seguir com o meu
Porsche usado, tá mais do que bom.
– Não, seu bobo. Parabéns pela
atitude! Pela maturidade, ao dizer que quem devia escolher o carro era a
Jennifer. E também pelas coisas bonitas que você disse pra ela. Eu adorei.
– Olha, pois eu adorei também.
Adorei a moça, meu bem! Você me conhece, sabe como eu sou galinha... Mas essa
aí me deixou de queixo caído. Que cabeça! Que rosto,,, que...
– Que bunda, seu tarado! –
sussurrou, bem baixinho, uma sorridente Larissa, iniciando um diálogo em
murmúrios – Ela é linda mesmo. Eu também acho. Mas o que eu gostei de ver, o
melhor de tudo, foi como você enfrentou o seu pai com aquela frase. O velho
ficou mais branco do que nunca, depois avermelhou de pura raiva.
– Ah, sim. E raiva pra ele quer
dizer dor na úlcera, na mesma hora. É que o diabo do velho não demonstra agora,
mas vai passar horas a fio, depois, abaixo de remédio. E vai me encher o saco
amanhã. Hoje eu dou um jeito de voltar tarde para casa, só pro coroa não pegar
no meu pé, o desgraçado dorme com as galinhas. Mas, em compensação, acorda com
os galos e começa a encher todo mundo antes do café.
(Ah, que atroz, que terrível, que catastrófica dor
de úlcera teria Adolfo Schlikmann, naquele dia, se pudesse adivinhar que, apenas
oito meses depois, a provinciana Amarante assistiria, dividida entre racistas
contrariados e progressistas entusiasmados – estes em pujante maioria! – o
casamento de Leon Schlikmann, o branco delfim, o príncipe herdeiro da cidade, com sua
maravilhosa Rainha de Sabá).
(Extraído do capítulo 17 do livro LUA OCULTA (Milton
Maciel, IDEL, 2016 – romance, 1088 páginas)