sexta-feira, 28 de abril de 2017

DAS DELÍCIAS DE ESCREVER ROMANCE HISTÓRICO (ou: O OVO DO CUCO)
MILTON MACIEL

O cuco é um diabo de um passarinho esperto. Não faz ninho próprio nem cuida das crias. Bota os ovos, devidamente camuflados, no ninho de outra espécie de pássaro, que vai chocá-lo e alimentar o filhote de cuco. Que sai do ovo antes dos filhotes legítimos e joga os ovos de onde estes nasceriam para afora do ninho, matando-os. Os pais adotivos o alimentam e ele cresce sozinho, fica enorme em 21 dias e se manda, para viver sua vida.

Pois é, eu me sinto meio cuco quando escrevo romances históricos, coisa que adoro fazer. Primeiro vou para o ninho do pássaro historiador. E é ali que coloco meus ovos de cuco, de ficção. Explico melhor.

O historiador está completamente preso à realidade objetiva dos fatos históricos. Ele conta o que de fato aconteceu. Ou, ao menos, o que a sua pesquisa o leva a concluir, honestamente, que aconteceu. Não pode tomar licença alguma.

Já o romancista histórico chega ao ninho onde o historiador botou seus ovos cinza-chumbo da realidade e começa a entremeá-los com os seus próprios ovos multicoloridos da imaginação e da emoção. É meio-cuco. Se for cuco completo, joga fora do ninho todos os ovos do historiador e os substitui inteiramente por ovos imaginários. Eu prefiro ser meio-cuco. Deixo os ovos fundamentais da história, sem mudar sua posição. Atenho-me a personagens, datas e eventos reais. E, em cima e ao lado deles, coloco os meus.

O historiador escreve em seu livro o que aconteceu. Eu escrevo no meu, sobre o mesmo acontecimento, o que o personagem SENTIU, imaginou, sonhou, sofreu, riu, se emocionou, planejou. Dou-lhe VIDA, transformo-o em um ser real de carne e osso, ele que até então era só um ente histórico, formado de antecedentes, consequentes, datas e números. Uma múmia. O engraçado, o divertido é que, para tornar meu personagem real, de carne e osso, bem como o leitor aprecia, eu fantasio e uso a imaginação. O personagem real histórico se torna o personagem real humano, na base da fantasia. Não é um paradoxo?

E aí vem o melhor da festa: a gente INVENTA personagens que não existiram e os coloca em ação com os personagens reais. É o máximo para o autor. Quem não lembra o bom Alexandre Dumas?  É claro que precisa haver coerência, muita pesquisa histórica, conhecimento total do que se sabe sobre os personagens e os acontecimentos reais, sua época, seus costumes, suas roupas, cabelos, adereços, maquiagens, sua religião, sua alimentação, suas tecnologias, suas necessidades e seus medos. Os personagens fictícios precisam encaixar-se dentro desse ambiente, desses cenários e desse modelo comportamental.

Mas, feito esse encaixe, a gente tem uma enorme liberdade para criar. Se o historiador descobriu que o rei deitou com a esposa do marquês, ele faz o registro secamente. Já eu entro na alcova real e ... sai de baixo! Ou de cima, conforme o gosto dos personagens. Só o bom senso e, necessariamente, o bom gosto, ditam os limites do que eu posso contar, como testemunha ocular do doce embate que sou.

Em O CERCO, que se passa na Gália romana em 451 DC, o fato central é a batalha dos Campos Catalaúnicos, travada entre gauleses, romanos, visigodos, alanos, burgúndios e francos, coligados, contra os hunos e seus aliados, gépides, ostrogodos e alamanos. São reais o Imperador Valentiniano III, o general Flávio Aécio, e os reis de todos esses povos combatentes, a começar por Átila, rei dos hunos. É real o resultado final da batalha. Mas o resto...

Curti demais inventando três sacerdotisas celtas e um eunuco ostrogodo, quatro personagens femininas que são as grandes protagonistas desse entrevero do mundo dos machos guerreiros. São elas que salvam os francos e vencem a guerra. O rei dos francos se apaixona desesperadamente pela sacerdotisa mais jovem. Ele é real. E acontece que a moça também é! Virou rainha dos francos de verdade, Vérica, esposa do rei Meroveu. Só não era sacerdotisa. Eu a fiz ser. E ela, que era para ser apenas a quinta protagonista da história, tornou-se a principal, eclipsando todos os outros personagens masculinos e femininos, mais uma vez confirmando Jorge Amado, que sempre afirmou que é o personagem, não o autor, quem escreve o romance, como conto no livro “ ARTE E A TÉCNICA DO ROMANCE”. Pura verdade!

É dessa menina de 17 anos, sacerdotisa e guerreira, uma excepcional arqueira, que vai surgir depois, no futuro próximo, como neto seu, Clóvis, o rei dos francos Salianos (atual Bélgica), que vai unificar pela força todas as cinco tribos dos francos e dar origem REAL à nação moderna que se chama FRANÇA. Realidade e fantasia, em íntima mistura, são o cerne do romance histórico. Simples assim.

Mais uma vez o meu preito de gratidão aos historiadores que pesquisaram exaustivamente os fatos e que, desse rei e dessa rainha, conseguiram pouco mais do que comprovar sua existência real histórica, deixando-me livre para reinventá-los da maneira que mais entusiasma os meus leitores. Graças ao rigor dos historiadores, encontrei um ninho onde colocar meus ovos de cuco. Adorei. E aí não parei mais.

Repeti a dose mais uma vez, ainda na Gália, só que em 368 A.D., com “ALINE DE TROYES, uma guerreira gaulesa”. Depois, no Brasil colônia, 1513 a 1592, com “JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO” e “JOÃO RAMALHO FUNDADOR”. E agora, no mês de Abril ainda em curso, conclui mais um romance histórico.

Por uma dessas estranhíssimas “coincidências” (que não existem, Jung as chama de sincronicidades), escrevei, sob encomenda, como ghost writer, um romance que se passa na Bélgica Valônia (justo aquele reino de Meroveu e de Clóvis!), na Alemanha, na França e no Brasil. Um romance histórico da Segunda Guerra Mundial. Uma encomenda dos filhos brasileiros de um casal de heróis da Resistência Belga. Que gostaram tanto do resultado que me pediram para aparecer como coautor, uma absoluta realidade neste nosso mundo ultra discreto de ghost writers, onde escrevemos as histórias e desaparecemos para sempre, como bons fantasminhas, na hora da publicação. O livro recebeu o nome de “A GUERRA DE JACQUES”.

Sou atraído abismalmente para a França. Minha avó era descendente de um marechal de Napoleão que morreu antes de Waterloo e eu aprendi o francês ainda na infância. As sequelas de O Cerco se passam, uma na Bretanha francesa e outra na... Bélgica, no tempo de Clóvis. E os dois livros de João Ramalho fazem parte de uma quadrilogia, uma série cujo nome é... “De França e Brasil”, com “Villegaignon no Inferno” e “Monsieur Le Prince Essomericq”

Creio que tenho o inconsciente de um CUCO... francês.




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