DAS DELÍCIAS DE ESCREVER ROMANCE HISTÓRICO
(ou: O OVO DO CUCO)
MILTON MACIEL
O cuco é um
diabo de um passarinho esperto. Não faz ninho próprio nem cuida das crias. Bota
os ovos, devidamente camuflados, no ninho de outra espécie de pássaro, que vai
chocá-lo e alimentar o filhote de cuco. Que sai do ovo antes dos filhotes
legítimos e joga os ovos de onde estes nasceriam para afora do ninho,
matando-os. Os pais adotivos o alimentam e ele cresce sozinho, fica enorme em
21 dias e se manda, para viver sua vida.
Pois é, eu
me sinto meio cuco quando escrevo romances históricos, coisa que adoro fazer. Primeiro
vou para o ninho do pássaro historiador. E é ali que coloco meus ovos de cuco,
de ficção. Explico melhor.
O
historiador está completamente preso à realidade objetiva dos fatos históricos.
Ele conta o que de fato aconteceu. Ou, ao menos, o que a sua pesquisa o leva a
concluir, honestamente, que aconteceu. Não pode tomar licença alguma.
Já o
romancista histórico chega ao ninho onde o historiador botou seus ovos cinza-chumbo
da realidade e começa a entremeá-los com os seus próprios ovos multicoloridos
da imaginação e da emoção. É meio-cuco. Se for cuco completo, joga fora do
ninho todos os ovos do historiador e os substitui inteiramente por ovos
imaginários. Eu prefiro ser meio-cuco. Deixo os ovos fundamentais da história,
sem mudar sua posição. Atenho-me a personagens, datas e eventos reais. E, em
cima e ao lado deles, coloco os meus.
O historiador
escreve em seu livro o que aconteceu. Eu escrevo no meu, sobre o mesmo
acontecimento, o que o personagem SENTIU, imaginou, sonhou, sofreu, riu, se
emocionou, planejou. Dou-lhe VIDA, transformo-o em um ser real de carne e osso,
ele que até então era só um ente histórico, formado de antecedentes,
consequentes, datas e números. Uma múmia. O engraçado, o divertido é que, para tornar
meu personagem real, de carne e osso, bem como o leitor aprecia, eu fantasio e
uso a imaginação. O personagem real histórico se torna o personagem real
humano, na base da fantasia. Não é um paradoxo?
E aí vem o
melhor da festa: a gente INVENTA personagens que não existiram e os coloca em
ação com os personagens reais. É o máximo para o autor. Quem não lembra o bom
Alexandre Dumas? É claro que precisa
haver coerência, muita pesquisa histórica, conhecimento total do que se sabe
sobre os personagens e os acontecimentos reais, sua época, seus costumes, suas
roupas, cabelos, adereços, maquiagens, sua religião, sua alimentação, suas
tecnologias, suas necessidades e seus medos. Os personagens fictícios precisam
encaixar-se dentro desse ambiente, desses cenários e desse modelo
comportamental.
Mas, feito
esse encaixe, a gente tem uma enorme liberdade para criar. Se o historiador
descobriu que o rei deitou com a esposa do marquês, ele faz o registro
secamente. Já eu entro na alcova real e ... sai de baixo! Ou de cima, conforme
o gosto dos personagens. Só o bom senso e, necessariamente, o bom gosto, ditam
os limites do que eu posso contar, como testemunha ocular do doce embate que sou.
Em O CERCO,
que se passa na Gália romana em 451 DC, o fato central é a batalha dos Campos
Catalaúnicos, travada entre gauleses, romanos, visigodos, alanos, burgúndios e
francos, coligados, contra os hunos e seus aliados, gépides, ostrogodos e
alamanos. São reais o Imperador Valentiniano III, o general Flávio Aécio, e os
reis de todos esses povos combatentes, a começar por Átila, rei dos hunos. É
real o resultado final da batalha. Mas o resto...
Curti demais
inventando três sacerdotisas celtas e um eunuco ostrogodo, quatro personagens
femininas que são as grandes protagonistas desse entrevero do mundo dos machos
guerreiros. São elas que salvam os francos e vencem a guerra. O rei dos francos
se apaixona desesperadamente pela sacerdotisa mais jovem. Ele é real. E
acontece que a moça também é! Virou rainha dos francos de verdade, Vérica,
esposa do rei Meroveu. Só não era sacerdotisa. Eu a fiz ser. E ela, que era
para ser apenas a quinta protagonista da história, tornou-se a principal, eclipsando
todos os outros personagens masculinos e femininos, mais uma vez confirmando
Jorge Amado, que sempre afirmou que é o personagem, não o autor, quem escreve o
romance, como conto no livro “ ARTE E A TÉCNICA DO ROMANCE”. Pura verdade!
É dessa menina
de 17 anos, sacerdotisa e guerreira, uma excepcional arqueira, que vai surgir
depois, no futuro próximo, como neto seu, Clóvis, o rei dos francos Salianos (atual
Bélgica), que vai unificar pela força todas as cinco tribos dos francos e dar
origem REAL à nação moderna que se chama FRANÇA. Realidade e fantasia, em
íntima mistura, são o cerne do romance histórico. Simples assim.
Mais uma vez
o meu preito de gratidão aos historiadores que pesquisaram exaustivamente os
fatos e que, desse rei e dessa rainha, conseguiram pouco mais do que comprovar sua
existência real histórica, deixando-me livre para reinventá-los da maneira que
mais entusiasma os meus leitores. Graças ao rigor dos historiadores, encontrei um
ninho onde colocar meus ovos de cuco. Adorei. E aí não parei mais.
Repeti a
dose mais uma vez, ainda na Gália, só que em 368 A.D., com “ALINE DE TROYES,
uma guerreira gaulesa”. Depois, no Brasil colônia, 1513 a 1592, com “JOÃO RAMALHO
NO PARAÍSO” e “JOÃO RAMALHO FUNDADOR”. E agora, no mês de Abril ainda em curso,
conclui mais um romance histórico.
Por uma
dessas estranhíssimas “coincidências” (que não existem, Jung as chama de
sincronicidades), escrevei, sob encomenda, como ghost writer, um romance que se passa na Bélgica Valônia (justo
aquele reino de Meroveu e de Clóvis!), na Alemanha, na França e no Brasil. Um romance
histórico da Segunda Guerra Mundial. Uma encomenda dos filhos brasileiros de um
casal de heróis da Resistência Belga. Que gostaram tanto do resultado que me
pediram para aparecer como coautor, uma absoluta realidade neste nosso mundo ultra
discreto de ghost writers, onde escrevemos
as histórias e desaparecemos para sempre, como bons fantasminhas, na hora da
publicação. O livro recebeu o nome de “A GUERRA DE JACQUES”.
Sou atraído
abismalmente para a França. Minha avó era descendente de um marechal de
Napoleão que morreu antes de Waterloo e eu aprendi o francês ainda na infância.
As sequelas de O Cerco se passam, uma na Bretanha francesa e outra na...
Bélgica, no tempo de Clóvis. E os dois livros de João Ramalho fazem parte de
uma quadrilogia, uma série cujo nome é... “De França e Brasil”, com “Villegaignon
no Inferno” e “Monsieur Le Prince Essomericq”
Creio que tenho
o inconsciente de um CUCO... francês.
Nenhum comentário:
Postar um comentário